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Casa da Cultura - Literatura - Contos

Pedrinho e o sonho

Caius_c

Pedrinho erguia os olhos o mais que podia, para tentar ver algo alem do céu. Gostava de ver o azul mas precisava ver gente, pessoas, outros seres que não fossem seus pais e seus irmãos.

Quando muito, erguia-se e sentava-se, mas a janela parecia sempre alta demais e somente podia ver os contornos das nuvens e as nuances do céu ou a parede de um muro que lhe parecia alto demais.. Os médicos diziam que era uma doença que o transformara em um quase objeto a ser eternamente cuidados mas ele sabia que a bruxa má Kecanezal era quem o tinha deixado sem movimentos, inválido, deitado em uma cama, sem poder andar.

A pobreza não lhe deixava outras opções alem de ser carregado para outras partes da casa por sua mãe ou por seu pai. Percebia o cansaço deles neste trabalho, à medida que ia crescendo e eles iam ficando mais velhos. Mais pesado e difícil de carregar, era movido apenas nos momentos necessários. Quando mais passava o tempo, mais se estendia na sua cama, sem poder ver nada alem de um céu, que se tornava aborrecido a cada dia que se passava.

Podia ver a tristeza nos rostos deles, que não podiam fazer muito além do que faziam. A pobreza os obrigava a manterem-se no limiar da sobrevivência, quase sem os pequenos confortos que todos precisam. Com certeza, ele era um grande fardo para eles, sem poder ajudar, apenas estendido numa cama, sem muito o que fazer a não ser olhar o céu. Seu maior sonho era poder brincar com os outros garotos, de quem sempre ouvia os gritos e correrias, de dentro de seu quarto.

Mas quem sofre as maldições de uma bruxa má sempre tem uma fada-madrinha que, mesmo sem muitos poderes, pode ajudá-lo.

E essa fada-madrinha tinha um nome e chamava-se Marina, que também era sua irmã. Ela não tinha outro poder além das cartas constantes que escrevia para todos aqueles que julgava que poderiam ajudá-lo. Marina escrevia, escrevia, escrevia sem parar. Quase todos os dias, ia ao correio com uma cartinha de belas letras, com palavras doces e infantis, tentando comover algum sábio ou mago mais poderoso que ela.

Ela tinha outro poder: nunca desanimava. Por mais recusas ou falta de respostas, continuava no seu trabalho de destacar folhas de cadernos de escola, retirar as remalinas, colori-los com pequenos desenhos e escrever mensagens bonitas com sua letra cada dia mais cuidada.

Para conseguir dinheiro para envelopes e selos, fazia pequenos trabalhos para as amigas, ensinava-as nas misteriosas artes matemáticas e portuguesas e contava sempre com seu sorriso para obter pequenas notas ou moedas que transformava em esperanças.

Um dos feitiços da bruxa má Kecanezal ela conseguiu quebrar. Algum mago misterioso, que não podia falar o próprio nome senão quebraria seu poder, mandou um presente que fez Pedrinho sair de sua cama. Era uma cadeira de rodas, quase toda cromada, com brilhos de pequenas liberdades.

Isso foi bom demais! Com jeito e sozinho, conseguia se arrastar para ela, colocar-se sentado e sair para a rua, aonde podia ver pessoas, crianças e fazer amigos. O céu ficou maior: deixou de ser um quadrado e se estendeu como uma enorme esfera.

Com calma e com jeito, ajudado pela sua fada-madrinha Marina, foi afastando a desconfiança, o temor, a vergonha, o preconceito, que as pessoas que andam sentem pelos que não podem andar. Em pouco tempo participava de rodas de amigos, ria e conversava, aprendia coisas e, também, levava broncas da mãe por ficar demais na rua.

Quando chegou o tempo, seus pais quiseram colocá-lo am alguma escola aonde os demais meninos fossem iguais a ele. Ele se recusou. Preferia ficar onde todos os outros ficavam. Já se acostumara com os olhares de lado dos outros, com a piedade de muitos e com a crueldade de poucos. Já tinha todas as respostas para as frases e benevolências dos demais. Podia se cuidar melhor se aprendesse a conviver com os demais e se os ensinassem a conviver com ele.

Passou a ir para a escola com seus pés emborrachados, fazia acrobacias no pátio, lições de casa, provas e tudo o mais. Nada como ser diferente e igual a todos.

De tanto vê-lo se esfalfar no pátio, o professor de educação física resolveu levá-lo para um lugar aonde poderia trabalhar melhor suas energias. No começo ficou horrorizado. Nunca imaginara que existiam tantas pessoas tocadas pelas maldiçoes de Kecanezal. Olhando para alguns, sentia-se até privilegiado por somente não poder andar. Muitos nem os braços mexiam. Pareciam estátuas vivas em cadeiras de rodas. Ficou bravo consigo mesmo! Se não queria que o vissem como alguém diferente, não poderia ver os outros como diferentes. Lembrou-se de todos os conselhos de sua fada-madrinha Marina e foi tentar se enturmar.

Estudar e treinar passou a ser o melhor de sua vida. Saía da escola e ia para a pista de corrida. Juntamente com os outros, embalava sua cadeira de rodas e tentava chegar mais depressa ao final. Cruzar a linha de chegada era sempre uma alegria.

Ali cada um tinha uma fada-madrinha ou mago que os ajudavam em suas pequenas dificuldades. Com o tempo, descobriu que os poderes deles eram repassados para cada um e todos se tornavam um mago ou uma fada. Esse era o melhor presente que cada um podia receber: se tornarem eles próprios os ajudantes dos novos que chegavam.

Aos poucos, foi ficando veloz e esperto nas suas correrias. Foi melhorando tanto que resolveram que era a hora de se mostrar.

Foi participar de pequenas corridas em pequenas cidades em pequenos circuitos. Cada vez que ganhava, as corridas ficavam melhores, as cidades maiores e os circuitos mais bonitos. Descobriu que em todos os países existiam pessoas como ele, como Marina e como seu professor de física. Gente que precisa de ajuda, gente que precisavam ajudar, gente que queria que as pessoas tivessem seus próprios sonhos e suas próprias conquistas.

Cada vez que cruzava as linhas de chegada, seus sonhos aumentavam e se via como um mago formado em medicina, que poderia ajudar outros que tinham sido tocados pelas maldições de Kecanezal.

Entre uma corrida e outra, crescendo e ficando mais forte, passou em todas as escolas e foi parar, rodando, até a faculdade. Não foi fácil. Precisou de todos os estudos, de muitas noites mal-dormidas, de pequenos trabalhos para conseguir dinheiro, de muita persistência, de ajudas de todos os magos e fadas que encontrou e da própria ajuda. Tinha que manter a mente livre de temores, de piedades próprias e alheias ou de abalos nas dificuldades.

O melhor dia chegou quando ele foi chamado pelo nome e lhe deram um canudo repleto de sua vida. Podia ver orgulho nos olhos do pai, lágrimas nos olhos da mãe e alegria nos olhos de Marina. Agora, apesar de sua cadeira de rodas, seria chamado de doutor e salvaria vidas.

No melhor da festa, os sonhos voltaram e ele se viu como um cientista, tentando descobrir as mágicas que afastariam as maldições de Kecanezal de outras pessoas.

Leia outros contos do autor:
[Sol]
[O toureiro e o violino]


O autor, Caius_c, nome literário de João Alberto Padoveze, tem um livro sendo publicado pela Editora Siciliano, chamado "Você só tem uma vida". Em parceria com seu irmão, tem um outro livro publicado chamado "Contos de Interior", que é uma coletânea de contos que vão da crônica ao surreal. O autor mantém dois sites para divulgação de seus textos, poesias, contos e livros. O texto "Ouça o tambor" foi interpretado pelo ator Antonio Abujamra no programa Provocações, da TV Cultura. Outros textos foram publicados por jornais da região como Todo Dia e O Liberal.

Contatos: caius_c@hotmail.com

Página Publicada em 01/08/2005