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Prefácio da Coletânea Poética
"Sangue Novo na Anemia"*


André Carlos Salzano Masini

Copyright © 2004 by André Carlos Salzano Masini.
Texto registrado na Biblioteca Nacional, e salvaguardado por outros meios.
 

Quando pela primeira vez tive em mãos o texto de "Sangue Novo na Anemia", a impressão que tive foi exatamente aquela que o título transmite: sangue novo... ânimo, esperança, força... Vida que teima em abrir espaço e seguir adiante... rompendo, contornando, desfazendo barreiras... espírito criativo humano que se recusa a morrer sufocado na mesmice do mundo globalizado, que não aceita o consumo passivo do pronto: dos bens prontos, da arte pronta, da vida pronta... alma humana que não se subjuga e não aceita ser esvaziada...

Para compreender a importância desse livro, é necessário olhar em volta e ver o que está acontecendo no mundo de hoje.

A Arte tem acompanhado o ser humano desde tempos primordiais. Nossos ancestrais das cavernas já pintavam animais e cenas de caça nas paredes de seus refúgios rochosos, e desde então nunca houve uma cultura ou civilização em que a arte estivesse ausente do cotidiano das pessoas: pintura, cerâmica, escultura, tecelagem, música e dança, e mais tarde o verso... Nas culturas indígenas atuais, podemos constatar que cada um de seus indivíduos participam de pelo menos um tipo de expressão artística...

O porquê dessa necessidade é algo que não sei se alguém poderia realmente explicar, mas o que é absolutamente certo é que ela existe.

E, jamais, ao longo da história humana, qualquer tipo de tirania ou opressão conseguiu extirpar a Arte do ser humano: povos escravizados ou em guerra, indivíduos em situações extremas de aflição, grupos perseguidos e reprimidos, todos continuaram a fazer Arte: Anne Frank escreveu seu diário de dentro de um esconderijo claustrofóbico sitiado por nazistas; William Henley, atormentado pela tuberculose por toda a vida, escreveu Invictus; Giordano Bruno, apesar da ameaça da fogueira, expressou poeticamente a existência dos outros mundos que divisava... os exemplos são incontáveis.

Assim Arte e Vida parecem estar inexoravelmente associadas dentro do ser humano; e até há um século seria quase impossível conceber Vida humana sem expressão artística.

Mas as coisas começaram a mudar a partir da instauração dos meios de comunicação de massa.

Já em 1953, o escritor Ray Bradbury (em seu clássico Fahrenheit 451) imaginou um futuro sombrio, onde livros seriam objetos proscritos; onde uma ditadura tirânica dominaria todos os meios de comunicação, e as pessoas não teriam expressão ou raciocínio próprio e apenas "absorveriam" informações através dos meios de comunicação de massa.

Fahrenheit 451 enfatiza o conhecimento, não a expressão artística, mas ambos têm muito em comum: ambos são incompatíveis com uma atitude passiva, de consumo do pronto; ambos necessitam de espaço e liberdade para reflexão, percepção, elaboração e reorganização a partir dos referenciais próprios de cada indivíduo.

No mundo imaginado por Ray Bradbury, uma tropa de repressão anda pelas cidades caçando e incendiando livros. Em nosso mundo não existem tais tropas, mas existe outro instrumento, que na prática é ainda mais eficiente: a cultura de massa.

Em cada casa existe uma televisão, e, como que hipnotizadas por ela, as pessoas não mais se sentam para escutar e contar histórias, não mais cantam canções, não mais pintam nas paredes de suas cavernas, não mais escrevem ou escutam versos.

Arte, que chega através da televisão, passou a ser "produto", que tem como único objetivo e única referência de "valor" a possibilidade de venda. Os maiores "artistas" são aqueles que produzem a "arte" que consegue ser vendida ao maior número de pessoas.

O objetivo original da Arte: a expressão do espírito humano, que até então havia sobrevivido a todo tipo de influência e opressão, que subsistira até ao jugo das mais poderosas instituições religiosas, acabou sucumbindo no século XX, diante do poder avassalador da cultura de massa e do comércio.

Hoje existem as grandes empresas comerciantes de arte: editoras, gravadoras, e similares, que decidem quem é ou não artista. A tais "artistas" cabe produzir e vender arte, aos demais seres humanos cabe consumi-la passivamente. Tais "consumidores passivos" são uma novidade sobre a face da Terra: Vida humana sem expressão artística, se é que isso realmente é Vida.

Mas aí eu folheio "Sangue Novo na Anemia", e vejo que nem tudo está perdido.

Há pessoas que não aceitam dar às empresas comerciantes o poder de decidir quem deve ser "artista" e quem deve ser "consumidor" (e até refutam a existência de tal divisão). Há pessoas que insistem em criar arte e compartilhá-la com seus semelhantes, e o fazem de forma alheia à ditadura do mercado comercial, remando contra a corrente, apenas porque suas almas lhes dizem que são artistas. E elas estão absolutamente certas, pois a voz interior é melhor juiz da verdadeira qualidade artística que o mercado e seus modismos, e estão aí as obras de van Gogh, Franz Kafka, e da querida poetisa portuguesa Florbela Espanca para comprová-lo.

"Sangue Novo na Anemia" mostra que ainda há poetas que fazem versos pelo mesmo motivo que nossos ancestrais pintavam animais nas cavernas, ou seja, por um impulso interior irresistível, alheio a quaisquer rótulos ou interesses econômicos de comerciantes de arte.

O livro é uma coletânea de poesias que seus criadores querem compartilhar com o mundo, conosco, ou com aqueles de nós que ainda têm olhos, ouvidos e a chama no espírito para interessar-se pela verdadeira arte.

E o livro não é uma iniciativa isolada, pois os poetas que dele participam compõe um grupo, aqui no Oeste do Paraná, que se chama Confraria dos Poetas. A poesia vive!

Mandarim do vento/ trago sementes nas sandálias/ e espalho sonhos/ no canteiro do tempo.

Mas teu sorriso de sol/ e teu hálito de chuva/ eflorescem o pomar alheio.

Escreveu Carlos Couto, o mais ativo membro da Confraria, em sua poesia Mandarim do vento, num belíssimo contraste lírico entre o poeta e sua musa. A poesia de Carlos fala de sensações e impressões, sonhos e frustrações, paixões e da própria arte poética, e revela um espírito tão agudo ao olhar para si mesmo quanto ao olhar para o mundo. Entre minhas favoritas estão Chuva de dentro, que trata da mistura das sensações internas e externas, em uma noite de chuva e insônia; Seis palavras, que trata da sensação juvenil de onipotência, que acaba com a maturidade e Outono, que fala da dor alheia.

Momento extinto/ Caiu como um anjo confuso, que tropeça em suas próprias asas/ Era intocável, até sentir o chão frio

Escreve Jorge Linzmeier, em A Queda, que fala de realidade e lucidez, de dificuldades, coragem, flexibilidade e do trabalho do poeta. Linzmeier tem algumas propostas ousadas e interessantes como A lista e Oração.

O luar se insinuando, despindo...conquistando...o luar doce e serenos...sobre o cenário perfeito...da escuridão...a luz...insinua sem insinuar...os encantos ..e lá está...Minha querida Lucienne...com uma rosa nos lábios...e um pedido para amar...pra sonhar...quieta...

Compôs Nilmar Paz, na insinuante, sensual e apaixonada poesia Minha querida Márcia. Os versos de Nilmar falam de amor e fascinação, em um estilo direto, sincero e convincente; talvez afrontem alguns guardiães de modismos ou de ideologias que querem determinar quais temas e estilos são "válidos" para a poesia. Mas que importam tais chatices? A mim sua poesia toca, e com certeza também a muita gente.

Agir/ Intuir/ Amar/ SER UM com o perfume das Flores/ Com a Luz do Sol (...) Com o frescor da Água/ Com a primavera/ VIVER simplesmente/ Sem Explicação e complicação.

Escreve Valter Angelo, em Sem explicação, sem complicação. Seus versos tratam de uma postura mais intuitiva diante da vida, são luminosos, elevam o espírito. Creio que muitos de nós ganharíamos se pudéssemos colocar em prática um pouco da sabedoria de suas palavras.

Se eu roubasse o arco íris/ Se eu contasse todos os peixes do mar/ Se eu fizesse você chorar/ Você gostaria, se apaixonaria?

Pergunta Cazu Rafael, em Se eu. A obra desse poeta é existencial, trata da vida, do mundo, dos seres humanos e seus relacionamentos. Algumas de suas imagens, como a citada, são realmente muito boas.

Nossos momentos de amor/ tão intenso, tão sublime,/ para sempre quero guardar/ numa redoma de estrelas

Declara Lucília C. Ferreira, em Relíquias de amor. O amor, o convívio, os momentos a dois, são os temas principais dessa poetisa, que consegue falar com autenticidade de coisas boas, e por isso é uma raridade entre nós, poetas.

... um homem, cabelos longos,/ Marcas profundas, / Que dá uma visão exata/ Da dor que sentia (...) Sua pele apesar de tudo,/ Conservava-se macia (...) Olhou-me profundamente (...) afastou-se lentamente e como apareceu,/ Sumiu no horizonte.

Relata Lázaro C. Ferreira, em Miragem. Esse é um poeta que tem inclinação para temas sociais, como a miséria e a marginalização, sobre os quais lança um olhar maduro; mas que também envereda por caminhos mais introspectivos, como o do intrigante poema acima.

Repita,/ Réptil./ E o réptil/ Repetiu.

Assim termina a divertidíssima e imperdível poesia O Réptil, de Douglas Wisniewski. (que deve ser lida no formato original). Esse é um poeta que evidentemente ama os sons, as palavras e as brincadeiras com elas: Nós somos muitos, /Estamos vivos,/Somos civilizados e doutrinados./Estamos cercados:/Tecnologia e lata/Por todos os lados.

Iluminado pela escuridão/ O contraste que tudo cria/ Tão profunda como uma poça d'água/ Tão superficial quanto o infinito.

Compôs Alan Villaverde, em seu poema Eu Superior. Esse poeta direciona seu trabalho para questões existenciais: o vazio, o sentido, e à impossibilidade de encontrar respostas na razão. Consegue algumas ótimas imagens, como a dos versos acima. Tão profunda como uma poça d'água/ Tão superficial quanto o infinito parece-me uma boa forma de se caracterizar a própria Vida.

Procuro um espaço/ Para dançar no que sobra do seu tempo/ No seu ritmo,/ (...) No seu passo ou descompasso(...) Um lado do seu colchão (...) para cochichar bobagens (...) até chegar a exaustão....

Propõe Meire Valduga, em seu poema Pro-cura. A obra da poetisa aborda com grande sensibilidade relacionamentos humanos de diversos tipos: amizade, amor, encontros e desencontros. O poema acima revela uma forma extremamente atenciosa e feminina de se aproximar de alguém, com grande delicadeza. Pretexto, meu favorito, fala sobre um lugar e um relacionamentos humano cotidiano, e as afeições que eles envolvem.

As correntezas/ Dos rios/ Levam águas/ Cristalinas/ Iguais/ Brincadeiras/ De Crianças/ Que o tempo/ Extermina.

A poesia de Miguel Joaquim das Neves tem um estilo muito próprio, onde o que mais me chama atenção é o ritmo. Seus versos curtos podem ser recompostos em versos maiores, permitindo uma ampla gama de interpretações, como Águas (acima), que pode também ser lida em eneassílabos de movimento anapéstico: () Correntezas Dos rios Levam águas/ Cristalinas Iguais Brincadeiras/ De Crianças Que o tempo Extermina; ou em redondilhas maiores: As Correntezas Dos rios/ Levam águas Cristalinas/ Iguais Brincadeiras De/ Crianças Que o tempo Extermina. Alguns de seus poemas, ao acabar, deixam uma sensação pairando no ar: Águas (acima), Ventania, Pessoas...

Deus do derradeiro suspiro dos dinossauros tatuados no barro eterno/ dos bichos audazes que perseguem crianças no sonho/ da freira sorridente de meu bairro.

Escreveu Vander Piaia, em Demiurgo. Uma excelente maneira de introduzir um tema metafísico, que é a existência e a compreensão de Deus, isso sem falar no divertidíssimo paralelo entre o dinossauros do barro e a freira de bairro. Um poeta de interesses múltiplos, que consegue tratar de alguns temas realmente complexos com humor e originalidade.

Ao rebanho de cruéis cordeiros/ pertence a carne (...) A eles cabe a escolha, para quem/abriram em um abraço receptivo/ a flor vermelha de um corte./ Qual será o lobo sensual que beijará sua nuca/ e lamberá o mel vermelho (...) Caninos os recebem, são mãos carinhosas/ a abraçar as vértebras dos pescoços/ e balançam os corpos dos cordeiros/ como mãe pondo o filho para dormir.

Compôs Solivan Brugnara no poema Jornal de Domingo, seção Caderno econômico. Esse poeta aborda alguns temas de nosso mundo atual, com olhar agudo e fina ironia. Aborda também temas introspectivos, impulsos e sensações, através de fortíssimas imagens, e nestes produz alguns versos belíssimos, do mais puro lirismo.

Enfim, eis aqui um livro escrito por pessoas que têm algo a dizer: "Sangue Novo na Anemia". O título expressa o que o livro realmente é.

 

O autor, André C S Masini, é Auditor Fiscal da Receita Federal e Escritor, além de Diretor Geral da Casa da Cultura. [Conheça outras de suas obras: artigos, poesias, contos, palestras, crônicas]

* O livro "Sangue Novo na Anemia"

É uma publicação da Confraria da Terra dos Poetas, sob a coordenação editorial de Carlos Alberto Coelho, lançada em dezembro de 2004.

Contatos:
grotesko@estadao.com.br

Página Publicada em 04/12/2004