Cânon e transgressão:
Quatro considerações sobre poesia contemporânea
Jorge Lucio de Campos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
"O verdadeiro artista é o que dialoga
com sua obra, o impostor dialoga com seu público" E.
H. Gombrich
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Incomode ou não esta afirmativa, muito ou pouco, algumas de nossas
'melhores' cabeças, pensar em termos de cânon, nos dias de hoje,
é, ao meu modo de ver, estar na contramarcha da história. Isso em
qualquer situação, em relação à qualquer atividade, área de conhecimento
ou de atuação que se queira interveniente. Uma das mais valiosas
conquistas (se não a mais valiosa) efetuadas pelo homem deste fim-de-século
foi a sua conscientização, ao que me parece (no mínimo, torço para
tanto) definitiva, de que a autonomia é um dado natural, e não algo
muito maior - uma espécie de ideal dourado - pelo qual sempre valeria
a pena lutar e até morrer, mas que ficaria ad infinitum isolado
numa campânula ou difratado como um traço no horizonte, modulado
no mapa sinuoso de um território, enfim, inalcançável por si só.
O fim desta importante mistificação pode representar, é certo, um
decisivo passo emancipatório e não somente o de uma prática onanística
de quase três séculos. Afinal de contas, ser autônomo - ou estar
consciente de que ser autônomo é algo perfeitamente exeqüível -
é uma condição intrínseca para qualquer ser pensante que se saiba
enquanto tal e se importe com isso.
Em seu estágio atual, esse processo - que também supõe, como acabei
de propor, o de uma providencial autoconscientização - já se revela
urgente para alguns obstinados segmentos da sociedade (lamentavelmente
ainda tímidos e estranhos demais à maioria de nós), favorecendo,
claramente, uma pulverização dos metadiscursos de outrora em micronarrativas
deveras maleáveis no que tange à conjunção e à pertença simbólicas.
Em função disso, falar-se em conceitos de índole platônica como
'modelos', 'paradigmas' e 'cânones' torna-se complicado, ao menos
no que tange à produção dissidente e estridente daqueles segmentos.
Quero dizer com isso que, em termos literários, os poetas competentes
de agora não têm outra alternativa que trabalharem individualmente,
um pouco solitariamente, em busca de 'soluções' não submetíveis
aos critérios velozes de avaliação 'cômoda' oriundos quase sempre
das máquinas de rostificação que os homens da mídia e os burocratas
de sempre acionam sem parar.
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A exemplo do que já ocorre por aí, como sabemos, em alguns espaços,
criar significa, sobretudo, 'resistir' (acompanhando o sentido do
termo latino resistere, ou seja, 'colocar de novo'), cada vez mais
'situar-se' diante dos múltiplos reducionismos gratuitos que nos
fazem cerco, 'fazer frente' aos incontáveis universalismos sonsos,
espalhados, camufladamente, como engenhos de guerra, ao nosso redor.
Seja como for, isso implica em não se submeter à tentação das filiações
fáceis. Canonizar-se em arte (literatura, poesia...) significa remeter-se
a um rol de nomes santos, de indivíduos e escolas mortos (alguns
já em adiantado estado de decomposição), com suas receitas demasiadamente
'prontas' para inspirarem atitudes adequadas para a dinamização
de nosso presente. Isso posto, não creio que seja possível (ou aconselhável)
falar-se seriamente, hoje, de um cânon, ou mesmo de cânones em poesia,
e muito menos, levantar a hipótese de seu restabelecimento. De que
serviria fazê-lo senão para uma estratégia fatal de fingimento?
Pois é verdade que não faltam aqueles que fingem e sabem fazê-lo
bem, para quem nada acontece à toa, tudo está sempre em ordem, o
tempo nunca passa, etc. etc.
Ao que me parece, a mais genuína (e digna) inclinação da poesia
brasileira contemporânea é, a exemplo do que acontece em todo o
mundo ocidental, a sua vocação para desconstruir. Desconstruir as
grandes referências sejam elas quais forem (pátrias, apátridas ou
alienígenas), as grandes progenituras sejam elas 'genuínas' ou não,
as grandes doutrinações sejam elas justificáveis, vantajosas ou
não, desconstruir, pensando bem, o próprio habitus - culturalmente
perverso nestas terras - de sempre se pôr num estado de referência,
de descendência, de engajamento frente ao outro, de sempre submeter-se,
docilmente, aos encantos de sua 'geração espontânea'. Embora não
sejam muitos, são significativos os poetas que, driblando o apelo
'canônico' do mercado, propõem, com consistência, dicções alternativas
que não necessariamente rompem, mas renovam, redinamizam o que já
foi fartamente dito ou timidamente gaguejado. Mais premente do que
uma pluralização gratuita (a essa altura, inevitavelmente reacionária
e catastrófica) seriam a pesquisa e a experiência em bases não-ortodoxas,
uma nova configuração da poesia, a possibilidade de torná-la um
aspecto intersticial da vida, de uma nova dimensão do existir que
possamos, em breve, quem sabe todos nós, assumir sem nenhuma 'culpa'.
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No prólogo de seu Critique et clinique1,
Deleuze, em cima de uma fala instigante de Proust - a de que "os
belos livros estão escritos numa espécie de língua estrangeira"
(Contre Sainte-Beuve), nos adverte que, para os artistas
(particularmente os contemporâneos, aí inclusos os poetas), "o problema
de escrever é também inseparável de um problema de ver e de ouvir",
pois, "com efeito, quando se cria uma outra língua no interior da
língua, a linguagem inteira tende para um limite assintático, agramatical,
ou que se comunica com seu próprio fora". Uma outra convicção, provocativa
como a anterior, mas originalmente fomentada por Klee - a de que
não cabe ao artista reproduzir o visível, mas tornar visível o que
ainda não era - é igualmente pervasiva (tornando-se quase sempre
um pouco urgente) para a sobrevivência das práticas poéticas no
mundo hodierno. Juntamente com a estrangeiridade proustiana, ela
abriga (ou se aninha em?) uma terceira: a de que uma postura de
busca de diferenciação deve ser, assumida e estrategicamente, levada
adiante por todos os artistas no sentido da implementação, mesmo
que um tanto obstinada e até áspera, de uma visibilidade exclusiva.
O fato é que, numa sociedade como a nossa, cada vez menos refratária
não só à repetição e à reprodução de suas coisas, ferramentas e
relações, mas também aos jogos fáceis de linguagem, em seu sentido
mais torpe, ou seja, enquanto dispositivos de obturação do real,
de fixação e perpetuação da histeria paralisante do capitalismo
avançado, ou a poesia se descaracterizará de vez (como vem ocorrendo,
na maioria das vezes) ou ela, de algum modo (e não me perguntem
qual!) encontrará um caminho - mesmo que este, lembrando Heidegger,
"não conduza a parte alguma", arriscará um rosto incerto, afirmará
uma identidade-de-si-no-outro, embora pagando o preço (para muitos
poetas, alto demais) do anonimato mercadológico e da apatia crítica.
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Aqui no Brasil, pode-se dizer que tal situação é peculiarmente
grave. O movimento modernista realizou um oportuno sangramento em
nossa literatura e em nossas artes plásticas (na verdade, em nossas
próprias mentalidades, e não só aqui, mas em toda a América espanhola,
na Espanha e em Portugal), de modo que, sobretudo a partir das décadas
de 20 e 30, sedimentou-se um importante grau de amadurecimento e
conscientização em relação à fatura artística em termos de uma efetiva
assunção de suas potencialidades estéticas intrínsecas. Contudo
não devemos esquecer a sua incontornável marcação histórica. A incisão
foi feita no lugar e na hora certas, o que, por outro lado, não
justifica que o processo de cicatrização demore mais do que o tempo
necessário. O influxo prolongado a que alude uma frase do poeta
José Carlos Capinan ("a contemporaneidade na poesia brasileira ainda
é marcada pelos modernistas")2 se deve a uma relação
perversa que os brasileiros mantém com as novidades, em função de
um viciamento cultural aqui secularmente imposto (e pior, já há
muito enraizado) pela lógica (neo)colonialista. Acostumados, século
após século, a receber acriticamente, a repetir mecanicamente, a
cumprir docilmente todo tipo de metas e de protocolos, tratamos
como autênticas formas platônicas (em relação às quais, devemos,
na pior das hipóteses, nos comportarmos como 'más cópias') atitudes
e ações inteligíveis (mesmo inquestionáveis) apenas em seu espaço-tempo,
de modo que, até hoje, dicções 'circunstanciais' (apesar de ser
ridículo negar a genialidade e a inspiração de várias delas) como
as de Oswald, Bandeira, Drummond, Cabral ainda nos parecem referências
obrigatórias quando deveria ser, no máximo, aconselhável acolhê-las
enquanto elementos dinamizadores de nossas próprias fabricações.
Todas têm, sem dúvida, o seu quinhão de densidade, a exemplo de
tantas outras dicções 'universais' como as de Mallarmé, Apollinaire,
Mayakovski, Pound, etc. Cabe, porém, aos poetas daqui (mas também
aos de quaisquer outras paragens) agenciar os seus recursos pessoais
a partir daqueles elementos, arejando, criativamente, as suas produções
com uma maturidade que leve em conta tudo o que se fizer justificável,
seja em nome da mais intempestiva transgressão ou da mais assumida
transreferencialidade citacional.
Notas:
[1] Gilles Deleuze, Crítica e clínica. São Paulo: Editora
34, 1997, p.9.
[2] Poesia Sempre, 8, junho de 1997.
© Jorge Lucio de Campos 2002
Espéculo. Revista de estudios literarios. Universidad Complutense
de Madrid
O
autor é filósofo, comunicólogo, crítico e poeta. Leciona
na Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (ESDI/UERJ).
Contatos:
jorgeluciocampos@ajato.com.br
Página
Publicada em 24/01/2005 |