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Casa da Cultura - Literatura - Contos

Filosofia sobre a solidão em tarde de outono

Nilza Amaral

Era fim de tarde quando ele acabou na calçada, coberto pelo jornal com manchetes das últimas chacinas do mês. Um mendigo. Sujo, feio, asqueroso, poluidor da paisagem.Vi quando caiu, e eu medroso, me aproximei do  homem do asfalto,  talvez movido pelo insólito do caso, mas quando o toquei  o corpo já estava rijo. O toque me deu um arrepio de asco. E se ele tivesse alguma doença contagiosa, um vírus mortal desses de última geração, esse mendigos andam tão sujos que bactérias devem habitar cada mícron  de pele de seus corpos. Por uns momentos analisei a situação. Cães vadios como ele prestavam-lhe uma última homenagem, dando-lhe uma cheiradinha mais alongada. Transeuntes ocupados, garotos de michê, travestis desempregados, putinhas mambembes, desfilavam sob o viaduto malcheiroso. Ele quedou sem nome, pensava eu,  uma ponta de solidariedade incompreensível  me espetando, esse fulano sem pátria, nômade como todos os mendigos do mundo,  vítimas da fome, do álcool, das drogas, da miséria. Quem sabe, talvez até de uma doença qualquer. Seu nome poderia ser João, o que batizou Jesus, poderia ser o próprio, ou Yassef, quem sabe talvez Ivanovitch, ou Zé, ou ocê ai. A morte  iguala a todos. Mesmo na violência. O nômade anônimo fincou raízes sob o viaduto, plantou seu caixão feito estante, o sofá despencando, o fogão de tijolo, onde assava ratos. Um dos roedores ainda permanecia esturricado no espeto improvisado. Heranças para o próximo infeliz. Era um Fulano. Viveu na grande cidade e nela desapareceu, continuei na minha filosofia, exacerbando uma piedade desconhecida mas já incipiente. E estranha, visto que acostumado ao individualismo egoísta das cidades grandes jamais perdera tempo com o próximo. Descendente de outros suicidas da capital, os sem pátria, talvez esse tenha amado a sua vida, apreciado o nascer de sol, arquitetado sonhos,  afinal está aí, aparência  tranqüila na sua inércia.. Como os outros anônimos, já não é mais brasileiro, ou turco, ou nordestino, ou judeu, ou negro. Ou mulher. Os excluídos não têm pátria, nem sexo, muito menos identidade. Era apenas o abandonado na calçada da cidade de pedra, ao entardecer de um outono cinza,  coberto pelo jornal com manchetes de crimes, objeto de desejo dos cães e dos farejadores da morte. Deve ter sido religioso. Sobre a estante de caixote, descansava uma bíblia, junto a um terço engordurado e esquisito de apenas algumas contas. Bem até os mistérios religiosos mudam com o passar do tempo.Um prato de alumínio, um garfo e uma xícara desbeiçada, dormiam dentro de um balde com água suspeita. Não pude deixar de folhear a sua bíblia, examinar-lhe os pertences, tentar descobrir quem era ele, achar uma foto, um bilhete, um indício. Estranhamente a solidariedade calcava forte, deverá haver alguém no mundo que se entristecerá com essa fatalidade. Entre as páginas  encardidas, uma foto, um recorte de jornal amarelado.A figura de uma menina, ou de uma boneca, quem sabe um anuncio de jornal, com as legendas apagadas.

Eu não sabia desvendar o mistério. Não sabia cantar o seu canto de morte,  de solidão, pois não conhecia a língua em que deveria ser cantado, não conhecia a balada dos mendigos. Um lance de vento em espiral levantou o jornal e anexou mais um tanto de poeira ao corpo inerte do sem nome. Por um instante seus olhos arregalaram, talvez os últimos espasmos da morte.

Com a chegada da noite, outros habitantes do mundo subterrâneo foram chegando, se aproximando, envolvendo o nômade inerte num circulo humano e silencioso, de consideração e resignação. Não notei curiosidade em nenhuma das feições que o abandono e o desespero tornam iguais. Talvez por isso. Todos parecidos, todos nômades anônimos, moradores do nada, indo para lugar nenhum. O bando juntou alguns pedaços de madeira, jornais velhos, lixo, trapos, e acenderam um fogo. Resolvi fazer parte daquele velório. Na doença e na morte devemos ser  solidários.Como nos campeonatos mundiais de futebol quando o nacionalismo amarra os habitantes em laço forte. Talvez também nas eleições quando a emoção coletiva desperdiça votos, movida por estranhas manifestações patrióticas.. Enfim, está escrito no manual do bom cidadão que tais atos são cívicos.

Aquela noite seria de expurgação. Afinal era uma noite de guerra. Numa guerra em que o Fulano perdera, talvez a guerra contra a fome. Dispensaria outros programas para me dedicar à entrega daquela alma, sem ajuizar que um mendigo a mais ou a menos não faria diferença no status quo da cidade. Não nessa noite em que o fantasma empoeirado do sentimento, habitante do meu inconsciente, havia se revelado. Os companheiros da má sorte bebiam cachaça, cuspiam, respiravam ofegantes de cansaço interior. Não cheguei ao extremo de provar da cachaça, só o seu cheiro me bastava.

Nada falavam. Contemplavam. De quando em quando um deles mudava o corpo de posição, folgavam as roupas sujas do inanimado ali estirado, e voltavam à sua caneca de cachaça, ignorantes do ato  de que cadáveres não sentem aflição.

Lá pelas dez da noite um furgão carregado de gente parou sob o viaduto, o motorista  abriu a porta traseira, pessoas saíram do interior, montaram uma bancada na calçada, um grande caldeirão de sopa quente foi colocado sobre o cavalete e o bando de mendigos em fila recebeu um prato de sopa e um pão. Mecanicamente, como se o acontecido fosse um ritual em dias marcados. O calendário do morto de fome. Eu me aproximei dos distribuidores do alimento, que me olharam curiosos, e expliquei que velava o corpo inerte do pobre coitado jogado lá no chão. Não me responderam. Mas um estranho sorriso despontou no rosto do motorista. Não estranhei aquele sorriso amarelo achando que era um sinal de aprovação pela demonstração dessa  fraternidade espontânea. Em seguida da maneira como chegaram todos  se foram, depois de desmontada a parafernália da sopa.

Amanhecia quando aconteceu. O morto ergueu-se assustado. Os mendigos acordaram com a chegada do sol. Restos da fogueira enegreceram o chão e o corre-corre cotidiano das grandes cidades instalou-se. O ressuscitado espreguiçou-se, estirou-se, e com voz rouca perguntou aos outros por quanto tempo desmaiara. Um deles, com cara de mais esperto, respondeu-lhe irritado, ora seu, já lhe disse que não é desmaio, é catatonia, rigidez muscular.

Ora, então era isso, e eu havia perdido a minha noite, desperdiçado a minha solidariedade, ensaiara o ato da fraternidade, enfim, fizera o papel de idiota. Boas ações nunca combinaram com meu egoísmo atávico. Levantei-me cansado, fui até meu carro, voltei fiz o que tive vontade,  e já em casa em meu confortável apartamento tomei uma ducha demorada para livrar-me de toda a sujeira da noite.Um riso idiota escapou-me frente ao espelho. O susto do mendigo ao ser atingido pelo meu soco de direita veio-me à lembrança. Garanto que na próxima vez ele pensará duas vezes antes de ficar catatônico, pensei com os botões da minha camisa Valentino. Evitaria daí para frente, encontros bizarros sob o viaduto. Porém, um espinho ficou atormentando o meu íntimo. A alfinetada da solidão, essa agonia que nos leva a estranhas avenidas, começava a instalar-se sorrateira. Um espinho e uma imagem, ou melhor duas imagens: o corpo estirado do mendigo que teimava em aparecer às minhas costas todas as vezes que me olhava ao espelho, e a face assustada de uma menina com feições de boneca, traços apagados e olhar triste, refletida fracamente num dos ângulos do cristal.


A autora Nilza Amaral Antunes de Souza é escritora e professora de Línguas e Literaturas, nasceu em Piracicaba e fixou residência em São Paulo, onde terminou seus estudos superiores. Lecionou durante 25 anos em escolas particulares e estaduais, aposentando-se como professora de Inglês. Participou e venceu diversos concursos literários. Sempre dedicou especial atenção à Literatura Urbana e à crítica social. Romances publicados: A Balada de Estóica, O Dia das Lobas, Modua Diabolicus, Amor em Campo de Açafrão, O Florista, M Meia Lua e Esmalte Vermelho (e-book). Foi durante 2 gestões diretora da União Brasileira de Escritores, SP e diretora da REBRA – Rede de Escritoras Brasileiras..

Contatos: laniz@ig.com.br

Página Publicada em 01/abr/2005