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O menino que atravessava paredes!
Elaine Perli
Imaginou o lugar né?
Denso, casa pequena porta destrancada, Maria sem-vergonhas com a cabeça para fora, no jardim, pedras redondas roladas pelo caminho faziam a trilha do portão à casa. Uma cortina de renda branca com laço de fita amarelo, centrada, vidraças fechadas.
Com a neblina também vem o frio e o misterioso mistério.
A sala tem chão polido, conforto e samambaia de metro com a cadeira de balanço embaixo... a tia diz que é pra facilitar a dormida. Acho que a samambaia faz carinho enquanto a gente dorme.
Tem imagem do Sagrado Coração, tem cidreira benzida, tem copo de vidro emborcado e pimenta curtida, tudo exposto ali, para proteção.
No canto tem duas portas, dois quartos se abrem em paralelo. Num tem cama de gente grande, com penteadeira e espelho, vaso com margaridinha e flores do campo, guarda roupa com cabides barulhando e porta rangendo, dois tapetes isolados que aquecem os mesmos pés pela manhã, colcha de fita larga e crochê, o quarto exala lavanda, no cantinho uma cadeira antiga entalhada, da janela vejo o mundo com neblina e sons, é uma viagem na alma do tempo.
No outro, tem cama de criança, colcha de retalhos bem feita, bola de capotão num canto, pendurado no teto, balança aquele 14 Bis de madeira que o tio deu, no chão polido e atapetado a caixa de lápis de cor, muitos tons e formas sobre as folhas soltas, o caderno todo desmembrado, mesmo contra a vontade da mãe, junto aos lápis os soldadinhos de chumbo e a bailarina, o carrinho de lata, um mundo de rei e herói, de damas e fadas, de floresta encantada, o ar frio venta pela fresta da janela entreaberta.
A bruma lentamente toma seu espaço, vai ocupando, invadindo o mundo do menino, penetrando nas paredes, no movimento do avião, no tecido da colcha, no brilho do chão polido, no pó do lápis de cor, no branco das folhas de desenho, na cabine do carrinho de lata, intervém no espaço tempo, cria uma dimensão suspensa, a bailarina submerge, os soldados perfilam-se, tudo depreende sentimento, dos desenhos elevam-se os castelos, as árvores, os cavalos e cavaleiros, a alma do menino ganha o mundo, a vida do menino é ascensa, transpõe.
Ele vence o mundo e as paredes.
Só a bola de capotão num canto chora pela volta das chuteiras que lhe dão vida.
(Setembro de 2002)
Leia também as poesias da autora:
[O
Rabiscador]
[Por
Terra, Tombamos]
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