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Caía a tarde, célere sobre o róseo infinito da paisagem quando vi uma lágrima desangustiada desprendendo-se lavrada dum rosto enrugado e aparentemente grelhado pela chuva do sol que ardeu o relento daquela cidade morta, recheada de insalubridade em cada esquina de sôfregos amotinados em raças.
Pendeu-me o destino instantaneamente desarvorado, revolvi a memória longínqua retraída a distancia onde passeara longe daquela imaginação obstrutiva de júbilos, e suspirei num jeito mórbido de subornar a alma para não esfiar a lágrima como aquela mãe desajeitada que não suportou o seu próprio vício.
Uma mãe com um grito delido roçando-lhe as costas pelos vistos seu filho preso num fio de seda que já foi capulana e pendurado como se fosse uma mochila num colo decapitado dos ombros já murchos e a cair devagar num fogo demolidor de aços com fumos de maledicência.
Aproximei-me devagar sentindo ao longe o tremor da terra escancarando a boca e devorando-lhe viva desde os pés enterrados descalços até a alma mais recôndita no subterfúgio naquele escasso universo insidiado; e o hálito da morte desbravando os sentidos em cada gesto improfícuo simulado na perceptível fuga inadiável para desafogar a imaginação.
Desarrumei o soalho vulgarizado pela natureza onde o homem não ousou enterrar a pedra e sosseguei o corpo desfalcado sem fogo para não ondear o medo sobre a dúvida e cristalizei-me.
Entre nós
só deduzia-se um sigilo intransigível mesmo pelo vento que nos
grudava. Sussurrei-lhe bem alto para não rotular o silêncio.
- Boa noite senhora
Desmanchou por completo os lábios, olhou-me impávida como se
fosse uma ignóbil formiga que se atreve a morte inevitável por
debaixo dum pé ambulante desprotegida.
Descativou uma lágrima e agravou as valas macias do rosto quando o
caudal subiu-lhe, alagou-se, mergulhando-se depois naquele caqui pegajoso
não de lágrimas e adormeceu.
Insinuei-a já com novos agasalhos de palavras emotivas e abrandantes
para uma mãe que já sentiu na dor um grito sangrento entre o
delírio e a morte.
- Boa noite mamã. Levantou-se e retorquiu
- Mamã eu? Só tenho um filho, este sem pa...
Não tardou o dilúvio nos olhos, já imaginava tudo que
tinha por dizer mesmo sem aqueles mares para libertar toda aquela angústia
que sufocava o peito daquela mãe improvidente que não via a
claridade do seu suor em descalabro. Aqui também divulguei a incontinência
da emoção mesmo com as asas na mente a desbravarem o silêncio,
solucei.
Verdes,
Verdes são as árvores
desbravadas em silêncio
que tombam a chiar
e tombam entre as matas
densas de vegetação
esquartejadas em raças.
E prontos,
o silêncio não era o alvo almejado enquanto cativarmos as palavras,
nem a importunação pelo revertimento sequioso da angústia
por um pai invergonhado, trabalhador a ganhar um filho mundano.
Mesmo assim reverdecemos estendendo o dialogo na monção de suspiros
eu aí feito um zarelho pertinaz a mendigar o pouco da desgraça.
- Mamã que aconteceu?
Regurgitou uma lágrima perene, último manjar disponível
para desmotivar a fome e replicou:
- Pai dele filho, pai dele... que nem gostaria que o simulasse por engano
ou ignorância num gesto igual ao dele se não evapora daqui e
prontos. Evacuou-nos pior doque estamos com este filho dele, o filho que ele
mesmo gerou e o nega agora porque ganha trezentos contos que não pode
dividir com o seu próprio sangue, para dar a quem? È filho dele,
definhado, carcomido e sugado pelas lágrimas da vida na alvura negando-lhe
a paternidade. Será que fugir é solução?
Suspirou profundamente desterrando arduamente o ódio e engoliu uma
coisa bem palpável desta vez aliviando a fome lá no fundo do
vácuo.
E a noite ia içando por um lado a sua brumosa espuma sobre o universo
enquanto o luar subia invisivelmente entre o fulvo da textura horrenda crucificado
no azul do céu, assim juntos cobertos do mesmo lençol da vida.
- Mamã o que faz para viver?
- Viver? delido assim! Sobreviver filho, como servo dos mundanos, empregada
da esquina, uma pobre sorrateira para ganhar porrada.
- Porrada?
- Sim, porrada! Senão aceito alargar esta família porrada meu
filho, sem onde queixar é só cumprir, aliás quem sou
eu aqui? Logo nesta casa infame dos malfadados e desempregados...
Suplicou penosamente o cataplasma enquanto uma lágrima contínua
e desagradável na indignação do seu casamento escorria
as valas que o tempo insano sulcou naquela mulher desalentada para drenar
a sua esperança.
É fértil
a lágrima sobre os olhos
florindo verde o silêncio
no desespero duma mãe incorpórea
favos de ossos decompondo-se
sobre a lama fértil da solidão
com um bebé gordo
coladinho na boca
sugando-lhe as gengivas para sobreviver.
E o filho sereno,
espertinou os olhos articulando os vigamentos da ponta à ponta e bradou
como se uma lágrima da mãe coçasse-lhe dolorosamente.
Encostou-lhe do lado esquerdo do peito e com a mão entre os favos vazios
de alvéolos que já foram mamas engoliu-lhe a chucha presa entre
os dedos que pelo seu desuso suplantava a involução.
Chupou, chupou, chupou e adormeceu enquanto ela também coligia sonhos
para empandeirar profundamente as lembranças dos dias lúgubres
e indeléveis como estes e tantos. E não desatremar nem manchar
a esperança adiada para amanha.
- Chau, visite-nos mais e sempre que poder... despediu-se ela e retirou-se ciente que algo tomara a sua plenitude desvigorando a marcha dos nossos consolos e imergiu-se naqueles andrajos do corpo que ao mesmo tempo cobre quando dorme fingindo que não sente nada e sucumbiu no vento, a necrópole das desgraças.
Já não podia mais perpetuar a estadia ali enquanto rubra a esperança
de renovar a presença dia seguinte.
Devastei avenidas sem fim, errante à busca dum conhecido meu que tolerasse
um sôfrego a desoras onde o vulgo taxi não rastejava o asfalto
àquela hora, rogando-lhe um abrigo por uma noite esfalfante e inolvidável
como aquela.
Terminada a marcha, esgotos de água arrebentados, tais modernos rios
dos nossos ratos assim como farrapos e recados velhos como abrigos incônditos
das nossas crias despistavam-me sem êxito o acesso àquela porta
já matizada.
- Boa noite João
- Oooh! Faz favor, entre; a quanto tempo!... entre, não aconteceu alguma
coisa pois não, ahhh... você não mudou, sente-se, então...
E prontos, foi o reacender das boas lembranças num reencontro intempestivo
onde pressagiara que velhos amigos não se esqueceriam em dias como aqueles.
Descabiam-me manjares àquela hora, aliás quem suportaria tantas
paciências? Faz favor!
E mesmo inconfortável a dessuetude da esteira numa fétida e módica
sala escura apertando-me até a própria alma servida com hombridade
por quem não podia dar mais que aquilo adormeci mesmo sem aqueles sonhos
habituais.
E ao despertar não esperei o café da manhã, retornando
e seguindo as pegadas que me levaram àquele sono a fim de retomar a amarga
conversa suspensa para mais um lote de esquecimentos.
Lá estava ela despertada e serena como quem planeia mais uma labuta e
quando se apercebeu da minha presença desprendeu os lábios e sorriu.
- Bom dia mãe, aqui estou de novo, ainda se lembra de mim?
- Como não filho, afaste alguma coisa aí e sente-se. Replicou
desfiando a carapinha desgrenhada e afastando intrusos grãos de arreia
despregadas que importunavam a visão limpa quando retornassem ao solo.
- Mãe, não vai acordar o filho, parece que já faz sol aí
e ainda mais há pessoas que querem...
- O quê? Acordar? Deixe-o filho, estatelado nesta rua dos malfadados e
desesperados. Chi, afinal elas não sabem? Deixe-o, vogar sobre o leito
que merece e se a morte planea-lo deixo-o vale a pena onde o sobreviver é
o alento do dia, oque acha que será dele?
- Pode vir a trabalhar e quem sabe até vir a ser um homem...
- Não filho, ontófago. Talvez um homem esbanjado pelas moscas
nas lixeiras à busca duma fatia que o pai farto trincou, mastigou, cuspiu
e atirou aos pedacinhos fora só porque não quer que seja seu filho
em casa aquele que ele mesmo gerou e não quis educar. Retorquiu com um
dedo em riste espumando o olho esmagado pelo ódio.
E num jeito de quem apercebera-se de tudo despertou de olhos embaciados sem
o fulgor das outras manhás, desordenando os lábios como quem chupa
o orvalho do universo esparso sem o catecismo dos outros meninos quando sentem
fome.
- Não quer comer o bebé?
- Que bebé? Este que até sabe afunilar a língua e sorver
pingos de desespero para sobreviver já que do leite não vem sortindo
a tempo, onde está o sangue num cataplasma filho? Ainda mais quem lhe
opinou deste alimento? Que continue filho de desafectos, de buscas , à
sorte porque eu...
Desflorei um silêncio coagido pensando no esplendor que raiava nos olhos
futuros daquele menino entregue à sorte e prontos.
- E agora não vai fazer nada já que a catadura do seu filho...
- Afogar-me na arreia com um filho nas costas e dois sacos de milho na cabeça.
Sacos dum sacana de patrão que não paga se não uma fatia
de pão que os cães dele chutam para dar este cãozinho igual
e ainda mais zombada com indizíveis palavras pungente e dolorosas para
um ambulante e o pai dele invergonhado numa boa.
- E ele nunca vos procurou assim... nem nada?
- Oquê? procurar? Só cruzamo-nos as vezes e vê seu filho
despiciendo na moina e apontando-lhe por um dedo amputado por um punhal de vergonhas.
- Acha que ele não sente vexame nenhum perante esta situação?
- Que vexame! Uma vergonha imputada a uma urgência descabida da vida,
e nós? Onde está o crisol de pai? Será que haverá
purgatório das inóspitas heresias modernas, corações
sujos como estes, invenção mordaz das palavras cruéis?
Onde está o atrito da vida para parar o cinismo? E o que é moral
palavra que todos usamos se quem a diz no momento não se atreve a dizer
onde morra?
- Está bem mãe, parece que o tempo...
Concluía exânime olhando para o relógio requestando-me as
horas para mais um dia de tráfego.
- Não, não se preocupe filho, um dia quando este sobreviver e
crescer, cruzarão as almas e gestos no mesmo asfalto disfarçados,
seus olhos catracegos derramando a angústia e o ódio, sobre as
mentes nas réstias de susto e desespero. Tristes revertendo gritos e
lamúrias das vozes já desencaminhadas pelo tempo e alguém
atento e ciente sobre o viço, levantando-se para dizer:
"aquele é o pai dele", para todos o verem.
Leia do mesmo autor:
[Ritmos
do meu povo, Poesia de Noé F Massango]
[Poesia:
Para Esta Fogueira De Letras, Noé F Massango]
O autor nasceu no Distrito de Zavala, Província de
Inhambane, situada a sul de Moçambique. Nasceu, viveu e cresceu numa
das mais ricas povoações culturais do seu país (povo
chope), universalmente conhecido pela sua cultura, música e dança
Timbila. É médico Clínico Geral graduado pelo curso de
Medicina na Universidade Eduardo Mondlane. É também músico
tradicional com várias participações televisivas, radiofónicas
e espectáculo. Colaborador /publicado em 5 jornais locais, 3 revistas
nos géneros de prosa, poesia e artigos de opinião. É
membro fundador da União Nacional dos Escritores (UNE), da Academia
Moçambicana de Artes Letras e Ideias (AMALI). E membro fundador da
organização (Jovens Pela Dignidade Humana – JDH) onde
é responsável pela área de formação dos
activistas e Informação.
Contatos: nmassan@health.uem.mz
nofima@yahoo.com.br
txiviti@hotmail.com
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