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O homem da casa*

(* 1o. Lugar no Concurso Nacional de Contos "Newton Sampaio" 2003, Governo do Estado do PR)


Jeanette Rozsas


Acordo com o barulho irritante do despertador. Mais um dia longo e atribulado à frente. Como tantos outros que se foram e que virão. Saio da cama, procurando não fazer barulho – simples questão de sobrevivência conjugal. De mau humor já basta o meu.

Enquanto tomo banho, tento lembrar o que sonhei. Não consigo. Pensamentos mais prementes me obrigam à realidade: compromissos, contas a pagar, problemas, mais contas a pagar, e a reunião daqui a pouco com toda a diretoria da empresa. (só de pensar, sinto o estômago remoer.) Ah, já lembrei do sonho: as crianças reclamando que quase não me vêem. É por isso que acordei nesse mau-humor todo. (a maldita culpa). Mas algum dia eles vão entender que não é por escolha própria, que para manter uma família há que se trabalhar como um cavalo. (se ainda eu tivesse parentes ricos, alguma herança para receber...) Eles dizem que nas outras famílias é diferente, os pais participam. Ora (dou de ombros), outras são outras,  na minha tem (desligo o chuveiro) que ser assim, os filhos que tratem de se adaptar.

Seco-me depressa (se nem sexo mais dá para fazer, o que dizer...) e pego a roupa no cabideiro, preparada na véspera, assim ninguém me amola dizendo que acordou por que fiz barulho, pulo para dentro das calças. (...então de lazer: cinema, teatro, um papo com a turma, jogar conversa fora, falar abobrinha...) Quando vou fechar o zíper, o maldito custa a subir. (...nessas horas, dá uma saudade dos tempos de faculdade...) Enfio o cinto pelos passadores, prendo a respiração e fecho no terceiro botão...(só tinha que estudar, mais nada.) Falta-me o ar. Tento o segundo.(... e pensar que eu vivia reclamando...) Melhor um pouco. Jantares de negócios, coquetéis, happy hours, que de happy não têm muito. De uns tempos para cá, parece que a vida se resume a um grande e complexo negócio, todo mundo reclamando que desse jeito não dá, aonde é que a gente vai parar? (...é, eu era feliz e não sabia.) Eu me pergunto quando a balança vai parar, não a comercial, mas a que tenho no banheiro. Um bom começo seria acabar com as incursões à geladeira em meio a noites insones. Freqüentes.(nada de cigarro, bebida, comida, o que mais?).  Num gesto decidido, resolvo fechar o cinto no primeiro furo e respiro com alívio.

Calço o mocassim de camurça, troco pelos sociais de pelica, ficam melhor ( se ainda sobrasse dinheiro, mas nem isso...) amarro os cadarços. (parece até que sou máquina, pôrra). Pasta, documentos, água de colônia, pin da empresa na lapela.

Na cozinha,  (onde é que enfiaram os fósforos?) amorno o café e tomo de um gole enquanto corro as manchetes do jornal. (todo mundo dorme, só eu que dou duro nessa casa) Queda do presidente do Banco Central, ações em baixa, (e nem sei se dão tanta importância, contanto que eu assine os cheques) escândalo no governo, corrupção (começo de aulas, então, é terrível, com todo o material que essas escolas inventam) violência nas ruas, levante dos sindicalistas.

Meu horóscopo: o dia vai ser especial se você se mantiver sintonizado. (não acredito nessas bobagens, mas o novo gerente, não sei, não, melhor ficar de antena ligada)  

Acendo o único cigarro do dia. Promessa. Para ser quebrada daqui a menos de uma hora e meu lado místico me recriminar: é por isso que as coisas não andam bem.   

Desço as escadas a pé, para compensar o aumento de peso. Pressão, colesterol, enfarte, previsões negras do meu cardiologista.

Nem bem piso o último degrau, vejo que esqueci a pasta com todo o material da reunião de hoje. (putamerda!) Dessa vez não há como dispensar o elevador:  subo, coração começando a acelerar e mais uma vez vem a voz do cardiologista a me aporrinhar: cuidado com o estresse. Na sua idade, qualquer enfartozinho é fulminante. (a zica que volte para ele três vezes). Resolvo que vou mudar de médico. Quase sete e meia! Se o trânsito estiver ruim é atraso na certa; por outro lado, não posso ir à reunião sem minhas anotações para apresentar o novo produto da linha, mostrar seu bom desempenho. (e o meu também, o que é mais importante.) Depois dos quarenta, o emprego sempre por um fio. Acontece todo dia: gente antiga na firma sendo mandada embora, não adianta argumentar que se tem família para sustentar. E daí? Todo mundo tem. O que precisa é (tiro um pé de sapato e coloco como anteparo, impedindo que a porta do elevador se feche)  se superar dia a dia, (entro em casa pulando numa perna só e agarro a pasta que está bem em cima do aparador) exercitar os nervos, mostrar calma, (volto para o elevador e calço de novo o sapato) dosar a adrenalina e evitar o enfarto (por sinal, está na hora de fazer outro ergométrico). O vizinho de baixo, que estava esmurrando a porta, (grosso, será que não pode esperar um minuto...?) entra no elevador e eu o brindo com um sorriso inocente.

O tempo está correndo. Voando. Chegamos na garagem, despeço-me do vizinho, que mal responde (até que ficou puto com razão, eu também ficaria), entro no carro e ligo o rádio, música agradável para relaxar. Desligo.  No caminho, vou remoendo a corda-bamba em que sempre me equilibrei: faculdade, estágio, emprego, mestrado,  casamento, um filho, doutorado, outro filho, novo emprego, fim do primeiro casamento, ponto. Intervalo: a inevitável terapia de grupo e as noites no barzinho single.

Novo parágrafo: segundo casamento, reação negativa dos meninos, mais terapia de grupo e agora também ludoterapia, quase mais um filho, sabiamente evitado. Mas tenho ou não tenho o direito de ser feliz? Os problemas aumentam e os gastos, em proporção direta. A empresa investe na saúde de seus funcionários. (será mesmo...?) Exige exames anuais. Qualquer alteraçãozinha significa um sorriso preocupado do diretor-presidente, seguido de um sinto-muito-mas-vamos-ter-que-prescindir-de-seus-serviços. O máximo que fazem é um acordo mentiroso para que se possa levantar o fundo de garantia. Pergunta: É justo? Resposta: Sem resposta. E o casamento. Se é uma parceria, por que só uma das partes tem que se esfalfar para trazer o dinheiro no fim do mês? Está bom, perdeu mais uma vez o emprego e não está conseguindo outro (e nem se esforçando...) Pergunta: É justo? Resposta: Às vezes  acho que não, mas eu sabia que ia ser assim, ao menos dava para intuir. Topei a parada, me apaixonei, e depois, quem é que quer viver sozinho? Experimentei um tempo e não gostei, tanto assim que precisei casar de novo. Divorciar mais uma vez, nem pensar. Só pioraria as coisas: um terço do salário a título de pensão e solidão again. Chega! Cheguei. Bem na hora. Dez para as oito. Ainda bem que o trânsito estava livre.

Guardo o carro na vaga. Pego a pasta, arrumo a lapela do casaco, desço, bato a porta, constato que esqueci as chaves no contato, abro a porta, pego a chave, bato, tranco, corro, já estou quase no elevador. Agora falta pouco, penso para me consolar, enquanto o coração parece que vai sair pela boca. Subitamente, estanco, como se um breque de mão me acionasse com toda a força. Como um imã, começo a voltar. Sei que é puro atavismo, por isso mesmo mais forte do que eu. Deixo de lado qualquer tentativa de reação. Retraço o caminho, volto para o carro, destranco a porta, abro, entro, sento, ajeito o espelho retrovisor no meu ângulo de visão e me examino. Uma boa escovada no cabelo, um retoque no batom, que pesco no fundo da bolsa, um toque de blush e desço do carro, confiante. Agora sim, posso enfrentar quantos homens houver na reunião da empresa. Até o presidente.

 


A autora, natural de São Paulo, é advogada e escritora. Escreve contos, crônicas e romances. Vem recebendo inúmeros prêmios em concursos literários, inclusive no exterior (Portugal e Estados Unidos). Participa de várias antologias. Integra o grupo Contares, de contistas paulistanos, com três coletâneas publicadas: “Contares”, “Novos Contares” e “Contares conta o natal”. Publicou, pela editora vertentes, o livro de contos - solo "Feito em silêncio", premiado no concurso de obras publicadas da Academia de Letras de São Lourenço. Acaba de lançar o romance “Autobiografia de um Crápula”, pela editora limiar. É colaboradora de diversos sites web. Foi diretora da UBE no biênio 2000/2002. Exerce importante atuação cultural junto a inúmeros clubes de São Paulo como diretora cultural (Club Athlético Paulistano e ACESC - Associação de Clubes Sócio-Desportivos de São Paulo). é uma das organizadoras da maratona cultural ACESC, evento conjunto com a Secretaria de Estado da Cultura.

Contatos: jeanbe@uol.com.br

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