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A história que não quer apagar

Carlos Laranjeira

Sempre no final do ano, lembro da figura de uma mulher esguia, baixa e magra, que eu vi pela primeira vez em Salvador, há pouco mais de 35 anos, ao sair da praia, no alvorecer de um dia lindo.

Ela batia de porta em porta e pedia mantimentos, que ia dispondo na Kombi que a acompanhava. Na minha falta de experiência, não podia entender como uma pessoa parecendo renunciar ao gozo material pode acordar cedo para, de casa em casa, solicitar esmola destinada a outros. Ao narrar o acontecimento à minha mãe vim a saber tratar-se da Irmã Dulce, uma mulher cuja atividade destinava-se a recolher bêbados e doentes das ruas para dar-lhes comida, além de remédios e lugar para permanecer até a cura.

Deste dia em diante ela fincou pé em minha memória e seu olhar se cruzou com o meu no final do ano seguinte. No mês de dezembro, repórter do JORNAL DO BAHIA, fui destacado, pela chefia de reportagem, para checar a veracidade da notícia, segundo a qual, faltava-lhe dinheiro para o pagamento do 13º. salário dos servidores do hospital, o qual ela insistia em construir para dar abrigo a um número cada vez maior de bêbados e desválidos. E os servidores não eram poucos. Muitos, aliás! A notícia fôra publicada e, dias depois, como uma mágica, o dinheiro lhe apareceu em forma de doações. Confesso que essas atribulações de uma pequenina mulher me levaram a refletir sobre a vida e fazer indagações para as quais não encontrava respostas.

A leitura persistente, à qual me habituei, foi me revelando que a vida é assim mesmo: nós vivemos uns para os outros, não obstante nem sempre o que oferecemos recebemos em troca. Às vezes tiram-nos mais do que podemos dar, nos roubam, nos humilham, mas, ao narrar nossas experiências nos livramos de um peso mental e acabamos por ajudar involuntariamente o leitor a resolver um problema, até então, insolúvel para ele.

Aprendi, como ia dizendo, que vivemos uns para os outros, não para nos embriagar de paixão pelo carro modelo novo e nos deixar dominar pela ambição de comprá-lo a qualquer custo. Ambição que às vezes nos leva a tirar do outro o que lhe fará falta, somente para satisfazer aos apelos comerciais de quem nos deseja tirar a tranqüilidade enquanto não atendermos ao seu chamamento.

Nessa época de festas, costumamos nos embriagar pela velocidade, pelo celular com vídeo, pelo culto do corpo, pelo televisor de 30 ou 40 polegadas, pela casa na praia, pela chácara ou fazenda, por mais um imóvel na cidade, sabe Deus para quê!

E nessa embriaguez passamos a ser dominados pelo vício de consumir, nem que para isto tenhamos de corromper e nos tornar corrompidos ou ainda ingerir drogas para tomar coragem e fazer o que passamos a considerar necessário à ambição.

Aos 57 anos, ainda não sei o que é a felicidade que todos ou quase todos buscam como a um tesouro e por ela sacrificam a saúde, a reputação, a liberdade, já que a associam a um bem material. Por ignorá-la, e não saber ao menos o que representa, sou despossuído de ambição. Valorizo a camaradagem, o esforço, o objetivo alcançado, as pessoas que executam com perfeição uma arte, mas este juízo eu pratico na contemplação do seu trabalho, me absorvendo na leitura, na admiração de uma criação artística, de um personagem, do enredo de uma história, da uma música ou de um jogo de futebol.

Valorizo modelos de valores humanos e espirituais, símbolos da realidade dos deserdados que vivem esmagado pela miséria. Exemplo deste modelo considero a Irmã Dulce que, não dando bolas para aquele tipo de felicidade, pelo qual a maioria é capaz de roubar, matar e se drogar, pregou justiça sem a voz. Usou apenas o gesto e, com ele, criou um dos maiores hospitais para os pobres.

A sua pequenina figura me apareceu no alvorecer de um lindo dia de final de ano, quando eu pensava que a vida se resumia unicamente no gozo dos bens materiais e não conseguia entender como alguém sacrificava os momentos de prazer para pedir esmola para os bêbados e doentes, por cuja situação não podia acumular sentimentos de culpa. Essa sua imagem permanece em minha memória, como uma história que não quer apagar, insinuando o enredo de que o prazer da vida não está em vivê-la, mas em achar um motivo para viver.


O autor, Carlos Laranjeira é jornalista. Nasceu em Maragogipe, estado da Bahia. Iniciou sua carreira no Jornal da Bahia, em 1967, escreveu mais de 800 artigos sobre literatura, política e o pensamento de Santo Agostinho veiculados na Internet e imprensa escrita do Nordeste, do Grande ABC, da capital paulista e do interior do Estado. É autor de diversos livros.

Contatos: carlos.laranjeira@uol.com.br
Rua Secondo Modolin, 410
Jardim Maria Cecília
09720-610 - SB do Campo - SP

Página Publicada em 22/dez/2004