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A Guerra do Iraque
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Lobos reais e falsos cordeiros


Mônica Waldvogel

No caso, a fábula de Esopo, aquela do lobo e do cordeiro que bebiam no riacho, é exemplar (mais pelo lobo e menos pelo personagem que, aqui, desempenha o papel do cordeiro, você logo verá). O lobo bebe no rio e acusa o cordeiro, que bebia mais abaixo, de turvar a sua água. O cordeiro rebate: como turvar a água se ele estava mais abaixo da torrente? O lobo retempera o argumento – se não fora ele, teria sido seu pai. Em seguida, pula sobre o cordeiro e o come. É engraçado ver aqui, travestido de cordeiro, o sanguinário Saddam Hussein, mas é correto entronizar Bush como lobo.

Assim foi que loboBush acusou o (falso) cordeiroSaddam de ter armas químicas e biológicas de destruição em massa. Saddam jurou que não tinha, mas como a sua palavra não valia (e ainda não vale) um níquel, loboBush não acreditou. Frente ao mundo, loboBush disse que tinha todas as provas porventura necessárias para provar que cordeiroSaddam tinha as armas e ia incendiar e contaminar o mundo. Tanta foi a insistência, que muita gente começou a acreditar que podia ser verdade.

A oposição mundial aos falcões norte-americanos acusou loboBush de inventar moda para faturar, com seu secretário de Defesa Donald Rumsfeld, ambos aferrados e ligados a empresas da área petrolífera pouco aquinhoadas no Iraque de cordeiroSaddam (que preferia fazer parcerias com as empresas russas e francesas). LoboBush e loboDonald tiveram uma idéia genial: primeiro explodiam o Iraque, em seguida construíam tudo outra vez. E as empresas dos amigos deles, como a Halliburton, iam encher a burra de dinheiro.

No meio, havia alguns pequenos problemas. Dezenas (talvez centenas) de milhares de iraquianos morreriam na guerra de invasão e na guerra de resistência que se seguiria. Centenas (talvez milhares, a depender do tempo da ocupação) de soldados norte-americanos estão morrendo na guerra de resistência promovida pelos iraquianos inconformados com a invasão. Mas isso estava nos cálculos de loboBush e loboDonald. Para dizer a verdade, eles acharam friamente que valia a pena pagar (eu disse pagar? Errado: eles estão recebendo) o preço.

As contestações vieram com o tempo, cada vez mais evidentes, de que loboBush tinha mentido. Primeiro, na Inglaterra, seu primo lobo Blair já estava desmoralizado com a comprovação de que os relatórios secretos sobre a existência das armas foram montados. Nenhum relatório conseguiu provar que havia armas, nenhuma arma foi encontrada, nenhum local de fabricação de armas foi localizado. LoboBush não se apertou: em plena campanha pela reeleição, continuou afirmando que a comprovação da existência das armas era mera questão de tempo.

Agora veio a pá de cal, a confirmação final: mais de um ano depois, o chefe da equipe de buscas das armas químicas e biológicas em território iraquiano depôs anteontem no Senado e confessou que não encontrou o mais leve indício de armas. LoboBush saiu de banda. Disse que se cordeiro Saddam não tinha armas, nada o impedia de construí-las mais à frente. Ninguém acreditou e ele voltou à carga – disse que, com armas ou sem armas, cordeiroSaddam era um risco para a Humanidade. E declarou-se resolvido e completamente sem culpa de consciência.

Esta é uma história que soa inacreditável, eu sei. Se estivesse sendo contada por um romancista, você, leitor, recusaria o argumento e o livro, sob a impressão de que era tudo uma mentira global pouco crível, pouco palpável e sem consistência moral e política. Mas essa história aconteceu – pior, está acontecendo – e está se enterrando nos subterrâneos onde a ética não existe. E depois ainda tem gente que critica o povinho brasileiro.




Mônica Waldvogel é Jornalista. Artigo publicado no Jornal O Paraná em 09/10/2004, e reproduzido aqui com autorização do Jornal.

Página publicada em 09/10/2004