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Mas o herói ressuscita no final

 


Lola Aronovich


Ao contrário do que meu nome indica, não sou judia. Inclusive, estudei em colégio católico, já quis ser freira, mas faz tempo que concluí que, infelizmente, o discurso das religiões, em geral, fomenta mais ódio do que amor, mais guerra que paz (sem falar que sempre achei todas as religiões incrivelmente machistas). Então, graças a Deus, sobrevivi à escola católica e hoje estou bastante isenta da culpa imposta pela religião. Isso posto, fui ver “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, com plena consciência de que o fundamentalismo cristão tão em voga nos EUA apóia o filme, e de que ele está sendo acusado de anti-semita e homofóbico. Será que ele é? Contra os homossexuais, sem dúvida. Herodes é pintado como gay e o diabo usa maquiagem e lança olhares insinuantes a Jim Caviezel, que faz Jesus (depois descobri que Satanás, que mais parece aquela criatura computadorizada de “Senhor dos Anéis”, é interpretado por uma atriz, pra dar-lhe um look mais andrógino ainda). Contra os judeus, não tenho tanta certeza. Certo, eles pedem a morte de Jesus e são estúpidos, e Pilatos é que é um cara legal, mas pelo menos Judas se mostra arrependido de sua traição (e eu fiquei com pena dele). Além do mais, culpar os judeus soa contraditório. Afinal, a história oficial diz que Jesus veio pra cá pra morrer por nós e redimir-nos de nossos pecados (seja lá quais sejam, como diz o rapaz de “Eleição”). Ou seja, Jesus é um sacrifício de Deus para os homens. Sob este ângulo, ninguém além de Deus pode ser acusado de matá-lo. Claro, a gente pode especular sobre que Deus é esse que condena seu próprio filho à morte, mas o filme nunca suscita tal discussão. Porque “Paixão” fala da carne, não do espírito.

E quanta carne... Não me lembro de ter visto um filme tão violento, logo eu que amei “Kill Bill”. Outras aventuras com o Mel, tipo “Mad Max”, têm a violência dos quadrinhos. Mas esta de “Paixão” parece muito real e ininterrupta. Todo santo espinho, chicotada e prego recebido por Jesus é visto em close, em câmera lenta. Nem filme de terror é tão explícito assim. Ver tanto sangue e tortura é perturbador. Tudo bem, condenar “Paixão” por ser brutal seria hipocrisia, já que toda a religião cristã é baseada nesses símbolos sangrentos. Não foi o Mel que inventou. Só não sei qual o propósito de se fazer um filme tão visceral. Tá, o propósito de qualquer filme, mesmo dos clássicos, pode ser questionado. Mas “Paixão” não traz salvação nenhuma. Vamos ver: o verdadeiro horror não é se escandalizar com o que fazem a Jesus. É se escandalizar se fazem isso com qualquer um, ponto final, até com um psicopata demente como Barrabás. Ou a pena de morte é aceitável em alguns casos? A ideologia dominante por trás de “Paixão” (e da sua fonte, a Bíblia) vem à tona quando um dos dois criminosos na cruz diz que ele merece tudo isso, ele sim merece ser punido e sofrer, mas Jesus, não. Sério? O outro ladrão ri e instantaneamente é castigado por um corvo que lhe arranca os olhos. Isso é que é dar a outra face? Esse é o Deus misericordioso? Se bem que esta violência em si não é enfocada, apenas sugerida. Pode crer que se o corvo atacasse Jesus veríamos a cena em todos seus detalhes.

Mas vamos à minha parte favorita da análise, que é a reação do público. Olha, não ouço tanto choro no cinema desde “ET”. O pessoal realmente se comoveu. Lógico que alguns devotos não viram necessidade de se desligar do mundo material, e até atenderam seus celulares durante a sessão. Mas foram minoria. Assim que “Paixão” terminou, ouvi o espectador do meu lado dizer que este era o melhor filme de toda a sua vida. Já eu saí da sala meio em estado de choque. Não entendo nada de budismo, por exemplo, mas sinto que uma religião que tem como símbolo um gordo meditando pacificamente deve passar valores bem diferentes de outras por aí que glorificam o calvário de um barbudo se esvaindo em sangue. O Mel soube captar bem essa relação sado-masô. Minha aposta é que o filme vai ser encampado pelas religiões cristãs por ser fiel à barbárie descrita no Novo Testamento.Como o papa disse, “é como foi”. O velhinho deve saber.

[Leia também o artigo de Henrique Chagas sobre o mesmo filme]


Lola Aronovich, professora de inglês e cidadã de Joinville, é cronista de cinema para o jornal A Notícia desde 1998. Atualmente cursa na UFSC mestrado em Literatura em Língua Inglesa, com linha de pesquisa em literatura e cinema.

Seu site sobre cinema é http://www.lost.art.br/lola.htm
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Telefone: (47) 434-0196

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