Casa da Cultura: Literatura, Artes, Geografia e Folclore do Brasil Assine
Gratuitamente
Voltar para  Índice de Artigos sobre  Poesia e Poética
Artigos
Poética
Voltar para o Índice Geral da Seção de Poesias
Índice Geral
de Poesias
Página Inicial da Casa da Cultura
Casa da Cultura

Artigos sobre Poética, Poesia e temas afins

Poesia e Tradução (Palestra)

O papel e a importância da métrica regular na poesia;
a tradução da poesia metrificada.

 

Palestra proferida por André Carlos Salzano Masini na Casa da Palavra
de Santo André, SP, no dia 27/06/2002.
Copyright © 2002  by André Carlos Salzano Masini.
Texto registrado na Biblioteca Nacional, e salvaguardado por outros meios.
 

Apresentação:

Boa noite. É um grande prazer estar aqui com vocês hoje. Meu nome é André Masini, e eu traduzo poesia.

Eu sempre procuro deixar claro que minha visão da tradução é intuitiva e meu método de trabalho não é formal ou acadêmico. Mas isso não deve dar idéia de que exista em minha prática qualquer leviandade: o empenho nela exigido não é, de maneira nenhuma, menor do que aquele que seria exigido em qualquer trabalho acadêmico. A possibilidade de menor rigor em certos aspectos vem acompanhada da possibilidade de maior atenção a outros.

Meu ponto de partida para a tradução de poesia é o amor pela poesia. Minhas referências conscientes e ferramentas de trabalho são a língua (dicionários, léxicos, gramáticas, sintaxes) e a poética, e, depois destas, o estudo da obra e vida do autor e da literatura de sua época*. Não se incluem aí as questões teóricas sobre tradução. [* Com relação ao estudo do autor e da literatura de sua época, eu devo admitir que me permito trabalhar com aprofundamento menor do que seria exigido em um estudo acadêmico formal. E como conseqüência posso trabalhar com poetas variados, de épocas variadas. Tal prática evidentemente traz riscos. Exatamente por isso, eu não me digo tradutor deste ou daquele autor. Faço sempre questão de ressalvar que não sou "tradutor de Keats" ou "tradutor de Yeats", mas tradutor de poemas de Keats e de Yeats.]

Quando eu inicio um trabalho de tradução, minha atenção não está voltada para questões como o "papel do tradutor" (escravo do autor, obrigado a seguir seus passos sem jamais alcançar sua grandeza? ou artista, cujo papel não é inferior ao do próprio autor?), ou a discussão sobre se a tradução deva ser literal ou mais livre, ou ainda se o tradutor deve ou não "contribuir com as idéias do original" acrescentando ou tirando. Não. Nenhuma dessas questões está definida para mim. (Com uma exceção: a impossibilidade da tradução literal de poesia. Pois, partindo-se do princípio de que poesia é significado e forma, não apenas significado, infere-se que qualquer tradução literal será tradução apenas do significado, não da poesia.)

Diante de uma poesia a ser traduzida, minha atenção estará voltada para a forma das estrofes e dos versos, a distribuição de elementos rítmicos, os sons claros e sombrios, isso sem esquecer o sentido. Minha mente estará ocupada estudando as possibilidades de se trazer esse conjunto todo para o português.

Essa minha forma de trabalhar, porém, não pode de maneira alguma ser usada como argumento para se tentar subtrair a importância dos estudos teóricos de tradução.

Em primeiro lugar, existe a influência das históricas realizações de tradução (de Os Lusíadas de Sir Richard Fanshawe, 1665, até trabalhos contemporâneos como os dos irmãos Campos), que são, direta ou indiretamente, referências para qualquer pessoa que se propõe a traduzir.

Além disso, é importante verificar que, conscientemente ou não, por trás de um trabalho de tradução sempre existirão princípios e métodos; mesmo para o tradutor que, com eu, trabalhe intuitivamente, sem prestar atenção ou notar esses princípios. Eu mesmo, se me propuser a refletir sobre minha maneira de ver a tradução e de trabalhar com ela, poderia nela identificar princípios, e até encontrar a correspondência destes com postulados teóricos. Vou dar apenas um exemplo: Eu sempre acreditei que uma tradução para o português deva ter a aparência de ter sido originalmente escrita em português. Sempre julguei errada a utilização de construções sintáticas antinaturais ou forçadas, ou de palavras em situações pouco comuns no nosso idioma, apenas para se manter a semelhança com o original. Esse princípio intuitivo corresponde quase que exatamente a uma das "leis" que Alexander Fraser Tytler propõe em seu "Essay on the Principles of Translation" de 1790: "(...) the Translation should have all the ease of original composition."

Se meu interesse está voltado principalmente para a poesia em si, e não para a teoria da tradução, a própria teoria da tradução dá validade a essa minha postura. O poeta inglês e teórico da tradução John Dryden já afirmava, no século XVII, que o mais importante (para se traduzir poesia) é que o tradutor seja poeta e mestre de ambas as línguas com as quais trabalha.

Eu sou um amante do verso e da versificação, das "figuras de som" reiterativas, do ritmo, das aliterações, consonâncias e rimas; isso para não falar das figuras de linguagem, das imagens criadas, das idéias. Toda vez que me deparo com uma obra de versos regulares, em que cada elemento rítmico e sonoro tem grande importância, aumenta em mim a convicção de que para tentar traduzi-la é necessário ser igualmente apaixonado pela poética, pelo verso e pela versificação.

Assim, minha proposta aqui é falar da tradução de poesia pensando na poesia, não na teoria da tradução, e tentar por a descoberto a minha forma de traduzir.

Eu separei minha exposição em três partes. Na primeira tentarei mostrar como a tradução depende do tradutor, depende das intenções que ele tem ao empreender seu trabalho e depende da idéia que ele faz de o que é poesia. Na segunda, eu vou tentar deixar claro qual é a minha idéia de poesia e quais são os meus objetivos com a tradução. E por último, finalmente, vou analisar, junto com vocês, o trabalho de tradução de The Raven, ao qual estou dedicado atualmente (mas que se iniciou há muitos anos).

 

O tradutor e a tradução.

Manuel Bandeira fez algumas "traduções" do português para o próprio português. Vejamos um exemplo:

Ele pegou a seguinte poesia de Joaquim Manoel de Macedo:

Mulher, irmã, escuta-me: não ames,

Quando a teus pés um homem terno e curvo

Jurar amor, chorar pranto de sangue,

Não creias, não mulher: ele te engana!

As lágrimas são galas de mentira

E o juramento manto de perfídia

 

E "traduziu" por:

Teresa, se algum sujeito bancar o sentimental em cima de você

E te jurar uma paixão do tamanho de um bonde

Se ele chorar

Se ele se ajoelhar

Se ele se rasgar todo

Não acredita não Teresa

É lágrima de cinema

É tapeação

Mentira

CAI FORA

"Tradução" do português para o português. E para que serve isso?

Se pensarmos em um texto antigo, cuja compreensão tenha se tornado difícil, eu consigo entender que alguém se proponha a "traduzi-lo", substituindo palavras e construções arcaicas ou obsoletas por outras que estejam em uso. Mas não me parece ser o caso aqui, nem essa a intenção de Bandeira. Na poesia, a única palavra que eu vejo usada em uma acepção um pouco estranha ao português brasileiro atual é galas, que no contexto significa ostentações, jactâncias, fanfarrices, alardes.

Mas o "tradutor" foi ainda mais longe. Ele pegou um texto composto em seis versos regulares de 10 sílabas, decassílabos heróicos, com rimas toantes (imperfeitas) entre 1 e 3, 5 e 6, e o transformou em algo totalmente irregular.

Qual a intenção de Bandeira? O resultado obtido é uma boa poesia? Um bom exemplo de boa arte verbal? É claro que nosso objetivo aqui não é responder a essas perguntas, nem analisar esse texto que ele produziu. O que nos interessa é utilizar o exemplo para verificar algo importantíssimo: que a tradução depende do tradutor, das intenções que ele tem ao empreender seu trabalho, e da idéia que ele faz de o que é poesia. (Queira ver o Anexo 3)

Minha concepção de poesia.

Minha concepção de poesia tem algumas severas divergências em relação às concepções predominantes nos dias de hoje.

Existe uma experiência que eu já fiz inúmeras vezes. Ao falar de poesia com alguém, eu digo, sem maiores explicações, que meus poetas favoritos são os parnasianos, ou que gosto de verso metrificado. Quase sempre eu recebo ou um olhar desconfiado de alguém que discorda sem querer dizer que discorda, ou alguma resposta do tipo:

–          Mas... os parnasianos..?!  com aquele formalismo todo... ?!

ou

–          Verso metrificado?! esse formalismo ultrapassado?! essa falta de liberdade?!

É surpreendente ver como a palavra formalismo  é associada à métrica pela absoluta maioria das pessoas. Inclusive pelas pessoas que não se interessam por poesia e jamais tentaram escrever uma.

Se a conversa prossegue, eu faço uma analogia e pergunto se a pessoa acha que é formalismo o fato de, numa bateria de uma escola de samba, o surdão bater sempre no mesmo ritmo.

Isso ninguém acha que é formalismo.

E se alguém inventasse que é "formalismo o surdão manter o ritmo e o andamento"?! E se alguém dissesse que "para fazer um samba mais 'livre' o surdão deveria bater em ritmo 'livre', uma vez agora, outra daqui a alguns segundos, daí 4 vezes seguidas, depois uma pausa de dez segundos..." ?!

Se examinarmos com um pouco de cuidado, podemos verificar que as noções de formalismo e liberdade não são tão simples e óbvias como os livros escolares fazem parecer.

É curioso notar como tantas pessoas são favoráveis à ruptura que os modernistas realizaram contra o formalismo anterior, notar como essas pessoas rejeitam tranquilamente esse tal formalismo sem que ninguém jamais se preocupe em dizer o que o formalismo significa.

Formalismo em suas acepções mais pejorativas pode significar a qualidade do que não é espontâneo, do que é apegado a formalidades e etiquetas; a exigência de rigor exagerado no cumprimento de normas ou princípios. A palavra traz a idéia de que se pense no aspecto externo, nas aparências, e se deixe de lado a substância. Formalismo é apresentar uma máscara externa sem vida, vazia de substância, e negar o essencial, a substância.

Mas será isso que a poesia era antes do surgimento do modernismo? Uma casca vazia, baseada apenas em rígidas etiquetas convencionais? Foi isso que os poetas fizeram por cerca de três milênios? NÃO! Absolutamente não!

A Ilíada, escrita em uma das formas de verso mais rígidas que se pode imaginar, revela aspectos profundos do ser humano que até hoje fascinam qualquer leitor. Shakespeare e Dante também mergulharam profundamente na alma humana e na compreensão do mundo. É certo que houve poetas e movimentos que preferiram ideais estéticos mais etéreos, sonhos utópicos ou descrições plásticas da natureza, mas nem mesmo nesses casos eu vejo a tal máscara estéril e vazia, a que se poderia chamar de formalismo em suas acepções mais pejorativas.

O que é então o tal formalismo? Alguns associam a palavra às formas e estruturas tradicionais, formas de poema, como o soneto, e formas de verso, como o alexandrino, o decassílabo heróico ou a redondilha. Para que se possa compreender do que se está falando, é essencial não confundir aquele formalismo = máscara vazia com a idéia de valorização de formas, ou utilização de certas formas já existentes.

Enquanto no contato entre pessoas o formalismo significa preocupação apenas com o externo, significa esconder o que existe de mais verdadeiro e essencial, na linguagem a forma (textura sonora, ritmo, relação entre os sons das palavras) é parte de sua própria essência! Sobretudo na poesia, campo em que nunca houve um único teórico que propusesse a irrelevância da forma.

O vers libre, que surgiu entre os poetas franceses da década de 1880, e que serviu de modelo para nossos modernistas, não é um "desprezo pela forma", mas apenas uma tentativa de substituir a métrica tradicional, com número fixo de sílabas, por uma métrica onde o verso corresponde às frases do idioma.

Qual então o significado dessa palavra, formalismo, com que se pretende qualificar toda a poesia anterior ao modernismo? Não pode significar uma máscara vazia, sem substância, pois isso ela não é. Não significa tampouco um tipo de texto em que a forma é relevante, pois isso também é válido para a poesia modernista e para qualquer poesia jamais concebida. Também não poderia significar a utilização de determinadas formas convencionais de poema e verso, pois estas foram mudando através dos tempos, desde Homero até o presente. Edgar Allan Poe não apenas criou uma forma inteiramente nova de estrofe em The Raven, como discute sua originalidade em The Philosophy of Composition.

O que então poderia ser formalismo? Seria a temática dos parnasianos? O ideal de "arte pela arte"? Não, pois a acusação de formalismo não é dirigida apenas aos parnasianos, mas atinge tudo que existiu antes do modernismo.

O que resta então?

Ora! Resta apenas a dicotomia entre verso metrificado e verso livre.

Aqui no Brasil, a começar da segunda década do século vinte, partindo de influências européias que remontam ao século XIX, um conjunto heterogêneo de pessoas e idéias (Oswald de Andrade, Anita Malfatti, etc...) começa a produzir poesias e pinturas bastante distintas do que havia sido feito até então. Era o início de um movimento que explodiria em 1922, com a Semana de Arte Moderna, e que viria receber a designação de "Modernismo".

Em meio a um tom geral de insurgência e rebeldia, o "verso livre" aparecia como estandarte e ao mesmo tempo o carro chefe da nova poesia, cujo principal manifesto teórico seria "A escrava que não é Isaura", de Mário de Andrade, publicada em 1925.

"Colocando o problema da reforma estética entre nós, pouco se salva do passado. Tudo, quase, vai raso. A liquidação literária, no Brasil, assume proporções de queima. (...) É preciso esfacelarem-se os velhos e râncidos moldes literários, reformar-se a técnica, arejar-se o pensamento surrado no eterno uso das mesmas imagens." Escreveu Menotti del Picchia, em "Na maré das Reformas", 1921.

"Guerra ao parnasianismo, ao gagaísmo, ao academismo (...) Guerra aos 'almofadinhas do soneto' (...) ", Joaquim Inojosa, "A Arte Moderna", 1924.

Na época, muitos devaneios foram ditos e publicados, entre eles "a abolição da gramática" (Rubens Borba de Morais, Domingo dos Séculos, 1924, p. 77) e a criação de uma "língua brasileira". Os próprios modernistas se encarregaram de reavaliar muitas dessas quimeras, marcadamente Mário de Andrade, em "O Movimento Modernista", 1942.

O que realmente é irônico em tudo isso é que o academismo contra o qual os rebeldes de 22 com fervor juvenil se insurgiam, não existe mais. Hoje, pelo contrário, academismo é a poesia sem métrica e sem rima, mas muita gente ainda tem a impressão de que isso é novo e até revolucionário. Uma recente chamada publicitária na televisão, divulgando a exposição de 80 anos da Semana de 22, no MAM, mostrava tomates e outras frutas sendo atiradas contra o logotipo do museu... A impressão é de que os responsáveis por essa campanha imaginam o MAM como um ativo foco de criação artística revolucionária. Ora! O MAM é um Museu! Um museu tão museu quanto o Museu do Ipiranga. Aliás, se traçarmos uma linha temporal de hoje até o Grito da Independência, a Semana de 22 estará mais ou menos na metade do caminho.

Quando eu vejo as pessoas ainda associando a estética modernista à rebeldia, me vem à mente a imagem daquele adolescente de 97 anos de idade...

Quando garoto, a mãe sempre o incomodava:

–          Filho! Não coloque o dedo no nariz!

Ele ficava vermelho. Abaixava a cabeça. Mas, quando a mãe não estava olhando, pronto: Lá ia o dedo novamente para o nariz.

Um belo dia, para tristeza de sua magra e enfraquecida mãe, o robusto rapazote de quinze anos resolve, diante das visitas da sala, subir na mesa e, bem diante de todos, enfiar ostensivamente o indicador lá no fundo do nariz, cavoucando por quase um minuto, e depois ainda gritar com cara desafiadora:

–          Eu enfio o dedo quanto quiser!!

Depois foi embora batendo os pés com um sorriso de realização no rosto, dando as costas à mãe e às assustadas visitas.

Quando isso aconteceu, talvez tenha sido uma grande realização para o sujeito. Mas é patético vê-lo hoje, mais de oitenta anos depois do feito, sapateando em cima do túmulo da mãe, enfiando o dedo tremulante no nariz, e berrando entre os acessos de tosse:

–          Enfio quanto eu quiser!

Rebeldia? Ora, rebeldia contra o que?!

Deixando de lado a rebeldia de 22, esquecendo-a em algum museu, que é o lugar dela, o que percebo é que não se discute hoje a dicotomia entre verso livre e verso metrificado de maneira viva e fundamentada.

Se tentarmos examinar a história para buscar as origens desse suposto cerceador de liberdade, o verso metrificado, concluiremos que ele deve ter sido instituído por algum terrível tirano da idade da pedra. Alguém há mais ou menos uns 35.000 anos, um antilibertário cro-magnon, talvez chamado Org ou Mong ou coisa parecida. Um opressor que saiu da caverna, levantou a clava e gritou:

–          A poesia será em verso e metrificada!

Daí pensou um pouco e emendou:

–          E a prosa também!

Sem mencionar o fato de ter exterminado seus primos neandertais (que não tinham sua capacidade verbal), o poder desse Tirano dos tiranos foi tão tremendo que seu mandamento foi seguido à risca por mais de trinta milênios!! Assim, quando a humanidade foi saindo da pré-história, quando a escrita já era sofisticada o suficiente para representar o verso... o que encontramos? Textos antigos, por todos os cantos da Terra, escritos em verso: A Ilíada e a Odisséia são em verso, também o são a Bíblia, a Bhagavadgita, o Rig Veda, o Ramayama, O Tao Te King... mais recentemente, no norte da Europa, Beowulf, e assim por diante...

Examinando essa predominância do verso nos textos antigos, nós podemos optar por aceitar a existência do tirano Org, ou podemos considerar a possibilidade de que o verso, e o verso metrificado, não sejam imposições inventadas por alguém, ou elucubrações racionais que cerceiam a liberdade, mas sim manifestações espontâneas da fala e da escrita humanas! Poderíamos até arriscar propor que o verso é uma forma mais natural, mais espontânea de expressão humana (seja para fins artísticos, religiosos, filosóficos ou científicos) do que a própria prosa. Que essa talvez só venha a surgir a partir de uma longa evolução cultural que permitiu a separação do pensamento e dos sentimentos.

Existe algo mais comum na natureza do que o ritmo regular? Desde o coração de nossa mãe, que escutávamos já de dentro do útero, até a variação cíclica do dia e da noite, toda a nossa vida é composta por ritmos regulares. Como surgiu a fala humana? Como um frio enunciado de idéias que surge de um cérebro exilado do coração e da vida? Ou como gritos de alegria ou de medo, ou gritos de chamado, que se repetiam muitas e muitas vezes? Qual é a primeira manifestação verbal de uma criança? Discorrer sobre algum assunto neutro e distante? Ou dar gritinhos para chamar a atenção dos pais, gritinhos que significam "eu estou aqui"!

De onde será que vem a métrica rígida? Não seria uma repetição na fala de todos esses ritmos regulares que constituem nossa própria essência?

Quem já contou histórias para crianças sabe que elas pedem que a mesma história seja repetida infinitas vezes. Elas acabam conhecendo tão bem a história que, se o narrador mudar uma única palavra, elas reclamam e dizem que a palavra certa deveria ser essa, não aquela. Se elas sabem a história decorada, por que pedem para que seja repetida? Não seria para alcançar um prazer (conforto) similar ao que o adulto sente ao escutar o refrão de uma poesia?

É inegável que a regularidade do verso causa prazer (usamos a palavra prazer, mas talvez conforto ou agrado fosse melhor) ao ser humano. Se examinarmos os poemas folclóricos ou canções folclóricas de qualquer povo ou grupo étnico da Terra, o que encontramos? Versos regulares. Isso não tem nada a ver com falta de liberdade, ou com algo tiranicamente imposto por algum delirante idealizador de modelo estético ou artísico artificial.

Jakobson relata um caso interessantíssimo com os versos tradicionais da Sérvia, que têm algumas regras complexas e rígidas que são imperceptíveis por padrões fonéticos. Qualquer verso é composto por exatamente dez sílabas e é seguido de uma pausa sintática. Existe um fronteira obrigatória de palavra antes da quinta sílaba, e uma ausência de fronteira obrigatória antes da quarta e da décima. As fronteiras ou não fronteiras de palavra não são, segundo estudos científicos realizados, perceptíveis ao ouvido. Mas mesmo assim, um camponês Sérvio percebe instantaneamente qualquer violação das regras!!

O que é academismo? A métrica do camponês Sérvio? E de todos os outros povos por todo o mundo? Ou os ideais de poética criados nos cérebros dos modernistas?

Aqui na minha mão está um livrinho de cordel escrito recentemente. Ele é inteiro escrito em redondilhas maiores:

"Com um ano e quatro meses

num dia de carnaval

o rei encontrou Camões

e perguntou afinal

Camões me diga com que

Camões respondeu com sal."

Será que algum padrão imposto artificialmente teria tanta força para permanecer por tantos séculos sendo respeitado e seguido em novas obras e criações?

Não. Claro que não. A verdade é que o padrão de poética modernista, por partir de conceitos puramente racionais, desvinculados da intuição e da emoção estética, cerceia mais a liberdade do que a própria métrica. "A escrava que não é Isaura" fala de "substituição da ordem intelectual pela ordem subconciente" mas isso não é o que se vê. O modernismo levou as pessoas a uma negação do agrado causado por certos padrões, como a métrica regular; negação, não por sentirem as pessoas esse julgamento surgir de dentro de si, mas apenas por fugirem das idéias de antiquado e formalista associadas a tais padrões. É a troca da emoção estética espontânea por idéias externas, puramente racionais, além de falaciosas.

Em última instância, qualquer lei estética que vise estabelecer padrões sobre como deva ou não deva ser a arte, não importa que parta dos mais nobres e puros ideais, acabará cerceando de liberdade, e caso triunfe política ou historicamente, como triunfou o modernismo, acabará por se tornar academismo.

Eu não estou afirmando que a poesia deve ser em verso regular. Longe de mim tal arrogância. O dia em que se extinguirem as pretensão de se criar leis e princípios universais, a humanidade terá dado um enorme passo. Eu apenas convido o leitor a experimentar sem preconceitos modernistas a emoção, o conforto (o prazer?) do verso regular, e sentir seu poder primordial.

A rebeldia dos modernistas acabou sendo contraproducente quando voltou sua artilharia contra suas próprias raízes. Negar padrões estéticos ligados profundamente à natureza humana não contribuiu para fortalecer a cultura nacional, nem para romper com o academismo. Pelo contrário, levou as pessoas a perder a confiança em si mesmas e em seu senso estético. Criou um novo academismo diante do qual as pessoas ficam ainda mais pasmas do que antes. Uma arte ainda mais artificial, ainda mais distante da essência humana do que qualquer academismo do passado, uma arte que tem como fundamento não a expressão humana espontânea, mas elucubrações racionais saídas de cérebros arrogantes.

Esse, porém, não é um problema que ocorre só no modernismo brasileiro, e sim de toda a arte moderna. O século vinte tem aspectos de arrogância intelectual desconcertante, que se  mescla à uma incrível falta de consciência da própria ignorância e das próprias limitações. Herança do final do século XIX, onde certas ciências pretendiam ter esgotado o conhecimento do mundo, e onde sob influência destas surgiram doutrinas filosóficas com a pretensão de conhecimento absoluto, de esgotar a história e a própria filosofia, negando tudo o que houvera antes e deterministicamente negando tudo o que poderia haver depois.

A arte moderna muitas vezes arrasa tudo, como o sujeito que por estar sofrendo de algum abalo moral dá um tiro na própria cabeça. O sofrimento do abalo moral acaba, mas tudo o mais também acaba. E aí não há mais como se arrepender. Ela nega não apenas o sofrimento, não apenas os ideais de alguma escola passada, ou academismo institucionalizado. Nega tudo, inclusive os instintos estéticos primordiais, e a capacidade humana de prazer ou conforto estético. É uma atitude destruidora tipicamente adolescente.

E assim surge um mundo onde as pessoas não acreditam nem em si mesmas nem em suas impressões e julgamentos sobre as coisas.

Para finalizar eu apresento a descrição, escrita por não sei quem, de uma obra de um compositor contemporâneo brasileiro (presente em um material impresso pelo Governo do Estado de São Paulo):

Quando pensamos em música a primeira coisa que nos vem à cabeça é o jogo bastante costumeiro entre melodias, harmonias e seqüências rítmicas. A prática está tão enraizada, que tudo aquilo que foge aos nossos hábitos cai no campo da não música. É claro que tal situação não nos chegou à toa, há uma história por trás disso tudo. Mas o nosso maior problema é não conhecer tal história e acreditar que, para o homem, a música sempre foi aquilo que, ora ou outra, confundimos com a idéia da canção.

A música do Sr. X foge justamente deste rótulo já batido do que vem a ser música e não música. (...) Villa – Lobos tratou tais ambientes e lhes sobrepôs o homem cantando algumas cantigas fáceis; com isto, Villa não só agradava aos que tinham apreço pela riqueza de sons de uma floresta, quanto aos mais “preguiçosos”, que precisavam de uma melodia para descansar os ouvidos afoitos por simbolismos sentimentais. (...)Seguindo mais um passo da tradição musical herdada do século XX, o Sr. X faz uma música que não tem mais na melodia o seu tema principal

Em resumo, ou você finge gostar do monstruosidade alucinada que o cara criou, ou você é um escravo da tal "prática enraizada" que nos foi impingida por alguma suposta história. Mas não só isso, você também será um “preguiçosos", que precisa de uma melodia para descansar os ouvidos afoitos por simbolismos sentimentais.

Não creio que as pessoas do século XIX, ou XVIII, ou da idade média, ou de Tróia se deixassem impressionar por essa fanfarronice. Não. Eles diriam sem constrangimento que aquela coisa não é música porra nenhuma! nunca! nem aqui nem no Hades... nem no Tártaro. Mas nós, que para nossa miséria vivemos nos século XX ou XXI, não podemos confiar em nossas impressões. Afinal existiram aqueles tais "rebeldes" de 22, que foram os vitoriosos históricos, e que acabaram relegando a um papel quase humilhante os que se lhe opuseram, como por exemplo Monteiro Lobato, que criticava a arte modernista afirmando que ela visa desnortear, aparvalhar o espectador.

Eu tinha uns oito anos de idade quando um senhor, amigo de minha família, voltou de uma longa viagem de trabalho (ele era geólogo) e trouxe um disco, daqueles antigos, de furo largo, de 78 ou 45 rotações. Era a música tradicional de Bora Bora (ilha da Polinésia Francesa), idêntica à que existia antes da chegada dos europeus. No exato instante que escutei, eu adorei a música!

Não havia nenhum obscuro fator de alguma obscura história para me obrigar a gostar de tal música. Mas a expressão espontânea de meus irmãos humanos batucando em seus troncos de árvore me falou direto ao coração. Anos mais tarde, quando eu escutei pela primeira vez a música tradicional japonesa, confesso que não gostei tanto (hoje gosto bem mais), mas o fato é que nunca, nem por um ínfimo instante, eu tive dúvida de que aquilo era música.

A delirante criação do nosso amigo, compositor moderno, Sr. X é algo inteiramente diferente. É uma concepção puramente mental, que parte de falsas suposições e idéias. Da idéia que as melodias, harmonias e sequências rítmicas não tenham tido fortes motivos intrínsecos para surgir, que não tenham uma ligação primordial com o ser humano. Da idéia que os "preguiçosos" poderão "aprender" a gostar de sua "música", assim como no passado "aprenderam" a gostar de música com ritmo.

Mesmo que admitíssemos que a música com melodias, harmonias e sequências rítmicas seja uma mera convenção entre infinitas outras convenções possíveis (coisa que me parece absolutamente inverossímil) isso não significará de maneira alguma que qualquer coisa imaginada virá a ser música. Isso não fará da criação do Sr. X uma alternativa viável à música que se conhece como tal.

Eu não tenho, e creio que ninguém pode ter, a pretensão de dizer o que é música e o que não é, o que é arte e o que não é. Quem criou a coisa, que a considere como julgar adequado. Mas eu me sinto sim insultado com o autoritarismo de quererem impingir essa "arte" a mim e às pessoas, através de explicações racionais ou de chantagem.

Pois então, se chegarmos a tanto, que eu seja o "preguiçoso", que "precise de uma melodia para descansar os ouvidos afoitos por simbolismos sentimentais"! Que seja. Antes isso do que ser um fantoche do século XX, aparvalhado e intimidado diante de uma estética que não me diz nada.

 

A tradução de "O Corvo"

Eu considero O Corvo simplesmente a mais impressionante poesia jamais escrita. Por isso eu vacilei por muito tempo antes de iniciar sua tradução literária (seu sentido denotativo eu já havia traduzido há muito tempo, tradução que foi inclusive publicada em meu livro de 2.000). A poesia tem uma riqueza quase inacreditável de elementos rítmicos e sonoros, tem um ritmo lento, majestoso e sombrio, que aos poucos vai hipnotizando o leitor/ouvinte, e fazendo-o mergulhar na atmosfera de sofrimento, perda e angústia.

Mesmo quem tenha uma concepção estética e poética inteiramente diversa da minha, mesmo quem seja fervorosamente avesso à métrica, enfim, qualquer leitor ou tradutor que se dedique a olhar um pouco para o poema com um mínimo de atenção, há de concordar comigo que para se tentar traduzir o corvo não se pode ignorar seus elementos rítmicos e sonoros.

Claro que tais elementos têm sua importância ainda intensificada quando observados por um tradutor que, como eu, tenha afinidade pela versificação e por estruturas simétricas e regulares. Foi justamente por reconhecer esse papel subjetivo do tradutor que tive a preocupação de aclarar ao leitor minha visão pessoal de poesia. Mas é fundamental que fique patente que, ao se falar da tradução de O Corvo, a importância essencial da estrutura rítmica, dos elementos sonoros, e de outros aspectos formais não são ditadas pelo gosto subjetivo deste tradutor, mas sim pela própria obra, bem como pela concepção poética do próprio autor.

Num ambiente solitário e triste. Em um quarto. O único quarto iluminado de uma enorme casa. Uma noite de tempestade. Meia noite. Faz muito frio. As brasas da lareira, algumas acesas outras apagando, fazem sombras fantasmagóricas no chão e nas paredes. O protagonista estuda velhos volumes de esquecidas ciências, e tenta com isso afastar pensamentos terríveis, muito dolorosos. Tenta afastar a lembrança de sua amada, que já esteve ali, naquele quarto, com ele. Mas que agora está morta. Ele tenta afastar os pensamentos, mas eles insistem em voltar. É uma daquelas noites que você pede para que acabe logo, para que chegue a manhã. Daquelas noites em que você pensa ter ouvido algo... se arrepia de medo... tenta dizer para si mesmo que foi apenas um ranger natural de alguma porta ou assoalho... mas nunca consegue ter certeza se ouviu mesmo alguma coisa ou não... Então você começa a sentir sua cabeça pender para frente, quando...

O Corvo é composto em 18 estrofes idênticas, cada uma delas com 6 versos. Cada um desses seis versos tem sempre as mesmas características em todas as 18 estrofes. Os versos são compostos por pés trocaico. Um pé trocaico é um conjunto de duas silabas, sendo a primeira forte, e a segunda fraca. O primeiro e o terceiro versos de cada estrofe tem oito pés, portanto dezesseis sílabas, sendo que o último acento recai sobre a décima quinta. O segundo, o quarto e o quinto tem sete pés e meio, portanto quinze sílabas, sendo que o último acento recai sobre a última sílaba. O sexto tem sete sílabas, sendo que o último acento recai sobre a última. De acordo com a nomenclatura comum utilizada no estudo de formas da poesia de língua inglesa, os versos 1 e 3 seriam classificados como "trochaic octametre acatalectic"; os versos 2, 4 e 5 como "trochaic octametre catalectic" (Poe, em The Philosophy of Composition, chama esses versos de "heptametre catalectic", mas isso é claramente uma imprecisão de nomenclatura ou um engano); e o verso 6 seria um "trochaic tetrametre catalectic".

Para nós será muito mais fácil analisar os versos através da maneira que estamos acostumados em língua portuguesa. Os versos 1 a 5 serão todos de 14 sílabas, com censura. O primeiro e o terceiro serão graves, o segundo, o quarto e o quinto serão agudos. O sexto verso será um heptassílabo agudo.

Vejamos os modelo rítmico dos versos 1, 2 e 6:


corresponde a sílaba forte.

~ corresponde a sílaba fraca.

(~) corresponde à sílaba fraca descartada após a censura.

On -    ce u - pon a mid-night drea- ry  while I pon - dered, wea k and wea  ry

         ~            ~              ~          (~)                ~         ~              ~           ~

  1        2           3  4  5  6        7    (~)    8 9 10        11       12    13     14  (15 não é contada)

O -    ver   ma  ny a quaint and cu - rious vo lu me of for - got - ten lore,

         ~          ~             ~      (~)          ~   ()     ~           ~   

  1        2       3      4       5       6    7    (~)     8     9    (10)    11   12     13    14

On  -   ly   this   and    no   thing   more

         ~          ~             ~        

1          2       3      4       5       6          7 

Para simplificar ainda mais, os versos de 14 sílabas podem ser divididos em dois versos de sete. Façamos esta divisão, que será útil para se compreender a estrutura da estrofe:

Once upon a midnight dreary

while I pondered, weak and weary,

Over many a quaint and curious

volume of forgotten lore,

While I nodded, nearly napping

 suddenly there came a tapping,

As of some one gently rapping

rapping at my chamber door.

“‘’Tis some visitor”, I muttered,

“tapping at my chamber door-

Only this and nothing more.”

Temos então 11 heptassílabos divididos em três grupos. O verso final de cada grupo (e também o verso 10) é sempre agudo (termina com palavra acentuada na última sílaba) e tem a rima lore, door,  more (Leonore, floor, shore, yore). Os outros heptassílabos (1,2,3,5,6,7 e 9), ao contrário são sempre graves e nunca rimam com more.

O som grave e profundo deste more, marca o ritmo da poesia e assinala o fim das estrofes e dos versos mais importantes. Em minha opinião, este é o coração pulsante do poema, que cumpre o mesmo papel do surdo em uma bateria de escola de samba.

Em todas as estrofes, o primeiro heptassílabos rima com o segundo - dreary-weary, e quase sempre com o terceiro; rimam também o quinto, sexto e sétimo - napping, tapping, rapping. As rimas em ore do quarto e do oitavo heptassílabos cria duas quadras. Os heptassílabos 9, 10 e 11 formam um terceto, que também termina com a rima em ore. O resultado é a seguinte estrutura de rimas a,a,x,c - b,b,b,c – x,c,c. Esta estrutura, em minha maneira de compreender o poema, é o arcabouço no qual se encaixam todos os outros elementos.

Eu vou ler as três primeiras estrofes:

Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
“‘’Tis some visitor”, I muttered, “tapping at my chamber door-
-         Only this and nothing more.”

Ah, distinctly I remember it was in the bleak December,
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow; vainly I had sought to borrow
From my book surcease of sorrow - sorrow for the lost Lenore,
-For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore
          -Nameless here for evermore.

And the silken, sad, uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me - filled me with fantastic terrors never felt before;
So that11  now, to still12  the beating of my heart, I stood repeating:
“‘’Tis some visitor entreating entrance at my chamber door –
Some late visitor entreating entrance at my chamber door -;
          - This it is and nothing more.”

Eu inicio meu projeto de tradução os elementos que deveram ser mantidos. Os essenciais e imprescindíveis são:

–     O elemento mais importante de todos, que marca o andamento de toda a poesia são as rimas fortes no final dos heptassílabos 4, 8 e 11;

–     Estrofes compostas por seis versos regulares. Os cinco primeiros longos, idênticos em tamanho (contando-se até a última sílaba acentuada), e divisíveis em dois semiversos menores. O sexto tem a metade do tamanho dos cinco anteriores;

–     As rimas internas dos versos grandes, que ocorrem no final dos heptassílabos 1, 2 e 3 (grupo 1), e 5, 6 e 7 (grupo 2);

–     Ritmo trocaico.

Outro elemento essencial, mas não tão importante quanto os anteriores é a enorme quantidade de aliterações, consonâncias, ecos, simetria de sons vocálicos e outros elementos rítmicos do interior dos versos. Incluindo os pares e tríades aliterativos, muitos deles de significado similar. Também importante é a sonoridade sombria de muitas palavras.

Vocês podem notar que não existe nenhum segredo nessa enumeração de elementos. Porém, surpreendentemente, se examinarmos as muitas traduções da poesia para o português encontraremos poucas que respeitam a maior parte desses elementos, e muitas que desrespeitam todos eles.

Para minha surpresa, Machado de Assis utilizou estrofes de dez versos, uns octossílabos, outros decassílabos e outros ainda dodecassílabos, tornando a poesia original é irreconhecível.

Alguns fizeram ainda pior, como Emílio de Meneses que "traduziu" a poesia em sonetos, e Benedito Lopes que tentou fazer o mesmo, mas nem isso conseguiu.

Gondin da Fonseca respeitou a lógica da estrofe, utilizando versos de dezesseis sílabas para os versos longos e de oito para o verso curto final, mas não respeitou as rimas, e com isso sua tradução perdeu a maior parte do encanto da original. Além disso o verso com número par de sílabas impede um ritmo trocaico.

Milton Amado foi por caminho similar, versos de dezesseis sílabas, e realizou a tradução que é preferida por alguns, como o poeta Ivo Barroso e o Jornalista Carlos Heitor Cony. Ele respeita as rimas internas dos versos e consegue um excelente resultado, o melhor até hoje, na reprodução dos elementos ritmos menores. Mas cometeu o grave erro, inaceitável em minha opinião, de não rimar os versos 2, 4, (5) e 6. Sua escolha de dezesseis sílabas também tem o defeito de impedir o ritmo trocaico.

Em minha opinião, as únicas traduções que respeitaram a poesia, e que resgatam pelo menos parte de seu impacto são as de Fernando Pessoa e de Alexei Bueno, ambas realizadas em versos de quatorze sílabas com censura (como os originais), e respeitando as rimas em ore (que em português foram convertidas para "ais").

Ao iniciar o trabalho, a primeira escolha será definir qual o tamanho de verso a ser utilizado. Como vocês sabem, as palavras em inglês são mais curtas do que em português, e assim o sentido das palavras de um verso em inglês de sete sílabas dificilmente poderá ser transmitido sem alguns cortes por um verso em português também de sete sílabas. Normalmente, quando é possível, é melhor usar um tamanho de verso em português um pouco maior do que o original. Essa prática tem a vantagem adicional de criar uma textura sonora mais próxima da original, pois a pronúncia inglesa de sete sílabas contém mais sons consonantais e mais separações do que as mesmas sete sílabas em português. (Em meu livro, Pequena Coletânea de Poesias de Língua Inglesa, eu discuto essa questão com maior detalhe.)

Porém no caso de O Corvo, esse recurso não pode ser usado tão facilmente. Como sabemos, o ritmo é trocaico, e assim, se quisermos manter esse ritmo deveremos usar um número ímpar de sílabas para os semiversos (ou hemistíquios). No original esse número é sete. O caminho escolhido por Gondin da Fonseca e Milton Amado  foi usar oito sílabas (resultando em um verso de dezesseis), mas a destruição do ritmo trocaico prejudicou o efeito da poesia. Assim só resta a escolha de sete ou nove sílabas. Eu escolhi sete, sabendo que acabaria com um verso que daria a impressão sonora de ser mais curto do que o original, e que muitas vezes eu seria obrigado a cortar parte do sentido. O fator que me levou a isso foi a excessiva extensão do verso de dezoito sílabas que resultaria se eu escolhesse semiversos de nove. O verso original, de quatorze, já é um verso bastante longo.

Uma outra questão delicada é a rima em "ore" do original. É difícil imaginar uma alternativa para "nunca mais" para traduzir o refrão "never more". Assim, o "ore" em português tem que se transformar em "ais". Fernando Pessoa e Alexei Bueno tiveram que fazer malabarismos para rimar "ais" com o nome da namorada do protagonista, "Lenore". Eu estou tentando um caminho diferente, sobre o qual ainda tenho dúvidas, e tenho discutido com pessoas a respeito. (Aliás, para me desmentir, essa é uma questão típica de teoria da tradução.) Minha idéia, por favor, não riam, é trocar o nome de moça para "Leonais".

A partir dessas escolhas, o trabalho foi escolher possíveis alternativas para reproduzir ao mesmo tempo sentido e elementos ritmos. Muitas vezes mudando o sentido de diversos detalhes de cada verso. Eu cheguei ao seguinte resultado para as três primeiras estrofes.

I

Numa meia-noite horrenda que tardava lassa e lenta,

Eu pensava... debruçado sobre tomos ancestrais;

A cabeça já pendia, quando achei que um som ouvia,

como alguém que ali batia, suavemente a meus umbrais.

"Alguém bate", eu murmurei, "alguém bate a meus umbrais –

– É só isto e nada mais."


II

Claramente... eu bem me lembro, foi no gélido dezembro,

e das brasas já morrendo vinham sombras fantasmais.

A manhã, eu ansiava, e do livro eu esperava

um alivio à dor amarga pela perda de Leonais.

Pela linda e langue dama a quem nos céus chamam Leonais.

Que não voltará jamais

III

E o sutil, sedoso, incerto som das cortinas abertas

me traziam tais temores que eu não sentira jamais;

coração em disparada, eu dizia estas palavras:

"É alguém pedindo entrada, alguém batendo a meus umbrais –

Um tardio visitante pede entrada a meus umbrais –

– Isso apenas. Nada mais."

Examinemos agora em detalhes alguns elementos rítmicos. (Primeira e terceira estrofes)

(continua...)

 

Anexos


Anexo 1 - Algumas definições de poesia:

1. Definição baseada no papel que as palavras têm em um texto:

"Poesia é um texto em que o significante não existe meramente à serviço do significado; onde significante e significado funcionam juntos; e onde é este conjunto (e não apenas o significado) que provoca sentimentos, impressões, emoções ou reflexões." "Na poesia, cada palavra tem seu papel não apenas por seu significado, mas por seu ritmo, pela sua sonoridade, pela forma como se relaciona com as outras palavras, e, modernamente, até mesmo pelo seu aspecto visual..." Essa definição tem o mérito de deixar bem claro que poesia não é só significado. Aliás, esse talvez seja o único ponto sobre o qual eu nunca vi discordância por parte de poetas ou apreciadores de poesia. Não importa o quão "poético" seja o conteúdo de um texto, se o autor o escreveu preocupado apenas com o significado – tendo apenas a sintaxe como guia – não é poesia! Se alguém tem essa idéia de que o que realmente importa na poesia é o significado e de que o resto – o ritmo, a métrica, a rima – são detalhes, esta pessoa provavelmente teve pouco contato com poesia, e a encara como se ela fosse uma espécie rebuscada ou enfeitada de prosa. De vez em quando aparece alguém para dizer algo como: "De poesia, eu gosto do significado." Isso é mais ou menos como aquele americano que certa vez declarou que "gostava ser goleiro porque adorava desarmar o adversário, limpar a jogada e passar, e se possível sair driblando e marcar o gol." O goleiro pode até fazer tudo isso, principalmente se for o Highita da Colômbia, mas nós sabemos que a função dele não é essa. A lógica de um texto não-poesia está na estrutura sintática e no significado. A lógica da poesia vai além da estrutura sintática e do significado. Vejamos:

Batatinha quando nasce
Lança as ramas pelo chão (ou, Se esparrama pelo chão)
A menina quando dorme
Bota a mão no coração.

Muitas crianças gostam desta cantiga ou de outras pequenas poesias infantis desse tipo. Gostam tanto, que muitas vezes ficam a repeti-la dezenas de vezes. Qual a lógica da cantiga? O significado? Pois então vejamos um texto com significado similar:

Espinafrinho quando brota
Deixa sua raizinha debaixo da terra,
A menina quando dorme
Bota a mãozinha no coração.

Agora temos algo simplesmente horrível. Mas por quê? O significado piorou tanto? Não. Então podemos perceber que a cantiga original tem uma lógica própria, uma lógica que não vem do significado. A poesia tem uma lógica própria, uma lógica além da sintaxe e do significado.Voltando à definição, os problemas realmente começam quando tentamos visualizar a linha divisória entre o que é poesia e o que não é. Isso porque não é exclusivamente na poesia que o significante recebe atenção. É fato reconhecido que escritores de romances, contos e outros gêneros-não-poesia levam em consideração não apenas o significado das palavras mas seu ritmo, musicalidade e outras características. Eu posso lhes garantir isso por experiência própria, pois eu mesmo o faço. Não vou me aprofundar agora nesse ponto, pois o assunto foge ao nosso objetivo. Mas a matéria merece atenção. O leitor pode verificar por si mesmo como a mudança da posição de um advérbio pode, sem alterar o significado, alterar o ritmo do texto. O mesmo ocorre com a escolha de uma pontuação mais interrompida ou mais solta, a escolha de uma conjunção ao invés de outra de sentido próximo, ou outros infinitas escolhas que o escritor tem à sua disposição. A mudança de ritmo, por sua vez, altera o resultado final do texto.

2. Definição baseada apenas na forma:

"(...) quem toma (a poesia) externamente e, obedecendo livremente à impressão de seu ouvido ou de sua vista, classifica de poesia as formas de falar de aparência simétrica, e de prosa as de aparência assimétrica, não anda muito desencaminhado. Eu não saberia recomendar hoje em dia um procedimento mais conveniente que este, empregado há milênios." (Karl Vossler, Filosofía del Lenguaje, apud Massaud Moisés, A Criação Literária - Poesia, Ed. Cultrix). Nessa definição existe quase que uma equiparação da idéia de poesia com a idéia de verso. Existem porém argumentos contrários a essa idéia de que qualquer verso seja poesia. Conforme relata o próprio Massaud Moisés, já na Grécia antiga Aristóteles afirmava que nem todo verso é poesia: "Até mesmo quando um tratado de medicina ou ciência natural é escrito em verso, habitualmente se dá o nome de 'poeta' ao autor, porém Homero e Empedocles nada têm em comum além da métrica, e portanto seria correto chamar o primeiro de poeta e o outro de cientista natural ao invés de poeta." (traduzido a partir da tradução inglesa de S. H. Butcher, The Internet Classics Archive - http://classics.mit.edu/Search/index.html).

3. Definição baseada em aspectos mais amplos do significado:

"A poesia é a arte de comunicar a emoção humana pelo verbo musical", (René Waltz, apud Massaud Moisés, A Criação Literária - Poesia, Ed. Cultrix). "A poesia é a expressão natural dos mais violentos modos de emoção pessoal", (J. Middleton Murry, apud Massaud Moisés, op. cit.) A poesia é o "extravasar espontâneo de poderosos sentimentos", (William Wordsworth, prefácio à segunda edição de Lyrical Ballads, 1800).

4. Definição baseadas em estudos lingüísticos de funções da linguagem:

"O texto poético é, pois, aquele em que a função poética se sobrepõe às demais e delas se destaca, sem eliminá-las." Mário Laranjeira, Poética da Tradução, Ed. Edusp).

Anexo 2 - Tradução de poesia versus tradução de prosa:

A maneira habitual e didática de se iniciar uma discussão sobre tradução de poesia é a comparação entre esta e a tradução de um texto não poético. Ao se traduzir, por exemplo, o manual de instruções de um eletrodoméstico qualquer, a atenção do tradutor estará voltada unicamente para o sentido do texto. Para a função denotativa, cognitiva, do texto, (que Jakobson chama de função referencial da linguagem). Não tem nenhuma importância se determinada palavra é mais longa ou mais curta, se tem um som claro ou sombrio, se se inicia com determinada consoante, ou se rima com uma outra palavra qualquer. No manual de algum rádio de carro, a forte aliteração de stored stations ocorre por acaso (a não ser que o redator seja um poeta recalcado), e sua tradução por estações armazenadas (onde não resta qualquer traço da aliteração) será inteiramente adequada, pois o sentido foi preservado, e o leitor saberá como usar o rádio. Já em uma poesia nada acontece por acaso. O par weak and weary, por exemplo, do primeiro verso de "O Corvo", se for traduzido por enfraquecido e exaurido, terá sido inteiramente desfigurado. Evidentemente não é possível, em outro idioma, manter intactos o sentido e a forma da poesia original. E, assim, a tradução de poesia será sempre um trabalho de buscar soluções; soluções para criar, em um idioma exótico, um texto que de alguma forma expresse, comunique, através do sentido e da forma, algo similar ao que a poesia original expressava, comunicava. Eu mesmo, na introdução a meu livro Pequena Coletânea de Poesias de Língua Inglesa, abordo a questão por esse lado. Mas hoje, aqui, minha proposta é outra. A definição de Frost:O poeta americano Robert Frost (1874-1963), que escreveu "The road not taken", define poesia como: "o que ficou para trás na tradução". Ou seja, quando houver dúvida sobre se um texto é ou não poesia, basta traduzir. O que passou pela tradução é prosa, o que não pôde (e não pode) ser traduzido é poesia. A primeira vez que eu vi essa definição, eu achei muito bacana: "Poesia é o que não pode ser traduzido". Os anos foram passando, e eu fui continuando a achar a definição ótima: "Poesia é o que não pode ser traduzido". Ai um dia eu resolvi que eu queria ser "tradutor de poesia", e então, assim num passe de mágica, a tal definição que era tão boa, passou a ser... !

Anexo 3: O autoritarismo de Bandeira

A idéia de traduzir qualquer texto do português para o próprio português me parece, no mínimo, autoritária.

Imaginem que uma moça dos confins do Brasil entrasse aqui, por aquela porta, e dissesse:

–          Pra mim podê chegá aqui eu tive que amontá num ônibus.

Imaginem então que alguém tivesse a arrogância de levantar e falar:

–          Deixa que eu vou traduzir: (Pomposamente)  "Para eu poder chegar aqui, tive que pegar o ônibus."

Se alguém fizesse isso, todos aqui concordam que seria uma tremenda grosseria, uma tremenda arrogância. Algo totalmente inadequado. A tal "tradução" não seria um meio para aclarar a frase da moça, pois essa teria sido compreendida por todos em sua forma original. A tal tradução seria sim uma forma até de tentar se mostrar superior à moça, ou mesmo de humilhá-la. Será que não seria similar a esse o objetivo do grande poeta Manuel Bandeira?