Apresentação:
Boa noite. É um grande prazer estar aqui com vocês hoje. Meu
nome é André Masini, e eu traduzo poesia.
Eu sempre procuro deixar claro que minha visão da tradução
é intuitiva e meu método de trabalho não é formal ou acadêmico.
Mas isso não deve dar idéia de que exista em minha prática qualquer
leviandade: o empenho nela exigido não é, de maneira nenhuma,
menor do que aquele que seria exigido em qualquer trabalho acadêmico.
A possibilidade de menor rigor em certos aspectos vem acompanhada
da possibilidade de maior atenção a outros.
Meu ponto de partida para a tradução de poesia é o amor pela
poesia. Minhas referências conscientes e ferramentas de trabalho
são a língua (dicionários, léxicos, gramáticas, sintaxes) e
a poética, e, depois destas, o estudo da obra e vida do autor
e da literatura de sua época*. Não se incluem aí as questões
teóricas sobre tradução. [* Com relação ao estudo do autor e
da literatura de sua época, eu devo admitir que me permito trabalhar
com aprofundamento menor do que seria exigido em um estudo acadêmico
formal. E como conseqüência posso trabalhar com poetas variados,
de épocas variadas. Tal prática evidentemente traz riscos. Exatamente
por isso, eu não me digo tradutor deste ou daquele autor. Faço
sempre questão de ressalvar que não sou "tradutor de Keats"
ou "tradutor de Yeats", mas tradutor de poemas de
Keats e de Yeats.]
Quando eu inicio um trabalho de tradução, minha atenção não
está voltada para questões como o "papel do tradutor"
(escravo do autor, obrigado a seguir seus passos sem jamais
alcançar sua grandeza? ou artista, cujo papel não é inferior
ao do próprio autor?), ou a discussão sobre se a tradução deva
ser literal ou mais livre, ou ainda se o tradutor deve ou não
"contribuir com as idéias do original" acrescentando
ou tirando. Não. Nenhuma dessas questões está definida para
mim. (Com uma exceção: a impossibilidade da tradução literal
de poesia. Pois, partindo-se do princípio de que poesia é significado
e forma, não apenas significado, infere-se que qualquer tradução
literal será tradução apenas do significado, não da poesia.)
Diante de uma poesia a ser traduzida, minha atenção estará
voltada para a forma das estrofes e dos versos, a distribuição
de elementos rítmicos, os sons claros e sombrios, isso sem esquecer
o sentido. Minha mente estará ocupada estudando as possibilidades
de se trazer esse conjunto todo para o português.
Essa minha forma de trabalhar, porém, não pode de maneira alguma
ser usada como argumento para se tentar subtrair a importância
dos estudos teóricos de tradução.
Em primeiro lugar, existe a influência das históricas realizações
de tradução (de Os Lusíadas de Sir Richard
Fanshawe, 1665, até trabalhos contemporâneos como os
dos irmãos Campos), que são, direta ou indiretamente,
referências para qualquer pessoa que se propõe a traduzir.
Além disso, é importante verificar que, conscientemente ou
não, por trás de um trabalho de tradução sempre existirão princípios
e métodos; mesmo para o tradutor que, com eu, trabalhe intuitivamente,
sem prestar atenção ou notar esses princípios. Eu mesmo, se
me propuser a refletir sobre minha maneira de ver a tradução
e de trabalhar com ela, poderia nela identificar princípios,
e até encontrar a correspondência destes com postulados teóricos.
Vou dar apenas um exemplo: Eu sempre acreditei que uma tradução
para o português deva ter a aparência de ter sido originalmente
escrita em português. Sempre julguei errada a utilização de
construções sintáticas antinaturais ou forçadas, ou de palavras
em situações pouco comuns no nosso idioma, apenas para se manter
a semelhança com o original. Esse princípio intuitivo corresponde
quase que exatamente a uma das "leis" que Alexander
Fraser Tytler propõe em seu "Essay on the
Principles of Translation" de 1790: "(...)
the Translation should have all the ease of original
composition."
Se meu interesse está voltado principalmente para a poesia
em si, e não para a teoria da tradução, a própria teoria da
tradução dá validade a essa minha postura. O poeta inglês e
teórico da tradução John Dryden já afirmava, no século XVII,
que o mais importante (para se traduzir poesia) é que o tradutor
seja poeta e mestre de ambas as línguas com as quais trabalha.
Eu sou um amante do verso e da versificação, das "figuras
de som" reiterativas, do ritmo, das aliterações, consonâncias
e rimas; isso para não falar das figuras de linguagem, das imagens
criadas, das idéias. Toda vez que me deparo com uma obra de
versos regulares, em que cada elemento rítmico e sonoro tem
grande importância, aumenta em mim a convicção de que para tentar
traduzi-la é necessário ser igualmente apaixonado pela poética,
pelo verso e pela versificação.
Assim, minha proposta aqui é falar da tradução de poesia pensando
na poesia, não na teoria da tradução, e tentar por a descoberto
a minha forma de traduzir.
Eu separei minha exposição em três partes. Na primeira tentarei
mostrar como a tradução depende do tradutor, depende das intenções
que ele tem ao empreender seu trabalho e depende da idéia que
ele faz de o que é poesia. Na segunda, eu vou tentar deixar
claro qual é a minha idéia de poesia e quais são os meus objetivos
com a tradução. E por último, finalmente, vou analisar, junto
com vocês, o trabalho de tradução de The Raven, ao qual estou
dedicado atualmente (mas que se iniciou há muitos anos).
O tradutor e a tradução.
Manuel Bandeira fez algumas "traduções" do
português para o próprio português. Vejamos um exemplo:
Ele pegou a seguinte poesia de Joaquim Manoel de Macedo:
Mulher, irmã, escuta-me: não ames,
Quando a teus pés um homem terno e curvo
Jurar amor, chorar pranto de sangue,
Não creias, não mulher: ele te engana!
As lágrimas são galas de mentira
E o juramento manto de perfídia
E "traduziu" por:
Teresa, se algum sujeito bancar o sentimental em cima
de você
E te jurar uma paixão do tamanho de um bonde
Se ele chorar
Se ele se ajoelhar
Se ele se rasgar todo
Não acredita não Teresa
É lágrima de cinema
É tapeação
Mentira
CAI FORA
"Tradução" do português para o português. E para
que serve isso?
Se pensarmos em um texto antigo, cuja compreensão tenha se
tornado difícil, eu consigo entender que alguém se proponha
a "traduzi-lo", substituindo palavras e construções
arcaicas ou obsoletas por outras que estejam em uso. Mas não
me parece ser o caso aqui, nem essa a intenção de Bandeira.
Na poesia, a única palavra que eu vejo usada em uma acepção
um pouco estranha ao português brasileiro atual é galas,
que no contexto significa ostentações, jactâncias, fanfarrices,
alardes.
Mas o "tradutor" foi ainda mais longe. Ele pegou
um texto composto em seis versos regulares de 10 sílabas, decassílabos
heróicos, com rimas toantes (imperfeitas) entre 1 e 3, 5 e 6,
e o transformou em algo totalmente irregular.
Qual a intenção de Bandeira? O resultado obtido é uma boa poesia?
Um bom exemplo de boa arte verbal? É claro que nosso objetivo
aqui não é responder a essas perguntas, nem analisar esse texto
que ele produziu. O que nos interessa é utilizar o exemplo para
verificar algo importantíssimo: que a tradução depende do tradutor,
das intenções que ele tem ao empreender seu trabalho, e da idéia
que ele faz de o que é poesia. (Queira ver
o Anexo 3)
Minha concepção de poesia.
Minha concepção de poesia tem algumas severas divergências
em relação às concepções predominantes nos dias de hoje.
Existe uma experiência que eu já fiz inúmeras vezes. Ao falar
de poesia com alguém, eu digo, sem maiores explicações, que
meus poetas favoritos são os parnasianos, ou que gosto de verso
metrificado. Quase sempre eu recebo ou um olhar desconfiado
de alguém que discorda sem querer dizer que discorda, ou alguma
resposta do tipo:
– Mas... os parnasianos..?! com aquele
formalismo todo... ?!
ou
– Verso metrificado?! esse formalismo
ultrapassado?! essa falta de liberdade?!
É surpreendente ver como a palavra formalismo
é associada à métrica pela absoluta maioria das pessoas. Inclusive
pelas pessoas que não se interessam por poesia e jamais tentaram
escrever uma.
Se a conversa prossegue, eu faço uma analogia e pergunto se
a pessoa acha que é formalismo o fato de, numa bateria de uma
escola de samba, o surdão bater sempre no mesmo ritmo.
Isso ninguém acha que é formalismo.
E se alguém inventasse que é "formalismo o surdão manter
o ritmo e o andamento"?! E se alguém dissesse que "para
fazer um samba mais 'livre' o surdão deveria bater em ritmo
'livre', uma vez agora, outra daqui a alguns segundos, daí 4
vezes seguidas, depois uma pausa de dez segundos..." ?!
Se examinarmos com um pouco de cuidado, podemos verificar que
as noções de formalismo e liberdade não são tão
simples e óbvias como os livros escolares fazem parecer.
É curioso notar como tantas pessoas são favoráveis à ruptura
que os modernistas realizaram contra o formalismo anterior,
notar como essas pessoas rejeitam tranquilamente esse tal formalismo
sem que ninguém jamais se preocupe em dizer o que o formalismo
significa.
Formalismo em suas acepções mais pejorativas pode significar
a qualidade do que não é espontâneo, do que é apegado a formalidades
e etiquetas; a exigência de rigor exagerado no cumprimento de
normas ou princípios. A palavra traz a idéia de que se pense
no aspecto externo, nas aparências, e se deixe de lado a substância.
Formalismo é apresentar uma máscara externa sem vida, vazia
de substância, e negar o essencial, a substância.
Mas será isso que a poesia era antes do surgimento do modernismo?
Uma casca vazia, baseada apenas em rígidas etiquetas convencionais?
Foi isso que os poetas fizeram por cerca de três milênios? NÃO!
Absolutamente não!
A Ilíada, escrita em uma das formas de verso mais rígidas que
se pode imaginar, revela aspectos profundos do ser humano que
até hoje fascinam qualquer leitor. Shakespeare e Dante também
mergulharam profundamente na alma humana e na compreensão do
mundo. É certo que houve poetas e movimentos que preferiram
ideais estéticos mais etéreos, sonhos utópicos ou descrições
plásticas da natureza, mas nem mesmo nesses casos eu vejo a
tal máscara estéril e vazia, a que se poderia chamar de formalismo
em suas acepções mais pejorativas.
O que é então o tal formalismo? Alguns associam a palavra
às formas e estruturas tradicionais, formas de poema,
como o soneto, e formas de verso, como o alexandrino, o decassílabo
heróico ou a redondilha. Para que se possa compreender do que
se está falando, é essencial não confundir aquele formalismo
= máscara vazia com a idéia de valorização de formas,
ou utilização de certas formas já existentes.
Enquanto no contato entre pessoas o formalismo significa
preocupação apenas com o externo, significa esconder o que existe
de mais verdadeiro e essencial, na linguagem a forma (textura
sonora, ritmo, relação entre os sons das palavras) é parte de
sua própria essência! Sobretudo na poesia, campo em que nunca
houve um único teórico que propusesse a irrelevância da forma.
O vers libre, que surgiu entre os poetas franceses da
década de 1880, e que serviu de modelo para nossos modernistas,
não é um "desprezo pela forma", mas apenas
uma tentativa de substituir a métrica tradicional, com número
fixo de sílabas, por uma métrica onde o verso corresponde às
frases do idioma.
Qual então o significado dessa palavra, formalismo, com
que se pretende qualificar toda a poesia anterior ao modernismo?
Não pode significar uma máscara vazia, sem substância, pois
isso ela não é. Não significa tampouco um tipo de texto em que
a forma é relevante, pois isso também é válido para a
poesia modernista e para qualquer poesia jamais concebida. Também
não poderia significar a utilização de determinadas formas convencionais
de poema e verso, pois estas foram mudando através dos tempos,
desde Homero até o presente. Edgar Allan Poe não
apenas criou uma forma inteiramente nova de estrofe em The
Raven, como discute sua originalidade em The Philosophy
of Composition.
O que então poderia ser formalismo? Seria a temática
dos parnasianos? O ideal de "arte pela arte"? Não,
pois a acusação de formalismo não é dirigida apenas aos
parnasianos, mas atinge tudo que existiu antes do modernismo.
O que resta então?
Ora! Resta apenas a dicotomia entre verso metrificado
e verso livre.
Aqui no Brasil, a começar da segunda década do século vinte,
partindo de influências européias que remontam ao século XIX,
um conjunto heterogêneo de pessoas e idéias (Oswald de Andrade,
Anita Malfatti, etc...) começa a produzir poesias e pinturas
bastante distintas do que havia sido feito até então. Era o
início de um movimento que explodiria em 1922, com a Semana
de Arte Moderna, e que viria receber a designação de "Modernismo".
Em meio a um tom geral de insurgência e rebeldia, o "verso
livre" aparecia como estandarte e ao mesmo tempo o carro
chefe da nova poesia, cujo principal manifesto teórico seria
"A escrava que não é Isaura", de Mário de Andrade,
publicada em 1925.
"Colocando o problema da reforma estética entre nós, pouco
se salva do passado. Tudo, quase, vai raso. A liquidação literária,
no Brasil, assume proporções de queima. (...) É preciso esfacelarem-se
os velhos e râncidos moldes literários, reformar-se a técnica,
arejar-se o pensamento surrado no eterno uso das mesmas imagens."
Escreveu Menotti del Picchia, em "Na maré das Reformas",
1921.
"Guerra ao parnasianismo, ao gagaísmo, ao academismo (...)
Guerra aos 'almofadinhas do soneto' (...) ", Joaquim Inojosa,
"A Arte Moderna", 1924.
Na época, muitos devaneios foram ditos e publicados, entre
eles "a abolição da gramática" (Rubens Borba de Morais,
Domingo dos Séculos, 1924, p. 77) e a criação de uma "língua
brasileira". Os próprios modernistas se encarregaram de
reavaliar muitas dessas quimeras, marcadamente Mário de Andrade,
em "O Movimento Modernista", 1942.
O que realmente é irônico em tudo isso é que o academismo contra
o qual os rebeldes de 22 com fervor juvenil se insurgiam, não
existe mais. Hoje, pelo contrário, academismo é a poesia sem
métrica e sem rima, mas muita gente ainda tem a impressão de
que isso é novo e até revolucionário. Uma recente chamada publicitária
na televisão, divulgando a exposição de 80 anos da Semana de
22, no MAM, mostrava tomates e outras frutas sendo atiradas
contra o logotipo do museu... A impressão é de que os responsáveis
por essa campanha imaginam o MAM como um ativo foco de criação
artística revolucionária. Ora! O MAM é um Museu! Um museu
tão museu quanto o Museu do Ipiranga. Aliás, se traçarmos uma
linha temporal de hoje até o Grito da Independência, a Semana
de 22 estará mais ou menos na metade do caminho.
Quando eu vejo as pessoas ainda associando a estética modernista
à rebeldia, me vem à mente a imagem daquele adolescente de 97
anos de idade...
Quando garoto, a mãe sempre o incomodava:
– Filho! Não coloque o dedo no nariz!
Ele ficava vermelho. Abaixava a cabeça. Mas, quando a mãe não
estava olhando, pronto: Lá ia o dedo novamente para o nariz.
Um belo dia, para tristeza de sua magra e enfraquecida mãe,
o robusto rapazote de quinze anos resolve, diante das visitas
da sala, subir na mesa e, bem diante de todos, enfiar ostensivamente
o indicador lá no fundo do nariz, cavoucando por quase um minuto,
e depois ainda gritar com cara desafiadora:
– Eu enfio o dedo quanto quiser!!
Depois foi embora batendo os pés com um sorriso de realização
no rosto, dando as costas à mãe e às assustadas visitas.
Quando isso aconteceu, talvez tenha sido uma grande realização
para o sujeito. Mas é patético vê-lo hoje, mais de oitenta anos
depois do feito, sapateando em cima do túmulo da mãe, enfiando
o dedo tremulante no nariz, e berrando entre os acessos de tosse:
– Enfio quanto eu quiser!
Rebeldia? Ora, rebeldia contra o que?!
Deixando de lado a rebeldia de 22, esquecendo-a em algum museu,
que é o lugar dela, o que percebo é que não se discute hoje
a dicotomia entre verso livre e verso metrificado
de maneira viva e fundamentada.
Se tentarmos examinar a história para buscar as origens desse
suposto cerceador de liberdade, o verso metrificado, concluiremos
que ele deve ter sido instituído por algum terrível tirano da
idade da pedra. Alguém há mais ou menos uns 35.000 anos, um
antilibertário cro-magnon, talvez chamado Org ou Mong ou coisa
parecida. Um opressor que saiu da caverna, levantou a clava
e gritou:
– A poesia será em verso e metrificada!
Daí pensou um pouco e emendou:
– E a prosa também!
Sem mencionar o fato de ter exterminado seus primos neandertais
(que não tinham sua capacidade verbal), o poder desse Tirano
dos tiranos foi tão tremendo que seu mandamento foi seguido
à risca por mais de trinta milênios!! Assim, quando a humanidade
foi saindo da pré-história, quando a escrita já era sofisticada
o suficiente para representar o verso... o que encontramos?
Textos antigos, por todos os cantos da Terra, escritos em verso:
A Ilíada e a Odisséia são em verso, também o são a Bíblia, a
Bhagavadgita, o Rig Veda, o Ramayama, O Tao Te King... mais
recentemente, no norte da Europa, Beowulf, e assim por diante...
Examinando essa predominância do verso nos textos antigos,
nós podemos optar por aceitar a existência do tirano Org, ou
podemos considerar a possibilidade de que o verso, e o verso
metrificado, não sejam imposições inventadas por alguém, ou
elucubrações racionais que cerceiam a liberdade, mas sim manifestações
espontâneas da fala e da escrita humanas! Poderíamos até arriscar
propor que o verso é uma forma mais natural, mais espontânea
de expressão humana (seja para fins artísticos, religiosos,
filosóficos ou científicos) do que a própria prosa. Que essa
talvez só venha a surgir a partir de uma longa evolução cultural
que permitiu a separação do pensamento e dos sentimentos.
Existe algo mais comum na natureza do que o ritmo regular?
Desde o coração de nossa mãe, que escutávamos já de dentro do
útero, até a variação cíclica do dia e da noite, toda a nossa
vida é composta por ritmos regulares. Como surgiu a fala humana?
Como um frio enunciado de idéias que surge de um cérebro exilado
do coração e da vida? Ou como gritos de alegria ou de medo,
ou gritos de chamado, que se repetiam muitas e muitas vezes?
Qual é a primeira manifestação verbal de uma criança? Discorrer
sobre algum assunto neutro e distante? Ou dar gritinhos para
chamar a atenção dos pais, gritinhos que significam "eu
estou aqui"!
De onde será que vem a métrica rígida? Não seria uma repetição
na fala de todos esses ritmos regulares que constituem nossa
própria essência?
Quem já contou histórias para crianças sabe que elas pedem
que a mesma história seja repetida infinitas vezes. Elas acabam
conhecendo tão bem a história que, se o narrador mudar uma única
palavra, elas reclamam e dizem que a palavra certa deveria ser
essa, não aquela. Se elas sabem a história decorada, por que
pedem para que seja repetida? Não seria para alcançar um prazer
(conforto) similar ao que o adulto sente ao escutar o refrão
de uma poesia?
É inegável que a regularidade do verso causa prazer (usamos
a palavra prazer, mas talvez conforto ou agrado fosse melhor)
ao ser humano. Se examinarmos os poemas folclóricos ou canções
folclóricas de qualquer povo ou grupo étnico da Terra, o que
encontramos? Versos regulares. Isso não tem nada a ver com falta
de liberdade, ou com algo tiranicamente imposto por algum delirante
idealizador de modelo estético ou artísico artificial.
Jakobson relata um caso interessantíssimo com os versos tradicionais
da Sérvia, que têm algumas regras complexas e rígidas que são
imperceptíveis por padrões fonéticos. Qualquer verso é composto
por exatamente dez sílabas e é seguido de uma pausa sintática.
Existe um fronteira obrigatória de palavra antes da quinta sílaba,
e uma ausência de fronteira obrigatória antes da quarta e da
décima. As fronteiras ou não fronteiras de palavra não são,
segundo estudos científicos realizados, perceptíveis ao ouvido.
Mas mesmo assim, um camponês Sérvio percebe instantaneamente
qualquer violação das regras!!
O que é academismo? A métrica do camponês Sérvio? E de todos
os outros povos por todo o mundo? Ou os ideais de poética criados
nos cérebros dos modernistas?
Aqui na minha mão está um livrinho de cordel escrito recentemente.
Ele é inteiro escrito em redondilhas maiores:
"Com um ano e quatro meses
num dia de carnaval
o rei encontrou Camões
e perguntou afinal
Camões me diga com que
Camões respondeu com sal."
Será que algum padrão imposto artificialmente teria tanta força
para permanecer por tantos séculos sendo respeitado e seguido
em novas obras e criações?
Não. Claro que não. A verdade é que o padrão de poética modernista,
por partir de conceitos puramente racionais, desvinculados da
intuição e da emoção estética, cerceia mais a liberdade do que
a própria métrica. "A escrava que não é Isaura" fala
de "substituição da ordem intelectual pela ordem subconciente"
mas isso não é o que se vê. O modernismo levou as pessoas a
uma negação do agrado causado por certos padrões, como a métrica
regular; negação, não por sentirem as pessoas esse julgamento
surgir de dentro de si, mas apenas por fugirem das idéias de
antiquado e formalista associadas a tais padrões.
É a troca da emoção estética espontânea por idéias externas,
puramente racionais, além de falaciosas.
Em última instância, qualquer lei estética que vise estabelecer
padrões sobre como deva ou não deva ser a arte, não importa
que parta dos mais nobres e puros ideais, acabará cerceando
de liberdade, e caso triunfe política ou historicamente, como
triunfou o modernismo, acabará por se tornar academismo.
Eu não estou afirmando que a poesia deve ser
em verso regular. Longe de mim tal arrogância. O dia em que
se extinguirem as pretensão de se criar leis e princípios universais,
a humanidade terá dado um enorme passo. Eu apenas convido o
leitor a experimentar sem preconceitos modernistas a emoção,
o conforto (o prazer?) do verso regular, e sentir seu poder
primordial.
A rebeldia dos modernistas acabou sendo contraproducente quando
voltou sua artilharia contra suas próprias raízes. Negar padrões
estéticos ligados profundamente à natureza humana não contribuiu
para fortalecer a cultura nacional, nem para romper com o academismo.
Pelo contrário, levou as pessoas a perder a confiança em si
mesmas e em seu senso estético. Criou um novo academismo diante
do qual as pessoas ficam ainda mais pasmas do que antes. Uma
arte ainda mais artificial, ainda mais distante da essência
humana do que qualquer academismo do passado, uma arte que tem
como fundamento não a expressão humana espontânea, mas elucubrações
racionais saídas de cérebros arrogantes.
Esse, porém, não é um problema que ocorre só no modernismo
brasileiro, e sim de toda a arte moderna. O século vinte tem
aspectos de arrogância intelectual desconcertante, que se mescla
à uma incrível falta de consciência da própria ignorância e
das próprias limitações. Herança do final do século XIX, onde
certas ciências pretendiam ter esgotado o conhecimento do mundo,
e onde sob influência destas surgiram doutrinas filosóficas
com a pretensão de conhecimento absoluto, de esgotar a história
e a própria filosofia, negando tudo o que houvera antes e deterministicamente
negando tudo o que poderia haver depois.
A arte moderna muitas vezes arrasa tudo, como o sujeito que
por estar sofrendo de algum abalo moral dá um tiro na própria
cabeça. O sofrimento do abalo moral acaba, mas tudo o mais também
acaba. E aí não há mais como se arrepender. Ela nega não apenas
o sofrimento, não apenas os ideais de alguma escola passada,
ou academismo institucionalizado. Nega tudo, inclusive os instintos
estéticos primordiais, e a capacidade humana de prazer ou conforto
estético. É uma atitude destruidora tipicamente adolescente.
E assim surge um mundo onde as pessoas não acreditam nem em
si mesmas nem em suas impressões e julgamentos sobre as coisas.
Para finalizar eu apresento a descrição, escrita por não sei
quem, de uma obra de um compositor contemporâneo brasileiro
(presente em um material impresso pelo Governo do Estado de
São Paulo):
Quando pensamos em música a primeira
coisa que nos vem à cabeça é o jogo bastante costumeiro entre
melodias, harmonias e seqüências rítmicas. A prática está tão
enraizada, que tudo aquilo que foge aos nossos hábitos cai no
campo da não música. É claro que tal situação não nos chegou
à toa, há uma história por trás disso tudo. Mas o nosso maior
problema é não conhecer tal história e acreditar que, para o
homem, a música sempre foi aquilo que, ora ou outra, confundimos
com a idéia da canção.
A música do Sr. X foge justamente
deste rótulo já batido do que vem a ser música e não música.
(...) Villa – Lobos tratou tais ambientes e lhes sobrepôs o
homem cantando algumas cantigas fáceis; com isto, Villa não
só agradava aos que tinham apreço pela riqueza de sons de uma
floresta, quanto aos mais “preguiçosos”, que precisavam de uma
melodia para descansar os ouvidos afoitos por simbolismos sentimentais.
(...)Seguindo mais um passo da tradição musical herdada do século
XX, o Sr. X faz uma música que não tem mais na melodia o seu
tema principal
Em resumo, ou você finge gostar do monstruosidade alucinada
que o cara criou, ou você é um escravo da tal "prática
enraizada" que nos foi impingida por alguma suposta
história. Mas não só isso, você também será um “preguiçosos",
que precisa de uma melodia para descansar os ouvidos afoitos
por simbolismos sentimentais.
Não creio que as pessoas do século XIX, ou XVIII, ou da idade
média, ou de Tróia se deixassem impressionar por essa fanfarronice.
Não. Eles diriam sem constrangimento que aquela coisa não é
música porra nenhuma! nunca! nem aqui nem no Hades... nem no
Tártaro. Mas nós, que para nossa miséria vivemos nos século
XX ou XXI, não podemos confiar em nossas impressões. Afinal
existiram aqueles tais "rebeldes" de 22, que foram
os vitoriosos históricos, e que acabaram relegando a um papel
quase humilhante os que se lhe opuseram, como por exemplo Monteiro
Lobato, que criticava a arte modernista afirmando que ela visa
desnortear, aparvalhar o espectador.
Eu tinha uns oito anos de idade quando um senhor, amigo de
minha família, voltou de uma longa viagem de trabalho (ele era
geólogo) e trouxe um disco, daqueles antigos, de furo largo,
de 78 ou 45 rotações. Era a música tradicional de Bora Bora
(ilha da Polinésia Francesa), idêntica à que existia antes da
chegada dos europeus. No exato instante que escutei, eu adorei
a música!
Não havia nenhum obscuro fator de alguma obscura história para
me obrigar a gostar de tal música. Mas a expressão espontânea
de meus irmãos humanos batucando em seus troncos de árvore me
falou direto ao coração. Anos mais tarde, quando eu escutei
pela primeira vez a música tradicional japonesa, confesso que
não gostei tanto (hoje gosto bem mais), mas o fato é que nunca,
nem por um ínfimo instante, eu tive dúvida de que aquilo era
música.
A delirante criação do nosso amigo, compositor moderno, Sr.
X é algo inteiramente diferente. É uma concepção puramente mental,
que parte de falsas suposições e idéias. Da idéia que as melodias,
harmonias e sequências rítmicas não tenham tido fortes motivos
intrínsecos para surgir, que não tenham uma ligação primordial
com o ser humano. Da idéia que os "preguiçosos" poderão
"aprender" a gostar de sua "música", assim
como no passado "aprenderam" a gostar de música com
ritmo.
Mesmo que admitíssemos que a música com melodias, harmonias
e sequências rítmicas seja uma mera convenção entre infinitas
outras convenções possíveis (coisa que me parece absolutamente
inverossímil) isso não significará de maneira alguma que qualquer
coisa imaginada virá a ser música. Isso não fará da criação
do Sr. X uma alternativa viável à música que se conhece como
tal.
Eu não tenho, e creio que ninguém pode ter, a pretensão de
dizer o que é música e o que não é, o que é arte e o que não
é. Quem criou a coisa, que a considere como julgar adequado.
Mas eu me sinto sim insultado com o autoritarismo de quererem
impingir essa "arte" a mim e às pessoas, através de
explicações racionais ou de chantagem.
Pois então, se chegarmos a tanto, que eu seja o "preguiçoso",
que "precise de uma melodia para descansar os ouvidos afoitos
por simbolismos sentimentais"! Que seja. Antes isso do
que ser um fantoche do século XX, aparvalhado e intimidado diante
de uma estética que não me diz nada.
A tradução de "O Corvo"
Eu considero O Corvo simplesmente a mais impressionante
poesia jamais escrita. Por isso eu vacilei por muito tempo antes
de iniciar sua tradução literária (seu sentido denotativo eu
já havia traduzido há muito tempo, tradução que foi inclusive
publicada em meu livro de 2.000). A poesia tem uma riqueza quase
inacreditável de elementos rítmicos e sonoros, tem um ritmo
lento, majestoso e sombrio, que aos poucos vai hipnotizando
o leitor/ouvinte, e fazendo-o mergulhar na atmosfera de sofrimento,
perda e angústia.
Mesmo quem tenha uma concepção estética e poética inteiramente
diversa da minha, mesmo quem seja fervorosamente avesso à métrica,
enfim, qualquer leitor ou tradutor que se dedique a olhar um
pouco para o poema com um mínimo de atenção, há de concordar
comigo que para se tentar traduzir o corvo não se pode ignorar
seus elementos rítmicos e sonoros.
Claro que tais elementos têm sua importância ainda intensificada
quando observados por um tradutor que, como eu, tenha afinidade
pela versificação e por estruturas simétricas e regulares. Foi
justamente por reconhecer esse papel subjetivo do tradutor que
tive a preocupação de aclarar ao leitor minha visão pessoal
de poesia. Mas é fundamental que fique patente que, ao se falar
da tradução de O Corvo, a importância essencial da estrutura
rítmica, dos elementos sonoros, e de outros aspectos formais
não são ditadas pelo gosto subjetivo deste tradutor, mas sim
pela própria obra, bem como pela concepção poética do próprio
autor.
Num ambiente solitário e triste. Em um quarto. O único quarto
iluminado de uma enorme casa. Uma noite de tempestade. Meia
noite. Faz muito frio. As brasas da lareira, algumas acesas
outras apagando, fazem sombras fantasmagóricas no chão e nas
paredes. O protagonista estuda velhos volumes de esquecidas
ciências, e tenta com isso afastar pensamentos terríveis, muito
dolorosos. Tenta afastar a lembrança de sua amada, que já esteve
ali, naquele quarto, com ele. Mas que agora está morta. Ele
tenta afastar os pensamentos, mas eles insistem em voltar. É
uma daquelas noites que você pede para que acabe logo, para
que chegue a manhã. Daquelas noites em que você pensa ter ouvido
algo... se arrepia de medo... tenta dizer para si mesmo que
foi apenas um ranger natural de alguma porta ou assoalho...
mas nunca consegue ter certeza se ouviu mesmo alguma coisa ou
não... Então você começa a sentir sua cabeça pender para frente,
quando...
O Corvo é composto em 18 estrofes idênticas, cada uma delas
com 6 versos. Cada um desses seis versos tem sempre as mesmas
características em todas as 18 estrofes. Os versos são compostos
por pés trocaico. Um pé trocaico é um conjunto de duas silabas,
sendo a primeira forte, e a segunda fraca. O primeiro e o terceiro
versos de cada estrofe tem oito pés, portanto dezesseis sílabas,
sendo que o último acento recai sobre a décima quinta. O segundo,
o quarto e o quinto tem sete pés e meio, portanto quinze sílabas,
sendo que o último acento recai sobre a última sílaba. O sexto
tem sete sílabas, sendo que o último acento recai sobre a última.
De acordo com a nomenclatura comum utilizada no estudo de formas
da poesia de língua inglesa, os versos 1 e 3 seriam classificados
como "trochaic octametre acatalectic"; os versos 2,
4 e 5 como "trochaic octametre catalectic" (Poe, em
The Philosophy of Composition, chama esses versos de
"heptametre catalectic", mas isso é claramente uma
imprecisão de nomenclatura ou um engano); e o verso 6 seria
um "trochaic tetrametre catalectic".
Para nós será muito mais fácil analisar os versos através da
maneira que estamos acostumados em língua portuguesa. Os versos
1 a 5 serão todos de 14 sílabas, com censura. O primeiro e o
terceiro serão graves, o segundo, o quarto e o quinto serão
agudos. O sexto verso será um heptassílabo agudo.
Vejamos os modelo rítmico dos versos
1, 2 e 6:
≈ corresponde a sílaba
forte.
~ corresponde a sílaba fraca.
(~) corresponde à sílaba fraca descartada
após a censura.
On - ce u - pon a mid-night
drea- ry while I pon
- dered, wea k and wea ry
≈ ~ ≈ ~ ≈
~ ≈ (~) ≈ ~
≈ ~ ≈ ~ ≈
~
1 2 3 4 5 6
7 (~) 8 9 10 11 12
13 14 (15 não é contada)
O - ver ma ny
a quaint and cu - rious vo
lu me of for - got - ten lore,
≈ ~ ≈ ~ ≈
~ ≈ (~) ≈ ~ (≈)
~ ≈ ~ ≈
1 2 3 4 5
6 7 (~) 8 9 (10) 11
12 13 14
On - ly this and no
thing more
≈ ~ ≈ ~ ≈
~ ≈
1 2 3 4 5
6 7
Para simplificar ainda mais, os versos de 14 sílabas podem
ser divididos em dois versos de sete. Façamos esta divisão,
que será útil para se compreender a estrutura da estrofe:
Once upon a midnight dreary
while I pondered, weak and weary,
Over many a quaint and curious
volume of forgotten lore,
While I nodded, nearly napping
suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping
rapping at my chamber door.
“‘’Tis some visitor”, I muttered,
“tapping at my chamber door-
Only this and nothing more.”
Temos então 11 heptassílabos divididos em três grupos. O verso
final de cada grupo (e também o verso 10) é sempre agudo (termina
com palavra acentuada na última sílaba) e tem a rima lore,
door, more (Leonore, floor, shore,
yore). Os outros heptassílabos (1,2,3,5,6,7 e 9), ao
contrário são sempre graves e nunca rimam com more.
O som grave e profundo deste more, marca o ritmo da
poesia e assinala o fim das estrofes e dos versos mais importantes.
Em minha opinião, este é o coração pulsante do poema, que cumpre
o mesmo papel do surdo em uma bateria de escola de samba.
Em todas as estrofes, o primeiro heptassílabos rima com o segundo
- dreary-weary, e quase sempre com o terceiro; rimam
também o quinto, sexto e sétimo - napping, tapping, rapping.
As rimas em ore do quarto e do oitavo heptassílabos
cria duas quadras. Os heptassílabos 9, 10 e 11 formam um terceto,
que também termina com a rima em ore. O resultado é a
seguinte estrutura de rimas a,a,x,c - b,b,b,c – x,c,c.
Esta estrutura, em minha maneira de compreender o poema, é o
arcabouço no qual se encaixam todos os outros elementos.
Eu vou ler as três primeiras estrofes:
Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,
While I nodded5 , nearly napping, suddenly there
came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
“‘’Tis some visitor”, I muttered, “tapping at my chamber door-
- Only this and nothing more.”
Ah, distinctly I remember it was in the bleak December,
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow; vainly I had sought to borrow
From my book surcease of sorrow - sorrow for the lost Lenore,
-For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore
-Nameless here for evermore.
And the silken, sad, uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me - filled me with fantastic terrors never felt before;
So that11 now, to still12
the beating of my heart, I stood repeating:
“‘’Tis some visitor entreating entrance at my chamber door –
Some late visitor entreating entrance at my chamber door -;
- This it is and nothing more.”
Eu inicio meu projeto de tradução os elementos que deveram
ser mantidos. Os essenciais e imprescindíveis são:
– O elemento mais importante de todos, que marca o andamento
de toda a poesia são as rimas fortes no final dos heptassílabos
4, 8 e 11;
– Estrofes compostas por seis versos regulares. Os cinco
primeiros longos, idênticos em tamanho (contando-se até a última
sílaba acentuada), e divisíveis em dois semiversos menores.
O sexto tem a metade do tamanho dos cinco anteriores;
– As rimas internas dos versos grandes, que ocorrem no
final dos heptassílabos 1, 2 e 3 (grupo 1), e 5, 6 e 7 (grupo
2);
– Ritmo trocaico.
Outro elemento essencial, mas não tão importante quanto os
anteriores é a enorme quantidade de aliterações, consonâncias,
ecos, simetria de sons vocálicos e outros elementos rítmicos
do interior dos versos. Incluindo os pares e tríades aliterativos,
muitos deles de significado similar. Também importante é a sonoridade
sombria de muitas palavras.
Vocês podem notar que não existe nenhum segredo nessa enumeração
de elementos. Porém, surpreendentemente, se examinarmos as muitas
traduções da poesia para o português encontraremos poucas que
respeitam a maior parte desses elementos, e muitas que desrespeitam
todos eles.
Para minha surpresa, Machado de Assis utilizou
estrofes de dez versos, uns octossílabos, outros decassílabos
e outros ainda dodecassílabos, tornando a poesia original é
irreconhecível.
Alguns fizeram ainda pior, como Emílio de Meneses
que "traduziu" a poesia em sonetos, e Benedito
Lopes que tentou fazer o mesmo, mas nem isso conseguiu.
Gondin da Fonseca respeitou a lógica da estrofe,
utilizando versos de dezesseis sílabas para os versos longos
e de oito para o verso curto final, mas não respeitou as rimas,
e com isso sua tradução perdeu a maior parte do encanto da original.
Além disso o verso com número par de sílabas impede um ritmo
trocaico.
Milton Amado foi por caminho similar, versos
de dezesseis sílabas, e realizou a tradução que é preferida
por alguns, como o poeta Ivo Barroso e o Jornalista Carlos Heitor
Cony. Ele respeita as rimas internas dos versos e consegue um
excelente resultado, o melhor até hoje, na reprodução dos elementos
ritmos menores. Mas cometeu o grave erro, inaceitável em minha
opinião, de não rimar os versos 2, 4, (5) e 6. Sua escolha de
dezesseis sílabas também tem o defeito de impedir o ritmo trocaico.
Em minha opinião, as únicas traduções que respeitaram a poesia,
e que resgatam pelo menos parte de seu impacto são as de Fernando
Pessoa e de Alexei Bueno, ambas
realizadas em versos de quatorze sílabas com censura (como os
originais), e respeitando as rimas em ore (que em português
foram convertidas para "ais").
Ao iniciar o trabalho, a primeira escolha será definir qual
o tamanho de verso a ser utilizado. Como vocês sabem, as palavras
em inglês são mais curtas do que em português, e assim o sentido
das palavras de um verso em inglês de sete sílabas dificilmente
poderá ser transmitido sem alguns cortes por um verso em português
também de sete sílabas. Normalmente, quando é possível, é melhor
usar um tamanho de verso em português um pouco maior do que
o original. Essa prática tem a vantagem adicional de criar uma
textura sonora mais próxima da original, pois a pronúncia inglesa
de sete sílabas contém mais sons consonantais e mais separações
do que as mesmas sete sílabas em português. (Em meu livro, Pequena
Coletânea de Poesias de Língua Inglesa, eu discuto essa questão
com maior detalhe.)
Porém no caso de O Corvo, esse recurso não pode ser usado tão
facilmente. Como sabemos, o ritmo é trocaico, e assim, se quisermos
manter esse ritmo deveremos usar um número ímpar de sílabas
para os semiversos (ou hemistíquios). No original esse número
é sete. O caminho escolhido por Gondin da Fonseca
e Milton Amado foi usar oito sílabas (resultando
em um verso de dezesseis), mas a destruição do ritmo trocaico
prejudicou o efeito da poesia. Assim só resta a escolha de sete
ou nove sílabas. Eu escolhi sete, sabendo que acabaria com um
verso que daria a impressão sonora de ser mais curto do que
o original, e que muitas vezes eu seria obrigado a cortar parte
do sentido. O fator que me levou a isso foi a excessiva extensão
do verso de dezoito sílabas que resultaria se eu escolhesse
semiversos de nove. O verso original, de quatorze, já é um verso
bastante longo.
Uma outra questão delicada é a rima em "ore"
do original. É difícil imaginar uma alternativa para "nunca
mais" para traduzir o refrão "never more". Assim,
o "ore" em português tem que se transformar
em "ais". Fernando Pessoa e Alexei
Bueno tiveram que fazer malabarismos para rimar "ais"
com o nome da namorada do protagonista, "Lenore".
Eu estou tentando um caminho diferente, sobre o qual ainda tenho
dúvidas, e tenho discutido com pessoas a respeito. (Aliás, para
me desmentir, essa é uma questão típica de teoria da tradução.)
Minha idéia, por favor, não riam, é trocar o nome de moça para
"Leonais".
A partir dessas escolhas, o trabalho foi escolher possíveis
alternativas para reproduzir ao mesmo tempo sentido e elementos
ritmos. Muitas vezes mudando o sentido de diversos detalhes
de cada verso. Eu cheguei ao seguinte resultado para as três
primeiras estrofes.
I
Numa meia-noite horrenda que tardava lassa e lenta,
Eu pensava... debruçado sobre tomos ancestrais;
A cabeça já pendia, quando achei que um som ouvia,
como alguém que ali batia, suavemente a meus umbrais.
"Alguém bate", eu murmurei, "alguém bate a meus
umbrais –
– É só isto e nada mais."
II
Claramente... eu bem me lembro, foi no gélido dezembro,
e das brasas já morrendo vinham sombras fantasmais.
A manhã, eu ansiava, e do livro eu esperava
um alivio à dor amarga pela perda de Leonais.
Pela linda e langue dama a quem nos céus chamam Leonais.
Que não voltará jamais
III
E o sutil, sedoso, incerto som das cortinas abertas
me traziam tais temores que eu não sentira jamais;
coração em disparada, eu dizia estas palavras:
"É alguém pedindo entrada, alguém batendo a meus umbrais
–
Um tardio visitante pede entrada a meus umbrais –
– Isso apenas. Nada mais."
Examinemos agora em detalhes alguns elementos rítmicos. (Primeira
e terceira estrofes)
(continua...)
Anexos
Anexo 1 - Algumas definições de poesia:
1. Definição baseada no papel que as palavras têm
em um texto:
"Poesia é um texto em que o significante não existe
meramente à serviço do significado; onde significante e significado
funcionam juntos; e onde é este conjunto (e não apenas o significado)
que provoca sentimentos, impressões, emoções ou reflexões."
"Na poesia, cada palavra tem seu papel não apenas por
seu significado, mas por seu ritmo, pela sua sonoridade, pela
forma como se relaciona com as outras palavras, e, modernamente,
até mesmo pelo seu aspecto visual..." Essa definição
tem o mérito de deixar bem claro que poesia não é só significado.
Aliás, esse talvez seja o único ponto sobre o qual eu nunca
vi discordância por parte de poetas ou apreciadores de poesia.
Não importa o quão "poético" seja o conteúdo de
um texto, se o autor o escreveu preocupado apenas com o significado
– tendo apenas a sintaxe como guia – não é poesia! Se alguém
tem essa idéia de que o que realmente importa na poesia é
o significado e de que o resto – o ritmo, a métrica, a rima
– são detalhes, esta pessoa provavelmente teve pouco contato
com poesia, e a encara como se ela fosse uma espécie rebuscada
ou enfeitada de prosa. De vez em quando aparece alguém para
dizer algo como: "De poesia, eu gosto do significado."
Isso é mais ou menos como aquele americano que certa vez declarou
que "gostava ser goleiro porque adorava desarmar o adversário,
limpar a jogada e passar, e se possível sair driblando e marcar
o gol." O goleiro pode até fazer tudo isso, principalmente
se for o Highita da Colômbia, mas nós sabemos que a função
dele não é essa. A lógica de um texto não-poesia está na estrutura
sintática e no significado. A lógica da poesia vai além da
estrutura sintática e do significado. Vejamos:
Batatinha quando nasce
Lança as ramas pelo chão (ou, Se esparrama pelo
chão)
A menina quando dorme
Bota a mão no coração.
Muitas crianças gostam desta cantiga ou de outras pequenas
poesias infantis desse tipo. Gostam tanto, que muitas vezes
ficam a repeti-la dezenas de vezes. Qual a lógica da cantiga?
O significado? Pois então vejamos um texto com significado
similar:
Espinafrinho quando brota
Deixa sua raizinha debaixo da terra,
A menina quando dorme
Bota a mãozinha no coração.
Agora temos algo simplesmente horrível. Mas por quê? O significado
piorou tanto? Não. Então podemos perceber que a cantiga original
tem uma lógica própria, uma lógica que não vem do significado.
A poesia tem uma lógica própria, uma lógica além da sintaxe
e do significado.Voltando à definição, os problemas realmente
começam quando tentamos visualizar a linha divisória entre
o que é poesia e o que não é. Isso porque não é exclusivamente
na poesia que o significante recebe atenção. É fato reconhecido
que escritores de romances, contos e outros gêneros-não-poesia
levam em consideração não apenas o significado das palavras
mas seu ritmo, musicalidade e outras características. Eu posso
lhes garantir isso por experiência própria, pois eu mesmo
o faço. Não vou me aprofundar agora nesse ponto, pois o assunto
foge ao nosso objetivo. Mas a matéria merece atenção. O leitor
pode verificar por si mesmo como a mudança da posição de um
advérbio pode, sem alterar o significado, alterar o ritmo
do texto. O mesmo ocorre com a escolha de uma pontuação mais
interrompida ou mais solta, a escolha de uma conjunção ao
invés de outra de sentido próximo, ou outros infinitas escolhas
que o escritor tem à sua disposição. A mudança de ritmo, por
sua vez, altera o resultado final do texto.
2. Definição baseada apenas na forma:
"(...) quem toma (a poesia) externamente
e, obedecendo livremente à impressão de seu ouvido ou de sua
vista, classifica de poesia as formas de falar de aparência
simétrica, e de prosa as de aparência assimétrica, não anda
muito desencaminhado. Eu não saberia recomendar hoje em dia
um procedimento mais conveniente que este, empregado há milênios."
(Karl Vossler, Filosofía del Lenguaje, apud Massaud Moisés,
A Criação Literária - Poesia, Ed. Cultrix). Nessa definição
existe quase que uma equiparação da idéia de poesia com a
idéia de verso. Existem porém argumentos contrários a essa
idéia de que qualquer verso seja poesia. Conforme relata o
próprio Massaud Moisés, já na Grécia antiga Aristóteles afirmava
que nem todo verso é poesia: "Até mesmo quando um tratado
de medicina ou ciência natural é escrito em verso, habitualmente
se dá o nome de 'poeta' ao autor, porém Homero e Empedocles
nada têm em comum além da métrica, e portanto seria correto
chamar o primeiro de poeta e o outro de cientista natural
ao invés de poeta." (traduzido a partir da tradução inglesa
de S. H. Butcher, The Internet Classics Archive - http://classics.mit.edu/Search/index.html).
3. Definição baseada em aspectos mais amplos do significado:
"A poesia é a arte de comunicar a emoção humana pelo
verbo musical", (René Waltz, apud Massaud Moisés, A Criação
Literária - Poesia, Ed. Cultrix). "A poesia é a expressão
natural dos mais violentos modos de emoção pessoal",
(J. Middleton Murry, apud Massaud Moisés, op. cit.) A poesia
é o "extravasar espontâneo de poderosos sentimentos",
(William Wordsworth, prefácio à segunda edição de Lyrical
Ballads, 1800).
4. Definição baseadas em estudos lingüísticos de funções
da linguagem:
"O texto poético é, pois, aquele em que a função poética
se sobrepõe às demais e delas se destaca, sem eliminá-las."
Mário Laranjeira, Poética da Tradução, Ed. Edusp).
Anexo 2 - Tradução de poesia versus tradução de prosa:
A maneira habitual e didática de se iniciar uma discussão
sobre tradução de poesia é a comparação entre esta e a tradução
de um texto não poético. Ao se traduzir, por exemplo, o manual
de instruções de um eletrodoméstico qualquer, a atenção do
tradutor estará voltada unicamente para o sentido
do texto. Para a função denotativa, cognitiva, do texto, (que
Jakobson chama de função referencial da linguagem).
Não tem nenhuma importância se determinada palavra é mais
longa ou mais curta, se tem um som claro ou sombrio, se se
inicia com determinada consoante, ou se rima com uma outra
palavra qualquer. No manual de algum rádio de carro, a forte
aliteração de stored stations ocorre por acaso (a não
ser que o redator seja um poeta recalcado), e sua tradução
por estações armazenadas (onde não resta qualquer traço
da aliteração) será inteiramente adequada, pois o sentido
foi preservado, e o leitor saberá como usar o rádio. Já
em uma poesia nada acontece por acaso.
O par weak and weary, por exemplo, do primeiro verso
de "O Corvo", se for traduzido por enfraquecido
e exaurido, terá sido inteiramente desfigurado. Evidentemente
não é possível, em outro idioma, manter intactos o sentido
e a forma da poesia original. E, assim,
a tradução de poesia será sempre um trabalho de buscar soluções;
soluções para criar, em um idioma exótico, um texto que de
alguma forma expresse, comunique, através do sentido
e da forma, algo similar ao que a poesia
original expressava, comunicava. Eu mesmo, na introdução a
meu livro Pequena Coletânea de Poesias de Língua Inglesa,
abordo a questão por esse lado. Mas hoje, aqui, minha proposta
é outra. A definição de Frost:O poeta americano
Robert Frost (1874-1963), que escreveu "The road
not taken", define poesia como: "o que ficou para
trás na tradução". Ou seja, quando houver dúvida sobre
se um texto é ou não poesia, basta traduzir. O que passou
pela tradução é prosa, o que não pôde (e não pode) ser traduzido
é poesia. A primeira vez que eu vi essa definição, eu achei
muito bacana: "Poesia é o que não pode ser traduzido".
Os anos foram passando, e eu fui continuando a achar a definição
ótima: "Poesia é o que não pode ser traduzido".
Ai um dia eu resolvi que eu queria ser "tradutor de poesia",
e então, assim num passe de mágica, a tal definição que era
tão boa, passou a ser... !
A idéia de traduzir qualquer texto do português para o próprio
português me parece, no mínimo, autoritária.
Imaginem que uma moça dos confins do Brasil entrasse aqui,
por aquela porta, e dissesse:
– Pra mim podê chegá aqui eu tive que amontá num
ônibus.
Imaginem então que alguém tivesse a arrogância de levantar
e falar:
– Deixa que eu vou traduzir: (Pomposamente) "Para
eu poder chegar aqui, tive que pegar o ônibus."
Se alguém fizesse isso, todos aqui concordam que seria uma
tremenda grosseria, uma tremenda arrogância. Algo totalmente
inadequado. A tal "tradução" não seria um meio para
aclarar a frase da moça, pois essa teria sido compreendida
por todos em sua forma original. A tal tradução seria sim
uma forma até de tentar se mostrar superior à moça, ou mesmo
de humilhá-la. Será que não seria similar a esse o objetivo
do grande poeta Manuel Bandeira?