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Casa da Cultura - Literatura - Contos |
Um dia, vi um desenho da minha sobrinha Camila; era uma árvore, que ao invés de ter folhas e maçãs, havia uma enorme mão verde. Senti inveja, nunca imaginaria desenhar algo assim.
De repente, escuto alguém dizer:
– Que vergonha, como pode invejar uma criança – era o tronco da árvore, que estava me condenando. A mão verde saiu do papel, trazendo-me para o desenho.
Não sabia o que dizer, estava com medo e com vergonha. Disse:
– É que eu queria criar coisas bonitas e originais. Gostaria de ter a sensibilidade de uma criança.
– Não convenceu. Como castigo, nunca mais terá imaginação.
– Tenha clemência, por favor!
– Então tá, mas terá que passar por num desafio.
– Qual?
– Terá que escrever uma história.
– Não consigo.
– Tente.
– Você vai me dar lápis.
– Não, é só pensar que as palavras irão aparecer.
Não tinha jeito, viajei aos lugares remotos de minha consciência. Queria recordar de algumas história que fiz, porém o nada reinava.
Decidi mudar de tática, pensei no agora. Frases soltas, imagens sem sentido e a vontade de fazer uma boa história começaram a se aglomerar, tornando-se num mosaico.
***********
Um pensamento vivo surgiu do nada na mente de Bernardo. O menino fazia de tudo
para não pensar nele. Sentia raiva:
– Sai dá minha cabeça!
– Por quê?
– Odeio você.
– Vamos ser amigos.
– Não quero ser seu amigo.
Bernardo inventou um punhal de pirata e furou o coração do pensamento. " Não é gente e nem bicho". Depois, foi brincar de videogame na casa de um colega.
Anos depois, Bernardo, ao andar pela rua, encontrou uma moça diferente. Altura mediana, magra, mestiça de olhos verdes claros. Andava tão leve, que parecia flutuar.
Ela o olhou e ele sentiu ardência nos olhos, como se tivesse entrado areia neles. Neste dia não fazia calor, apesar de ensolarado.
A moça o perguntou sorrindo:
– Quer ir a minha casa?
O rapaz ficou surpreso com o convite; nunca tinha visto aquela moça. Decidiu ir, apesar de estar receoso.
A casa onde Maria morava era antiga e espaçosa, mas não chegava a ser uma mansão; dava para escutar o barulho do mar e do vento e havia uma biblioteca com um acervo bem variado. Bernardo não gostava dos ruídos do vento e do barulho do mar, deixavam-no triste. Na casa de Maria os ouvia e se lembrava de coisas que nunca até então lhe importavam. Queria ir embora; não conseguia.
Quando viu o mal estar de Bernardo, ela perguntou:
– O quê realmente gosta de fazer?
– Não sei.
– Nunca se apaixonou por algo ou alguém?
– Por quê você me pergunta isso?
– Curiosidade.
– Você é estranha. Como se chama?
– Maria.
– O meu é...
– Bernardo, já sei.
– Como?
– Conheço você há muito tempo.
– De onde?
– Não vou dizer.
– Tá legal. Sua casa é tão silenciosa, parece ser tão triste. Como consegue viver aqui?.
– Eu gosto daqui. O silêncio me faz bem. Por quê não passa uns tempos aqui? Vai gostar.
Decidiu morar um tempo com Maria. Sempre fora uma pessoa sozinha. Abandonava e era abandonado. Nunca brigou; suas relações de amizade ou namoro, se acabavam simplesmente.
Maria o atraia. Nunca se sentira assim e isto não era cômodo. Ela o fazia pensar.
– A quem você engana?
– Do que está falando?
– Nunca sabe nada. Vive como um autômato.
– O quê é isso?
– É uma pessoa que vive automaticamente, não pensa ou nunca reflete.
Outro dia, Maria disse que gostaria de ser uma luz, para ir a lugares inimagináveis . Bernardo achou graça:
– Nunca quis mudar, aliás, nunca pensei nisso.
A família do rapaz, no início, ficou preocupada. Sair de casa, para morar com uma moça, que conheceu a poucos dias.
Mas depois, viram a modificação de Bernardo. Estava menos apático em família; antes, sua relação com os pais sempre fora maquinal.
Percebera o tempo. Sentiu-se envelhecer.
Começou a ter consciências de seu atos, os quais antes tinham passado despercebidos. A sua memória era nula. Bernardo crescera por crescer.
Viajaram para um lugar montanhoso. Maria tinha uma cabana, sem luz elétrica ou água encanada; havia um poço nos fundos, perto do início da mata.
Bernardo nunca tinha visto escuridão que só se vê no campo. O mais assustador eram os ruídos dos bichos noturnos e o barulho da mata e das árvores. Era tudo rústico e intensamente vivo, que a imaginação do rapaz funcionava a mil. Tinha pesadelos com monstros, espreitando ao redor da cabana e com as estrelas brilhantes lá do céu lhe caíssem na cabeça.
Nuca se esqueceu dessa viagem de sua vida.
Um dia, recordou-se do que fez, quando era criança. Sentiu remorso; nunca antes vivenciara tal sentimento.
De repente, a revelação surgiu diante dos seus olhos:
– Maria, você foi o pensamento que matei. Veio se vingar?
– Eu já me vinguei. Fiz você pensar e a sair da inércia.
– Fiz por fazer, desculpa.
– Já te perdoei a muito tempo.
– Você abriu minha cabeça. Agora, não paro de pensar. Não sei se lhe devo agradecer ou não. Sinto-me vivo , mas ao mesmo tempo, amaldiçoado.
– Gostaria de ter sua ignorância de volta?
– É mais prático ser ignorante. Você me faz confuso.
– Que bom que faço você sentir.
Bernardo nunca mais parou de pensar.
***********
– Gostou?– perguntei aflito.
– Interessante. Eu faria melhor, mas você tem um certo talento.– respondeu a árvore.
– Fui absolvido.
– Sim, vai embora.
A mão me pegou de novo e me jogou de volta para o meu quarto. Estava assustado. Escutei alguém me chamar:
– Tá na hora do almoço.
– Já vou.
Desci e não contei a ninguém o que aconteceu.
Leia alguns contos curtos do autor:
[Barriga Errante]
[Vidas Simples]
Eduardo Oliveira Freire é formado em Ciências Sociais.
Mora no Rio de Janeiro.
Contatos: dudu.oliva@uol.com.br
Página Publicada em 11/fev/2005
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