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Casa da Cultura - Literatura - Contos |
- Bom, então a senhora tá me dizendo que ele tentou te matar, e não é a primeira vez. É isso mesmo que eu tô entendendo ?
- Não, de jeito nenhum, quer dizer ... não sei se o senhor compreende, mas ele não faz essas coisa por mal. É só quando ele tá agitado, preocupado com alguma coisa ... aí, ele bebe. Não bebe uma nem duas não, doutor, ele bebe muito, até quase cair. Então, ele chega assim, desatinado.
- E isso ocorre com que freqüência ?
- Como assim, doutor ? Quer saber se é todo dia ?
- Isso mesmo. Numa semana, por exemplo, quantas vezes ele fica assim, sem controle ?
- Ah, doutor, eu acho que ele só fica assim a partir de quinta-feira. Aí, parece que tá com o diabo no corpo, é outra pessoa. Mas no começo da semana, lá pra segunda e terça, parece um anjo, o senhor tem que ver. Se bem que já me bateu numa quarta, mas nunca mais aconteceu. Foi só uma vez, quando teve o baile lá no terreirão.
- Tá bom, mas deixe eu lhe perguntar uma coisa: a senhora quer ou não quer que eu registre uma ocorrência por agressão ? Veja bem, o que a senhora tem que entender é que a gente também não pode fazer papel de bobo. Outro dia mesmo a senhora teve aqui pra mudar um depoimento ...
- Não, doutor, o senhor me desculpe, eu também não quero é incomodar vocês. Mas aquele acontecido foi outra história, o senhor pode até perguntar pro inspetor Teixeira, que foi quem me recebeu e ouviu tudinho, tudinho, do início ao fim, e sabe muito bem que eu não sou mulher de brincadeira, e nem tô aqui pra complicar a vida dos outros e nem pra caluniar nem difamar ninguém. Mas foi uma razão diferente, porque foi o dia que ele olhou pra vagabunda da Mirtes e ...
- Tá, tá, agora me escuta. Não me interessa qual foi o motivo, o que importa é que a senhora já esteve aqui mais de dez vezes, eu puxei aqui nos arquivos, e sempre é o mesmo motivo: agressão. Por outro lado, a senhora voltou mais um monte de vezes pra dar outro testemunho, e acaba que a denúncia é arquivada. É por isso que eu tô perguntando, pela última vez: a senhora vai querer levar isso adiante ou não vai ?
- Doutor, deve de tá acontecendo alguma confusão, eu nunca que ia prejudicar o trabalho de vocês, tá me entendendo ? As vez que eu tive aqui foi porque ele tinha mesmo perdido a cabeça, acabou me batendo muito, e eu tinha que me defender, num é mesmo ? Mas depois a gente acabava que se entendia, ele chegou até a chorar de arrependido, o senhor tinha que ver só, parecia uma criança, e gemia, gemia de dá dó. Mas hoje ele abusou, o senhor pode até ver pela minha cara, nunca ficou tão inchada assim, e nas outras vez ele batia muito é nas costa, na barriga, num abusava da cara, não, porque sempre dizia que mulher dele num era pra ficar marcada pros outros vê. Por isso que eu tô aqui hoje, doutor, o senhor me perdoe se eu tô incomodando de novo, mas hoje ele perdeu a razão; ah, se perdeu !
- Tá bom, tá bom, então vamos lá. A senhora começa a falar aí, diz como é que tudo começou.
- Bom, eu tava sozinha em casa, era mais de onze hora, e ele ainda num tinha chegado. Como falei, doutor, hoje é terça-feira, ele num costuma chegar tarde, eu até que estranhei, mas acabei deixando pra lá. Mas aí eu tava esperando ele pra pegar um dinheiro e dá pro seu Antônio. Num sei se eu cheguei a dizer, mas o seu Antônio é o moço que fez um reparo na laje lá de casa, faz mais de uma semana.
- Sim, e aí ?
- Aí que eu já tava ficando sem jeito, eu num gosto de ficar devendo a ninguém, não, pode ser amigo, parente, o que for, porque a gente tem que ter palavra, que é uma coisa que ninguém tira da gente, não. E aí eu tava muito preocupada, porque o seu Antônio é homem de bem, gastou até do dinheiro dele pra comprar material, eu sou testemunha. Os moleque entregaram tudinho lá em casa, e o serviço que ele fez ficou nos trinque, ninguém podia nem sonhar em reclamar, o senhor sabe que num entrou nem mais uma gotinha d’água lá dentro de casa. E olha que tem chovido, chovido mesmo.
- Tá bom, mas diz como é que começou a briga com seu marido.
- Bom, então lá pela meia-noite ele me entra em casa, doutor, o senhor tinha só que vê a cara, cara de quem comeu e num gostou, e aquele bafo quente de manguaça, parecia até sexta-feira. E a única coisa que eu fiz, Deus me é testemunha, foi pedir o dinheiro do seu Antônio, e olha que eu num pedi nem o dinheiro todo, sabia que ele tava reclamando de dureza, os serviço tava pior, e eu pedi só a parte do material, sabe, seu doutor. Mas foi só eu abri a boca que tomei a primeira pancada, doutor, e num foi de mão aberta, não, ele passou a bater com a mão fechada, eu num tava nem conhecendo ele. Olha, como doía, pensei até que eu fosse desmaiar, e nunca que acabava.
- Mas ele começou a bater só por que você pediu o dinheiro do conserto da laje ?
- Óia, doutor, eu num posso agarantir que foi só por isso, até porque ele começou a falar besteira, dizendo que eu tinha ficado sozinha com o homi em casa, mas como é que eu podia consertar as coisa sem tá em casa ? E o seu Antônio, coitado, o homem é casado, conheço a esposa dele, gente distinta, educada, os dois são até evangélico. Mas ele num quis nem saber, parecia que tava possuído, doutor, de tanta raiva e força que batia. Mas batia mesmo sem parar, dizia e repetia que eu devia é morrer porque era uma cadela sem-vergonha, e que num valia a comida que ele bota em casa.
- Vocês têm filhos, não têm ? As crianças presenciaram ?
- Graças a Deus e Virgem Santíssima que nenhuma delas tava, doutor, eu bem que pressenti alguma coisa e despachei todo mundo pra casa da Belmira, não sei se já falei pro senhor da Belmira, minha comadre já de muito tempo, viu meus filhos nascê e me deu uma boa mão. Criatura santa, doutor, daquelas que faz tudo pros outro e num cobra nada, nadinha.
- Mas então continua, por favor. Como é que a senhora conseguiu fugir pra vir aqui ? Onde está seu marido ?
- Bom, doutor, ele tá lá em casa, estirado na cama, porque foi mais ou menos assim: chegou uma hora, como eu disse pro senhor, que achei que num ia aguentar, ia morrer mesmo de tanta surra. Aí, de repente, doutor, o senhor tinha que vê, num sei se foram as oração pra Deus Pai, Nosso Senhor, mas ele parece que cansou de tanto bater, e bater, e acabou bebendo o resto de um vinho velho que tava na geladeira, no gargalo mesmo, e sentou um pouquinho na cama pra ver televisão. Foi aí qui num deu nem dez minuto e ele apagou, doutor, começou a dormir feito uma criança, nem parecia o bicho que tava me batendo, tão bonito que tava quietinho. Eu aproveitei então pra me lavar e comecei a preparar um chá, um chazinho que ele sempre toma quando fica de bode, sabe, doutor, nunca que dorme direito, acaba acordando meio zonzo com dor na cabeça, vomita, essas coisa.
- E aí a senhora saiu e veio pra cá ?
- Inda não, doutor, eu tirei a camisa dele, os sapato, a calça, deixei só de cueca e arrumei na cama uma posição pra ele dormir melhor.
- Tá bom, mas então a senhora arrumou ele, fez o chazinho e saiu em seguida, não é isso ?
- Não, doutor, inda não, porque aí eu fiquei olhando ele lá, dormindo, e num sei o que me deu na minha cabeça, doutor, que olhando pra ele dormindo, aquela carinha calma, eu comecei a sentir uma raiva, mas uma raiva muito grande, como nunca tinha sentido na minha vida, o senhor sabe ? E então parece que minha cabeça desandou, ficou fraca, doutor, logo eu, uma mulher que sempre enfrentou tudo de cabeça levantada, nunca fiz mal pra uma mosca, o senhor pode até perguntar pros meus filho, pra vizinho, pra parente, sabe, doutor ? E aí eu peguei o chá que já tava fervendo um tempão, encostei um funil largo no ouvido dele e derramei tudo, tudinho, o senhor tinha que vê, doutor, o homem acordou num berro desgraçado, parecia um porco quando tá morrendo, o corpo ficou num tremelique só, e me deu um medo muito grande dele começar a me bater de novo até me matar. E então, doutor, Deus que me perdoe que eu sei que vou ter que pagar, mas eu olhei pro chão do barraco e tava as ferramenta toda num cantinho, e aí eu tasquei o martelo na cabeça dele um monte de vez, e o homem apagou, num falou mais nada. Deve de tá inda lá, quietinho, esticado na cama de cueca, do jeito que eu arrumei antes de vir pra cá falar com o senhor.
O autor, André Calazans,
é analista de projetos, carioca, e tem 39 anos. Possui um livro de poesias
publicado, e já participou de diversas antologias de prosa e verso.
Contatos: andre001@oi.com.br
Página Publicada em 20/10/2006
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