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A Tríade do Inferno

 

Ruy Câmara

 

Meio dia. A luz intensa rompe um escampado de nuvens brancas e penetra por entre os galhos do cedro sem folhas. A sombra se move de um lugar ao outro, açoitada pelo vento escaldante. Pisando nela, um par de olhos famintos sobre quatro patas raquíticas. Traquina com os olhos. Deseja abocanhá-la em vão. Nesse cenário de miséria e delírio tudo que se move existe e se existe ou é alimento ou ameaça. Uma decisão quase negada, talvez a última, diz de si para si mesma: vai caçar um bicho! Da sombra saem dois vultos, um Menino tísico, cabeção e asmático, seguindo um Cão esquálido e rabugento, cor de raposa. Os dois tomam um rumo qualquer. Tudo é caatinga. Prosseguem sem esperanças. No íntimo pressentem que um êxito qualquer exterminará tudo de uma vez por todas. Do modo como o Cão está farejando, o Menino pode adivinhar onde está a vítima, o sustento de um dia infeliz, certamente o último. Num trocar de passos o Cão fica estático e atento. Contrai-se sobre o esqueleto quase visível. Rastros de um vivente exausto de fuga continua ali, grudado à terra rachada. A aparição inoportuna do Menino é ignorada pelo Cão, que continua farejando no rastro do que supõe ser uma solução ou o caos. “Se o Menino acertar a pedrada eu morrerei de fome”, raciocina o quadrúpede com egoísmo. Sem disfarçar o entusiasmo o Menino prepara o arremesso. O Cão levanta as orelhas, o rabo, fareja o ar como quem respira indícios de sobrevivência. Um chiado sobre folhas secas denuncia-se. O silêncio agônico do momento imobiliza os parceiros. Segundos de espera. O vivente agora é reconhecido pelo mais desprezível e envergonhador meio de existência: rastejar de fome sobre o próprio ventre e às escondidas. O Menino alegra-se com a possibilidade. O Cão nem tanto. Sabe por experiência própria que a caça não será repartida. Contudo, espreita o momento certo para o ataque. Desesperados como estão os parceiros já ultrapassaram a condição de aliados e logo, logo se tornarão inimigos. O Lagarto pressente que tem agora um só destino: escapar. O farejador apronta-se numa posição estática sobre três patas. O Menino pára no preciso instante em que seu pé de apóio esmaga um graveto teso de sequidão. Nessas horas tensas o estalar de um graveto pode ser o fim. Num esforço extenuado o Menino alonga-se por cima do arbusto e joga a pedra no local suspeito. Em disparada fuga vai o Lagarto e na perseguição o vira-lata perde-se de vista. Seus latidos ecoam no espaço. “Acua, acua”, grita o Menino, já em marcha corrida na direção do comparsa. No desespero salvífico o Lagarto entoca-se num buraco entre um pedregulho e um formigueiro e aí mantém-se quieto como se tivesse plena consciência de que sua vida está numa situação crítica. Os latidos do Cão aumentam o desespero de quem passou de caçador esfomeado e solitário à caça. “É um Tejo” grita o Menino atiçando o Cão, que no íntimo desconfia do seu proveito. Ambos sabem que algum êxito vai depender do esforço conjunto ou de muita espera. Mas a fome não pode esperar. O Menino expectora os brônquios, corta uma vara de marmeleiro e começa a estocar. O Cão permanece numa inquietação feroz, mostrando os caninos ao buraco em desespero. Lambe em seco o focinho goela adentro e torna a ladrar. Da toca sai um cheiro de banquete ameaçado. Acuado, o Lagarto respira fundo na esperança de empreender uma nova fuga. Pela demora da decisão deve estar ciente de que desta vez não sobreviverá inteiro. Agora que se acomodou na toca ocorreu de ter uma idéia: seu rabo tornará a crescer se conseguir cortá-lo. Mas precisa ser rápido para ludibriar o olhar e o faro obscuro da fera. Num ato de superação instintiva o Lagarto ergue-se por cima do dorso, alcança a cauda e com a dentição afiada, corta-lhe um pedaço para saciar a gana do inimigo no momento da fuga iminente. Cansado pelo esforço hercúleo e esvaindo-se em sangue, ainda acredita ser possível saciar o desejo voraz do inimigo para desaparecer na imensidão da caatinga. Só o instinto é capaz de ignorar que a sobrevivência em tais condições é uma utopia impossível, indigna da mais medíocre lógica. O Lagarto reúne todas a forças e de repente um chiado corre em desesperada fuga e desaparece na caatinga, deixando nas presas do esganado boa parte da sua cauda. Duas bocadas e pronto. Em segundos a catástrofe planejada fora devorada sem remorsos. O Menino olha para o companheiro com desprezo e raiva. Está completamente desnorteado. O Cão está quieto, desconfiado, com o rabo entre as pernas em posição de medo. Por certo lembrou que na semana anterior não tivera direito sequer ao esqueleto da última vítima. A ossada torrada e pilada fora misturada à farinha de mucunã e comida pelo Menino. Em toca segura o Lagarto contorce-se na dor secreta, desejando a desgraça ruir sobre os inimigos. Apesar das dores ele começa a lamber a ferida com o orgulho máximo de quem se presume sobrevivente. Distante da toca o Menino começa a delirar sob o firmamento aberto, de onde vem um brilho escaldante. A sede aumenta. Mirando uma sombra ele jura vingança ao seu parceiro, que se deita ao lado fingindo arrependimento. O Menino olha para o Cão como se quisesse lhe dizer que a dor e fome nas plagas sertanejas são irmãs gêmeas, como gêmeos são o egoísmo e o ódio. As horas passam devagar. O espetáculo mórbido parece ser o prenúncio de uma grande tragédia, uma tragédia sem culpados, sem testemunhas. Súbito o Menino sangra o Cão e bebe-lhe o sangue. Em seguida come-lhe a carne. O calor aumenta, vêm os engulhos, os delírios, e um tombo é ouvido na caatinga. Já é quase noite quando o Lagarto aproxima-se lambendo o espetáculo mórbido. Nesse espetáculo é custoso admitir que a morte é um caos sem providência divina, nem que a seca no Nordeste do Brasil é só um problema de incompreensão.

Leia também as crônicas do autor:
[Um Dia Sem Pressa de Acabar]
[Águas Mortas]


O romancista, dramaturgo e sociólogo brasileiro Ruy Câmara ao completar 40 anos em 1990 abdicou da sua promissora carreira empresarial, encafuou-se em sua biblioteca e passou a se dedicar exclusivamente ao ofício literário. Após 11 anos de intensa produção, em 2003, ele surpreendeu o cenário intelectual com Cantos de Outono, o romance da vida de Lautréamont, que foi finalista do prêmio Jabuti 2004 e receberá no dia 22/07/2004 o prêmio nacional da Academia Brasileira de Letras na categoria de Melhor Romance de Ficção. O próximo romance, O Alfarrabista, será publicado em 2005.

Contatos: ruycamara@uol.com.br
Sítio Web: www.ruycamara.com.br/novo

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