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A Menina e o Gato Gordo
Maria A. S. Coquemala
A menina já nascera diferente, resultado talvez de alteração genética que a Ciência ainda não explica, ou, quem é que sabe? Um enigma que somente pela fé se pode decifrar. Espírito de luz de volta ao planeta, energia um dia desfeita e agora refeita sem perda da grandeza de gerações passadas. Assim queria a avó eclética, misturando crença e meia-ciência.
Pequenina, já indaga sobre os seres do universo. E extrapola: se olha uma estrela, vê galáxias. Na areia da ampulheta, vê desertos, o desfilar de camelos no ondulado das areias, oásis, tâmaras ao sol, beduínos...O comum é incabível na sua pequenina mente privilegiada.
A vida transcorre sem pressa, o tempo flui preguiçoso, quase só presente, sem antes, sem depois, entre descobertas, o gato e as bonecas, a tristeza inexistindo. Gato gordo que ronrona felicidade à sombra das mangueiras, ouvindo silencioso as histórias da menina, sempre divagando, perguntando, mas os olhos felinos são dois faróis baixíssimos, se perdem entre as palavras e o sono irresistível... São tantas as perguntas sem respostas... Vê a lagarta virando borboleta, a nuvem se tornando chuva... E vê um dia o avô enregelado partindo para sempre... Quer explicações. Mas vive agora apenas com a quase calada avó e o gato na casa imensa entre o jardim e as árvores do pomar...
Um dia, a menina vai à praça. O vento, ou a estrela, ou a coruja com quem conversa à noite, talvez o avô em sonhos, ou a entristecida avó entre orações, o certo é que ouvira falar sobre o homem humilde que afirmava saber nada, mas tudo descobria através de indagações. Leva uma rosa, colhida ainda com o orvalho da manhã. Um presente. Quer saber sobre o avô, sobre a chuva e as lagartas.
Faz perguntas ao homem rodeado de gente na praça da cidade. Que parece de partida. Estranhamente, algumas pessoas choram. Tem uma taça na mão. Diz se chamar Sócrates. E, como ele, é filósofo, ama a sabedoria, busca a verdade. Desfolha na taça a rosa da menina, a olha pensativo, meneando a cabeça,
- Houve um tempo, faz tempo, em que pensei que alguma coisa eu soubesse. Hoje, só sei que nada sei. Procura conhecer a ti mesma.
E sorrindo, mastiga as pétalas da rosa, que ele chama de cicuta...
- É psicótico... Porém inofensivo... Assim falava o homem todo vestido de branco. São ainda inexplicáveis os caminhos que levam à loucura... Mas tem algo de santo, de iluminado, como aquele outro, morrendo em nome do Saber...
Lentamente, o tempo ganha algum passado, o gato gordo já não dorme à sombra das mangueiras, a avó o enterrara no jardim, onde crescem agora margaridas brancas, mas com ele a descuidada avó enterrara também a alegria da menina, a vida se impregnando de saudade... Está em algum outro lugar, afirma ela, querendo consolar, muitos são os caminhos do Senhor... Palavras de difícil entendimento. Debalde a menina perscruta o céu entre as galáxias... Debalde procura na ampulheta, no deserto, entre camelos, no oásis, nas tamareiras, junto aos beduínos... O gato não está em canto algum.
Então ouve falar do outro homem, um professor ensinando na escola da colina, os discípulos sempre interessados. Vai até ele, leva o presente, outra rosa orvalhada, fala da chuva, da lagarta, do avô, do gato e da procura, e de não saber como conhecer a si mesma...
- As mesmas leis regem o suceder das estações, da noite e do dia, do calor e do frio, da tempestade e da bonança... Também os seres vivos, gatos e humanos incluídos. Um determinismo de que ninguém escapa. A Natureza se transforma. Sempre. O processo é eterno. O gato se transformou em margaridas...
A menina não alcança o entendimento completo das palavras, por mais que se esforce, ainda não se conhece bem, há que melhorar como aconselhara o outro, aquele Sócrates que mastigara sua rosa chamando-a de cicuta. Mas sorriem todos para ela, conta mais sobre o gato gordo que ouvia suas histórias cochilando sob a mangueira, ganha palmas dos alunos... O professor a leva para casa, agora interessado, vê as margaridas, a avó, pensa no gato e na enterrada alegria da menina. Vai voltar, promete.
Mas a avó já lhe fala de outro homem, o que curava cegos e ressuscitava mortos, bastava ler o livro sagrado, ali o encontraria em seus ensinamentos, mas o homem encontrado na leitura embora ame os pequeninos como ela, tem um reino que não é deste mundo, talvez por isso nada encontre sobre o avô, nem sobre o gato gordo enterrado pela avó e brotado em margaridas...
É domingo, o tempo ganhara mais passado, as mangueiras se cobriram de frutos amarelos, lagartas são agora borboletas aos pares no jardim... O professor da colina está de volta, conversa com a menina, conta a história do gato gordo, o dela, que gostava das gatas bonitas dos vizinhos, ia lá namorar nas noites enluaradas, e fazer filhinhos. Todos os seres vivos deste mundo se transformam, sim, chegando a vez de cada um, como acontecera com o gato se transformando em margaridas, depois que a avó o enterrara no jardim. Mas os filhinhos, agora desprotegidos, precisam de ajuda. Um cão enorme na vizinhança late ferozmente à noite, fazendo-os tremer de medo. E o vento da madrugada traz muito frio. Precisam das mãos de uma menina pra alisar os pêlos, contar histórias como as que o gato gordo ouvia. Por isso, ele está ali, quer lhe oferecer os gatinhos...
A vida transcorre sem pressa, o tempo flui preguiçoso, quase só presente, sem antes, sem depois, entre descobertas, gatos e bonecas, a tristeza inexistindo. Os gatinhos gordos ronronam felicidade à sombra das mangueiras, ouvindo silenciosos as histórias da menina, sempre divagando, perguntando, mas os olhos felinos são faróis baixíssimos, perdem-se entre as palavras e o sono irresistível...
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[No dia em que AF subiu ao telhado]
Maria A. S. Coquemala é professora de Língua e Literatura Portuguesa, especializada em Lingüística. É autora de Naná e o Beija-flor, (literatura infanto-juvenil, primeira edição já esgotada, mas a segunda em preparo). E Círculo Vicioso (contos, para adultos) lançado na última Bienal do Livro em S.Paulo. Escreve respondendo a um impulso de criação artística.
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