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Seção de Crônicas da Casa da Cultura |
“Num céu onde não há mais anjos e as estrelas já não têm o mesmo brilho de outrora, a alma imortal não poderá exprimir a sua singularidade, mas as idéias inamovíveis de humanismo e as nobres aspirações do sujeito moral, sim.” Há certas coisas que não se deve confessar às claras, mas foi o que escrevi quando li com pesar, a nota fúnebre, sobre o sepultamento do meu inesquecível professor Domênico. Profundamente abalado, tranquei-me na biblioteca e passei o dia inteiro revendo os textos que ele me recomendara ler. Afetado por uma espécie de niilismo ante o desperdício prematuro da sua inteligência, comecei a inquirir-me sobre a real utilidade do conhecimento. As respostas não vieram, mas as palavras do mestre ainda ressoavam nos meus ouvidos, quando me deparei com Borges na estante. Borges fora um dos meus referentes num trabalho de Epistemologia das Ciências Sociais. No frontispício está escrito: Cometi o pior dos pecados que um homem pode cometer: não fui feliz. Pensei em suicídio sim, mas o tempo será meu suicídio... (Jorge Luiz Borges) Assustou-me o peso das palavras. Corri então ao “Elogio das Sombras” e lá estava um outro Borges, noutro momento da vida, quase se negando: Se eu pudesse viver novamente... trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais. Seria mais tolo ainda do que tenho sido, na verdade, bem poucas coisas levaria a sério. Seria menos higiênico. Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas... Iria a lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos lentilha, teria problemas reais e menos problemas imaginários. Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e produtivamente cada minuto da vida; claro que tive momentos felizes. (id. Ibden) De aí em diante, já com as primeiras aflições superadas, retornei em pensamento à nossa sala de aula, num daqueles dias mais do que conturbados, e de lá o professor Domênico falava do Conhecimento, da Secularização, do Cotidiano, invocava Piaget, Port-Royal, Bopp, Gramsci, Marx, Berger, Foucault, Mennheim, Ivan Domingues, e outros velhos amigos seus, situando-os longe da zona obscura da neutralidade e bem no centro da superfície escorregadia dos fenômenos sociais. Vez por outra ignorava-os e lançava o Cotidiano Social como o nosso ponto de ancoragem último, o nosso objeto de estudo. Nesses comenos, revivi os três momentos áureos do nosso curso de Epistemologia, quando experimentamos entrecruzar nos debates, a Antropologia Filosófica, que visa o homem, com as Teoria do Conhecimento, que visam a sintaxe do saber, e a Ontologia, que visa explicar o modo de ser que as epistemes objetivam anular. Revivi as ironias peculiares, nem tudo era aula, ele se dizendo um padre-expadrado, eu me dizendo membro de uma casta de ateus, hereges e agnósticos com aspirações divinas. “Gente, vamos levar a coisa a sério,”, dizia ele, “Interpretar o real, significa antes caminhar para o horizonte interrogativo no qual o conhecimento se move. A luta é árdua para apreender o Devir do ser, e o modo de ser e de agir dos governos.” Uma colega metida na Universal, retrucou de lá, “O Conhecimento científico é falho porque não abrange a gênese humana.” Ele aparteou, “A arqueologia antropológica, não é ciência? Bem, mas isso não interessa ao sociólogo, o sujeito já é uma evidência mesma, um a priori.” O Carlson Frota satirizou, “Para Marx continuar a existir, bastam as suas idéias.” Eu aparteei, “Não vamos misturar os conteúdos. Longe quero ficar de uma consciência manipuladora.” Retrucou o mestre, “Mas você também é uma consciência manipuladora.” Eu respondi, “Sei disso, tanto que possuo uma só consciência, mas há por aí quem possua duas ou três.” Ele resmungou ouvindo a carola dizer, “Tem certas coisas que só Deus explica”, e respondeu, “Não se pode ser tão reducionista. Nem tudo se reduz ao âmbito do sagrado. Da sala contígua, veio a voz do prof. Moreira, “Nesses ciclos de incertezas que atormentam a humanidade, inventa-se e reinventa-se modos diferentes de ordenar a vida.” Eu disse, “O conhecimento científico carece de uma subversão epistemológica e a política, de um pouco de anarquismo responsável.” O mestre indagou-me, “Em que estrutura se pode achar a plausividade do seu argumento?”, eu respondi, “Se continuarmos circunscritos num nexo de base materialista-histórica, nunca iremos inaugurar uma nova etapa do conhecimento sociológico”, e ele perguntou, “Qual a sua compreensão do sujeito-coletivo?” eu respondi, “A pós-modernidade implodiu o sonho do sujeito-coletivo, que mesmo no marxismo nunca existiu, senão como uma metáfora, que a tudo pode.” Ele assentiu e disse, “Não costumo recorrer às metáforas, mas nada está fora desses entrecruzamentos de olhares sobre o mundo, nada. Por hoje chega.” O Sol já havia dado o seu imenso mergulho, quando saí daquele encontro virtual com os condiscípulos do professor Domênico. Meu espaço real ainda era a biblioteca, onde fiquei até a alta noite, sentindo um abandono, um vazio e aquilo cedia lugar a um paradoxo desconcertante entre a vida, o sentido de viver e a morte sem sentido, sem alcance, sem justificativa. Meu tinteiro estava cheio de palavras angustiadas e precisava escrevê-las de algum modo. Um modo de purgar a angústia da alma, é deixar que a pena vá cedendo as palavras com doçura. Foi então que escrevi: “Os sonhos são sempre desfeitos nalgum dia de hesitação, quando então as forças da natureza providenciam secretamente a fatalidade de tudo que desabrocha na primavera. O dia amanhecera sem pressa de acabar. No interlúdio do que vai suceder, desperta-se o meu professor, para o nobre ofício de prover o lar. Seria um dia festivo, não fosse o inefável que já o espreitava. Quem iria adverti-lo, que estando o Sol à meia altura no oriente, claro e límpido de luz, em instantes sumiria bruscamente, como ocorre nas visões estranhas que se tem nas altas latitudes. Por entre as gôndolas ia o mestre, cumprir o fatiloqüente destino de desvelar a experiência mais sensível dos mortais. Naquela manhã ensolarada, uma agulhada no peito o obrigara a tombar constrito. A contração mortífera logo camuflou-se num murmúrio que se estendeu na vastidão do próprio silêncio. Um rapto misterioso que põe em prova a ipseidade dos sentidos e todos os constructos sobre a vida, furtou-o das nossas agruras cotidianas. Nenhum suspiro, nenhum gemido dera, nem quando o aperto formal afrouxou-se exangue. Nos olhos empastados do filho, só a palidez natural grudou-se. A dor da perda é maior. Chorei o desperdício, chorei a saudade, chorei a dor que o furtou.”
[Águas
Mortas] (Crônica)
[A
Triade do Inferno] (Conto)
O romancista, dramaturgo e sociólogo brasileiro Ruy
Câmara ao completar 40 anos em 1990 abdicou da sua promissora carreira
empresarial, encafuou-se em sua biblioteca e passou a se dedicar exclusivamente
ao ofício literário. Após 11 anos de intensa produção,
em 2003, ele surpreendeu o cenário intelectual com Cantos de Outono,
o romance da vida de Lautréamont, que foi finalista do prêmio
Jabuti 2004 e receberá no dia 22/07/2004 o prêmio nacional da
Academia Brasileira de Letras na categoria de Melhor Romance de Ficção.
O próximo romance, O Alfarrabista, será publicado em 2005.
Contatos: ruycamara@uol.com.br
Sítio Web: www.ruycamara.com.br/novo
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