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Seção de Contos da Casa da Cultura |
Desde aquela tarde azulada de sua meninice em que se voltou para o horizonte e pensou que as nuvens eram uma frota de buques encalhados em torno da cidade, Franco as colecionava. Ou pelo menos era o que respondia, quando lhe perguntavam a que se dedicava: coleciono nuvens, dizia com a gravidade de quem conhece as intenções ocultas não só de seu ofício, se não do mundo, para logo esboçar um gesto aéreo e misterioso, similar a um riso. As pessoas lhe devolviam a careta e se afastavam dele com pressa, gaguejando, ansiosas por enredar-se numa prática banal, sadia ao final de contas. Franco via-as se afastar e não podia mais que evocar nuvens, diáfanos estratos reclamados pela distância a que pertenciam. O gesto aéreo quedava-se impassivelmente fixado em seu lugar.
Idêntica ao calendário cristão, a vida de Franco dividia-se em dois grandes hemisférios históricos: a. C. e d. C., ou seja, antes da câmera e depois da câmera. No primeiro se amontoavam postais e recortes de diários e revistas, toda uma infância consagrada a apropriar-se das nuvens alheias: nuvens brancas e cinzentas e marrons e negras e sépias e inclusive verdes, matutinas e vespertinas, delgadas e robustas, límpidas e listradas, em urbes fulgurantes e sobre intempéries sulcadas justamente pelos rastros de uma civilização nebulosa. Franco recordava com insólita claridade a reclusão voluntária em seu quarto, as horas reduzidas a uma vertigem de cortes de tesoura que haviam ofuscado as tentações do exterior – a ida ao cinema com os amigos do colégio, a partida de futebol no parque – e que se dissolvera ao pisar território proibido: as enciclopédias que uma tarde, ante o aluvião dos gritos paternos, não lograram ocultar suas páginas mutiladas. Recordava também as chamadas a amizades e parentes que se comprometiam a enviar-lhe postais daqueles lugares – dos céus, particularmente, só porque era filho único – por onde viajavam, o dinheiro usado para subornar o jovem carteiro que lhe permitia escolher bilhetes postais cujos remetentes seriam recebidos com completa perplexidade: por que nunca escreve, por que promete algo e não o cumpre? Os filmes no cinema agradavam-no, sem dúvida, sempre quando transcorriam em paragens descobertas, ao ar livre; o firmamento devia ser o protagonista. Masturbou-se pela primeira vez no banheiro de uma casa de campo; o orgasmo, acelerado pela imagem da chuva que enchia o horizonte mais do que os bicos dos seios de uma prima entrevistos na piscina, chegou com a raiva de uma tormenta e o deixou estendido sobre os mosaicos durante uma eternidade, enquanto a água arrastava seu sêmen como o vento arrasta as nuvens. Em geral, seus sonhos eram luminosos, de uma leveza celeste, porém, em certas ocasiões, uma condensação, espécie de nanquim, colava-se a essa transparência e o despertava, ofegando, consciente de haver sofrido um pesadelo que não podia reconstruir. Um pesadelo, cismava, ou um eclipse?
O segundo capítulo de sua biografia estava governado pela câmera e a obsessão por capturar nuvens – suas próprias, íntimas nuvens, já que possuía a curiosa certeza de ter esgotado o acervo das demais –. Sua mãe o presenteou com a primeira Canon, um fetiche fiel que o acompanhou ao longo da precoce adolescência e que evocava com carinho cada vez que via a foto inaugural: captada desde a enorme janela de seu quarto, uma nuvem solitária suspensa no meio do céu como símbolo de uma época demasiado tórrida, demasiado irrecuperável. Inoculado pelo vírus da fotografia, Franco entregou-se de corpo e alma a uma febre que lhe concedeu uma oportunidade única: redescobrir a abóbada celeste, o que equivalia a dizer o mundo – seu mundo, que era o que importava –. Todas, absolutamente todas as nuvens eram acessíveis: alguém podia apoderar-se desse orbe etéreo simplesmente acionando o disparador: clic e pronto. Clic e uma aurora invernal desvelava seus milagres nebulosos. Clic e fixava-se um pôr-do-sol transformado num armazém de algodões sanguinolentos. Clic e as fotos empilhavam-se na habitação e logo no estúdio de Franco. Clic e a pessoa que pedia seu retrato passava a ser um pretexto para continuar com essa sorte de pilhagem espacial; haviam pessoas que, ante as imagens que Franco lhes mostrava, tocavam os pescoços para se certificarem de que não haviam sido decapitadas: suas cabeças apareciam invariavelmente desprendidas de seus corpos, relegadas a um ângulo inferior, meros esteios sobre os quais descansava o firmamento que era o personagem principal. Pouco a pouco a lente de Franco se esqueceu do pretexto humano e concentrou-se no que se poderia chamar um voyeurismo de altura. Câmeras, mulheres e amizades foram e vieram; o objetivo, contudo, permaneceu incólume.
A oferta de trabalho em uma célebre revista de viagens caiu, literalmente, como uma benção do céu. Editores, repórteres e fotógrafos nunca haviam visto tal dedicação, semelhante renúncia a tudo o que não se relacionasse com a visão voltada para o alto. Se continua com as nuvens vai acabar com torcicolo, advertiam, e Franco esboçava seu gesto aéreo e acionava o disparador. Logo ganhou o respeito dos colegas mais exigentes, uma admiração não isenta de inveja e certa dose de lástima; sua reputação, para usar um lugar comum, subiu como a espuma, ainda teria gostado de dizer – num arrebatamento nada comum de afetação – como a umidade que se transforma em chuva. Por encomenda da revista percorreu lugares que o impeliram a queimar, numa tarde de nostalgia e whisky profundo, os postais e recortes acumulados na meninice; descobriu cidades e povos e desertos e mares e selvas que nunca havia concebido e de onde sempre regressava satisfeito, ávido por revelar os filmes que cresciam no equipamento como estranhos tumores. Uma meia-noite em Nova York, atento ao impetuoso espetáculo das nuvens espatifando-se no alto dos arranha-céus, decidiu que deveria fazer algo com sua vida, isto é, com as centenas de fotografias que abarrotavam a casa comprada nos arredores de sua cidade natal. Começou assim a catalogar imagens, a dar-lhes ordem e seqüência, em busca de um padrão que não tardou em achar. Pediu férias – nunca as havia tirado antes – e viajou metodicamente, com o firme propósito de capturar a hierarquia nublosa: nimbo-estratos, cúmulos, estrato-cúmulos, cúmulo-nimbos, alto-cúmulos, alto-estratos, cirro-cúmulos, cirro-estratos, cirros.
Ao voltar, não foi difícil que ele encontrasse galerias dispostas a exibir sua biografia em clave etérea. Artigos e críticas entusiasmadas tampouco faltaram.
Clic. Clic.
Colecino nuvens, acostumou-se a declarar, porque sou todas elas.
Clic, clic, clic.
Uma noite, ao chegar em casa, um tempo depois de terminar de organizar seu terceiro livro (Esboços do céu protetor), esvaziou na banheira o conteúdo dos garrafões de plástico, comprado no dia anterior. Escolheu suas melhores fotos e as distribuiu pelo banheiro, onde se trancou acompanhado da garrafa de whisky. Despiu-se cerimoniosamente, masturbou-se em memória do horizonte obscuro que havia precipitado sua primeira ejaculação, afundou-se na banheira e começou a beber. Antes de acender o fósforo que deixaria cair no lago de gasolina onde boiava, pensou na fagulha inicial e disse a si mesmo que a vida havia valido a pena para alcançar esse momento. Pensou que assim, convertido triunfalmente em nuvem – efêmera, de vapor, sim, mas ao fim e ao cabo uma nuvem –, poderia unir-se às existências que haviam controlado cada um de seus atos para sobrevoar os sítios a céu aberto recortados durante a infância, esses terrenos baldios que acolheriam com júbilo o rastro de uma sombra dócil e veloz.
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["El coleccionista
de nubes" o texto original desta obra em espanhol]
O autor
MAURICIO MONTIEL FIGUEIRAS (Guadalajara, México, 1968) publicou conto, poesia, ensaio, crônica, tradução e crítica literária e cinematográfica nos principais periódicos e revistas do México, assim como no Canadá, Chile, Colômbia, Estados Unidos, Espanha, Inglaterra e Itália.
É autor de cinco livros de contos: Donde la piel es un tibio silencio (1992), Páginas para una siesta húmeda (1992), Insomnios del otro lado (1994), La penumbra inconveniente (2001) e La piel insomne (2002). Publicou também os livros de poesia, Mirando cómo arde la amarga ciudad (1994) e Oscuras palabras para escuchar a Satie (1995), e um livro de ensaios, Larga vida a la nueva carne (2003).
Foi incluído, entre outras antologias, em La X en la frente (1995), El Occidente de México cuenta (1995), Dispersión multitudinaria (1997), Una ciudad mejor que ésta (1999), Los mejores cuentos mexicanos, edición 2000 (2000), Se habla español. Voces latinas en USA (2000), Points of Departure. New Stories from Mexico (2001) e Los mejores cuentos mexicanos, edición 2003 (2003).
Tem se destacado como editor de revistas (Biblioteca de México, Cambio) e suplementos culturais (Nostromo de Siglo 21; Crónica Dominical de La Crónica de Hoy; sábado de unomásuno). Atualmente é colaborador das revistas Letras Libres y Día Siete, colunista do suplemento Crónica Cultural, secretário de redação da revista M. Museos de México y el mundo e membro do Sistema Nacional de Creadores de Arte.
Conquistou, entre outros, o Prêmio Nacional de Poesia Jovem “Elías Nandino” (1993) e o Prêmio Latino-americano de Conto “Edmundo Valadés” (2000). Foi bolsista do Centro de Escritores “Juan José Arreola” (1999-2000) e do Fondo Nacional para la Cultura y las Artes (1993-1994 e 2001-2002).
El autor
MAURICIO MONTIEL FIGUEIRAS (Guadalajara, México, 1968) ha publicado cuento, poesía, ensayo, crónica, traducción y crítica literaria y cinematográfica en los principales diarios y revistas de México, así como en diversos medios de Canadá, Chile, Colombia, Estados Unidos, España, Inglaterra e Italia.
Es autor de cinco libros de relatos: Donde la piel es un tibio silencio (1992), Páginas para una siesta húmeda (1992), Insomnios del otro lado (1994), La penumbra inconveniente (2001) y La piel insomne (2002). Ha publicado también dos libros de poesía, Mirando cómo arde la amarga ciudad (1994) y Oscuras palabras para escuchar a Satie (1995), y un cuaderno de ensayo, Larga vida a la nueva carne (2003).
Ha sido incluido, entre otras antologías, en La X en la frente (1995), El Occidente de México cuenta (1995), Dispersión multitudinaria (1997), Una ciudad mejor que ésta (1999), Los mejores cuentos mexicanos, edición 2000 (2000), Se habla español. Voces latinas en USA (2000), Points of Departure. New Stories from Mexico (2001) y Los mejores cuentos mexicanos, edición 2003 (2003).
Se ha desempeñado como editor de revistas (Biblioteca de México, Cambio) y suplementos culturales (Nostromo de Siglo 21; Crónica Dominical de La Crónica de Hoy; sábado de unomásuno). Actualmente es colaborador de las revistas Letras Libres y Día Siete, columnista del suplemento Crónica Cultural, secretario de redacción de la revista M. Museos de México y el mundo y miembro del Sistema Nacional de Creadores de Arte.
Ha ganado, entre otros, el Premio Nacional de Poesía Joven “Elías Nandino” (1993) y el Premio Latinoamericano de Cuento “Edmundo Valadés” (2000). Ha sido becario del Centro de Escritores “Juan José Arreola” (1999-2000) y del Fondo Nacional para la Cultura y las Artes (1993-1994 y 2001-2002).
O tradutor
O tradutor, Leonardo Vieira de Almeida, nasceu no Rio de Janeiro, em 1971, e cursa o mestrado em Literatura Brasileira na UERJ. É autor do livro de contos Os que estão aí, Ibis Libris, 2002, e de contos publicados no suplemento literário Rascunho, do jornal do estado do Paraná, no jornal Panorama e no sites literários Paralelos e Bestiário.
Contatos:
E-mail: leonardo33vieira@yahoo.com.br
Publicada em 27/10/2004
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