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Casa da Cultura - Literatura - Contos |
Airosa e trigueira a Zoé. Vivia numa minúscula ilha lembrada de Deus e esquecida do mundo, lá pros lados do nordeste. De lá nunca havia saído. De limite conhecia o azul. Por cima, o céu, que raras vezes se tornava cinzento. Caminhando, que direção resolvesse tomar, ia dar no mar.
Nos pés costumava usar sandálias urdidas com a tala das palmeiras que se desenvolviam na ilha com exuberância. De roupa- o decote atrevido quase deixava desnudos os peitos pequenos e duros- ou era uma túnica de croché que dava acima dos joelhos, feita com o mesmo cordão cru com que teciam as redes de pescar ou era uma túnica de tecido do algodão branco, que chegava na barca grande quando o dono da única venda do lugar mandava trazer. Quando homens, mulheres e crianças já estavam com as roupas em trapos eram encomendadas as peças do tecido de algodão que uniformizava os moradores. Quem chegasse na ilha, coisa que quase nunca sucedia, veria um bocado de pontos brancos se movimentando. Homens, mulheres, crianças. Corpos morenos cobertos de branco e pouco.
Dos dias, Zoé passava horas e horas amarrando cordão para as redes de pescar. Desse ofício é que aprendeu a tecer as túnicas de croché que ela e as outras mocinhas usavam para cobrir o corpo. Até completar os treze anos ela misturava-se com as outras garotas do lugar. Olhos de um verde amarelado, cabelos lisos e escuros, sem trato, corpos esguios, braços fortes que conheciam a força dos remos.
Quando a noite começava a se fechar sobre a ilha e as primeiras estrelas piscavam ainda com timidez, ia se formando um belo espetáculo repetido a todo chegar de noite, a que os moradores, sem faltar um, nunca se cansavam de contemplar. Era quando um vento ligeiro vindo do leste agitava com ternura as folhas das palmeiras provocando uma suave murmúrio que se misturava com o ruído das ondas do mar. Uma a uma, iam as pessoas juntando-se em grupos, faziam fogueiras, rodas de prosa e de cantigas. Falavam, riam, conversavam, contavam histórias, cantavam. Outros iam para debaixo das palmeiras mais escondidas e faziam amor no embalo das ondas do mar, cobertos unicamente pelo véu da noite, negro e polvilhado de brilhantes. Outros, crianças ainda, dando alegres risadas, corriam atrás dos siris que procuravam se esconder formando buracos na areia.
Quando inteirou seus treze anos, Zoé precisou rasgar um de seus poucos vestidos de algodão branco para absorver seu sangue de moça. E desde então, quando todos se reuniam na praia para, mais uma vez, estarem presentes ao espetáculo do anoitecer, ela passou a ficar só. Voz e olhar perdidos. Longe de todos, olhos fitos no céu ou no mar, para ela o tempo carecia de importância. Quando chegavam os dias de lua cheia, mais cedo corria para a praia. Lá ficava enquanto durava a lua no céu. Sozinha. Muda. Era como se esperasse por alguém que nunca vinha. Todos já haviam se acostumado com aquela solitude.
Então aconteceu uma noite sem lua, sem estrelas e de muitos raios e trovões, na qual até o mar parecia haver perdido sua serena intermitência. As palmeiras, movidas pelo vento forte estavam todas viradas para o norte. A areia fina era levantada em forma de redemoinhos. Sem preocupar-se com a tempestade, Zoé cumpriu sua rotina de ir para a beira do mar. E enquanto contemplava os raios que caiam na água como espadas de fogo, num clarão avistou um barco sacolejando próximo às pedras. Mesmo de longe ela soube que era barco estranho. Correu até lá. Com seus dezessete anos de mar quase sempre calmo ou quase nunca arrebatado, ela sabia como conter um barco desarranjado. Num instante, ela o arrastou até a areia úmida e o amarrou com destreza num dos paus que sustentava uma barraca de sapé. Dentro do barco, deitado, não sabia ela se morto ou não, usando apenas um calção preto, estava um homem diferente de todos que ela já havia conhecido. Junto dele, agarrado que nem uma criança, uma coisa grande, esquisita, que luzia como ouro. Pulou para dentro da embarcação e verificou que o homem respirava. E foi com o clarão dos raios que notou que ele tinha pele clara, cabelos louros e longos, presos num rabo de cavalo.
A chuva começou a cair com força. As ondas ficaram mais altas e barulhentas. O vento parecia decidido a levar todas as folhas das palmeiras. Zoé permaneceu olhando o desconhecido com a mesma intensidade que costumava olhar o céu e o mar no cair da noite. Acompanhou cada movimento de sua respiração durante horas. Então, o vento calou, a água parou de cair e o sol apontou no seu lugar de sempre, mostrando um céu de um azul puro, lavado. Quando já não se via mais nenhum barco na praia é que o homem acordou. Zoé nem acreditou quando ele abriu os olhos e ela viu aquelas enormes bolas azuis. Tentou falar alguma coisa, mas não conseguiu. Sentiu que era encarada, primeiro com surpresa, depois como se fosse uma peça rara. E foi com olhares que se entenderam. O homem não compreendeu palavra alguma que a moça proferiu. E, quando esse balbuciou alguma coisa foi a vez da moça ficar por compreender. O sol foi chegando no meio do céu e os dois ainda se olhavam imanizados. Quando veio a fome, Zoé foi com ligeireza a seu barraco e pegou algo que os dois pudessem comer. Quando acabaram de comer, o homem pegou o estranho objeto que luzia no sol e tocou uma suave melodia, com os olhos fixos nos olhos de Zoé. Depois tocou outra, mais outra, mais outra, sem importar-se com as pessoas que chegavam e postavam-se ao redor da barraca. Foi assim até o cair da noite, quando mais um espetáculo desenhou-se na praia. No momento em que o cansaço dominou os homens que estavam habituados a buscar seu sustento aos primeiros sinais do nascer do dia, mansos, um a um, foram saindo para suas casas, acompanhados de suas mulheres, de suas crianças. E os dois passaram o resto da noite como querendo absorverem-se com o olhar.
Se ele havia chegado ali perdido, se procurava abrigo da tempestade, ou se escondia-se de algo escabroso, ninguém nunca soube. Fazia-se mudo que nem Zoé olhando a noite. Sem incomodar pessoa alguma, foi ficando. Com a música de seu saxofone contribuía para aumentar a magia do espetáculo do anoitecer. Passou a usar as sandálias e a roupa branca que a moça oferecera-lhe e com ela aprendeu a fazer redes de pescar. Terminada a lida de cada dia, iam para a praia e ficavam olhando-se fundo nos olhos. Ele tocava sua música, e, no momento em que ficavam de novo completamente sós, buscavam o abrigo das palmeiras para se abraçarem, numa junção de corpos e olhares.
Ninguém sabe quanto durou. Se meses, se anos... Um dia Zoé voltou a ficar sozinha olhando a noite depois que o homem de cabelos longos e louros e olhos muito azuis recolhia-se com seu instrumento, após encantar a todos com suas melodias.
Aconteceu quando não era noite e nem ainda era dia. Uma fileira de barcos na beira da praia já se movimentava em direção ao trabalho no mar. O homem louro colocou seu calção preto, pegou o objeto esquisito que luzia como ouro, arrastou o barco que havia ali chegado numa noite de tempestade e partiu.
Dos dias, Zoé seguiu passando as horas fazendo redes de pescar. Muda. Com os outros comunicando-se só com o olhar. E, quando acontecia o anoitecer, ela se punha a olhar o céu e o mar. Quem a via no seu silêncio, imaginava que estivesse à espera de alguém que custa a chegar.
A obra: Este conto recebeu as seguintes premiações: 1º
lugar em Mogi das Cruzes/SP; 1º lugar em Santos/SP; 2º lugar em Varginha/MG;
Menção Honrosa em Salvador/BA; Menção Honrosa em
Boa Esperança/MG; Menção Honrosa em Peso da Régua/Portugal.
A autora, Terezinha Almeida Melo Pereira, é membro da “Academia
de Letras de Pará de Minas”, cadeira 21. É autora do romance
"Em confidência", colunista do Jornal Diário de Pará
de Minas, foi também colaboradora de diversos outros jornais. Participou
de inúmeras Antologias, é tradutora e contista premiada.
Contatos: terezapereira@nwm.com.br
Página Publicada em 23/02/2006
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