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Seção de Poesias da Casa da Cultura - Poesias em Português |
MARAVILTA E OUTROS CANTARES
Erorci Santana, 2001"Cantamos porque o rio está soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino"
Mário Benedeti
I
Apologia do Canto
Peço licença para dizer:
Cantar é gesto de grande validade;
é necessário falar ao ouvido surdo
destas pedras
e fazer de sua ensimesmada ingratidão
um beijo sôfrego e prolongado,
injetar o sumo do poema
no apavorado alarido desta nave,
combater a tristeza dos que amam
com palavras álacres, reivindicar
outros versos para o cadáver
de nossa liturgia, magia para celebrar
doridos funerais, cópulas oníricas e esquecer
o som das pás em nosso próprio enterro.
É preciso soerguer o canto do limbo,
construir o monumento da esperança
sobre a dança de despojos
que insiste em celebrar a morte da poesia.
Peço licença para dizer: em nome da verdade,
cantar é gesto de grande validade.
II
Se a Poesia está morta eu não sei.
Sei que a levaram ao play-ground,
ao zoológico - e ali foi recusada
pela fome do leão.
Avistou-se no comício e na trincheira,
franciscana, vestida de chita ou de burel.
Os feios a usaram como ardil de sedução.
Um poeta impregnou-a de escória,
outro deu-lhe assento entre compêndios
de Kant e de Hegel.
Há os que lhe deram roca pra fiar
e vassoura pra varrer passeio público.
Leu obras completas de Murilo Rubião,
bateu cartão de ponto na repartição.
A seu modo, cada um a corrompeu,
lavou e escovou. Desfigurada
sobre as cinzas de um campo de ossos,
Zé de Arimatéia a resgatou, pendurando-a
no varal. Seu corpo magro, sob a ronda
dos abutres, mesclava-se ao céu
da minha pátria, tão azul.
III
Se a Poesia está viva eu não sei.
Sei desse tempo como aquele
dos cupins vorazes e insaciáveis
corroendo a alma cívica pelas bordas,
começando pelo flanco das cidades.
Sei das hordas cegas, bárbaras,
devastando a forma viva
e os valores mais sagrados
que o espírito humano arduamente amealhou.
Sei dos desterrados, dos desabrigados,
dos sem sal - de toda gente que não têm,
no vasto mundo, direito à possessão.
Salvemo-nos por terra, ar ou mar
do intempestivo e surdo caos, da fúnebre canção
que faz nos dias essa lenta corrosão.
Ponho-me a caminho com o corso
das crianças sombrias mas ainda não vencidas,
que a esperança é delas ou de mais ninguém.
A morte que nos tarde e pouco nos desfaça,
Poesia, nessas trilhas e veredas, alamedas e avenidas.
E aqui, desarmados, na fronteira do horizonte
divisado sobre escombros humanos,
buscamos o refúgio confortável da evasão
na idéia de um tempo que é pretérito
e compacto como o crânio de um anão:
quando a cidade, infestada de parelhas de cavalos,
sonhava automóveis. Genuflecta, agora,
persigna-se, nostálgica de coches, carruagens,
eqüestres equipagens que emprestavam
à vida suntuoso diapasão, cores soberbas,
subtraídas pela indústria da dor e da fuligem.
IV
Uma salva de tiros de canhão
pela saúde da Palavra, pois só ela,
empregada com rigor e exaustão, implodirá
o peito majestoso da miséria,
a usina do saber e seus sacros algozes
que nos encarceram nas prisões
dessas formulações mentais atrozes,
que desviam a vida de seu êxtase
para uma utilitária e estéril equação.
Quem mais celebrará a morte
desses ideólogos bovinos, pastadores
de nossas consciências, ruminantes que
nos distanciam do riso, da esperança
tecelã da alegria e bailarina?
Saúde à palavra e seu poder,
que nos adestram em armas e nos leva
a combater nos ferais campos
da batalha rural e citadina.
Só ela não nos deixa esquecer da interdição,
dos torpes hospitais, dos catres públicos,
onde o feto do homem dorme
com ogivas murmurando monossílabos.
Em sua honra, eu, poeta varonil,
vomito a ira pelas bordas
do abismo do Brasil.
V
Quando eu vinha pelo Novo Mundo,
sopesando os adereços que a vida me legara,
deparei, nus, alguns monstrengos
que o tempo e o vício deformara
e velhos feitores debruçados, pranteando
o cadáver evanescente da História.
Intuindo matricídio involuntário, perguntei
que artes de maldade perpetraram
– no afã de esquecer para lembrar –
os filhos daquela cultuada dama
para que ela jazesse de desgosto
e a Irmãnzinha, enfim, pudesse abrigá-la
em seu fermoso e perseguido seio.
"Inventaram outros gregos", responderam.
VI
Gentes, digam-me, quem é? Um novo Cristo,
esse que levita, desenvolto, sobre o vácuo?
Quem ousa desfraldar as nádegas nos lábios do abismo
e devassar esses azuis tão absconsos?
Quem? E a multidão depõe, subjacente,
os dedos sobre a boca estupefata
ante o fenômeno insólito e fortuito.
Porém o náilon que o sustém rompe-se
e ninguém ouve o baque do mágico lá embaixo.
Seu coração paira no ar – é uma pétala.
VII
Excelências! Quanta honra! Adentrai!
Que cósmica voz vos traz à espelunca do poeta?
Serão os brilhos do meu ouro, meu tesouro
lexical? Não me visitam desde que Colombo
pôs em pé aquele ovo, desde que abandonei
a coorte do rei e ingressei nessa fantástica
abstração chamada povo! Pois então?
Ireis dar cabo desse mal peremptório,
acrisolado, que nos oprime pelos séculos –
O Dragão chamado Estado?
Alegro-me, coração cheio de júbilo,
com vossa decisão de suicídio coletivo.
Quando, excelências, para quando?!
VIII
Sons de crótalos e da frautas
nos levaram à ágora. Ali,
um incontrito traficante
leiloava uma escrava branca.
"Procede de Damasco", ele dizia,
louvando-lhe as fornidas ancas, os fartos seios
onde os deuses emprestaram seu capricho.
Indefesa como um pássaro,
vestida com uma túnica mais azul
que o céu de Atenas,
assentava-se em um tamborete,
seus cabelos
prendiam-se por um diadema,
negros, reluzentes. Inclinado,
pouco de seu rosto divisava-se
naquela tarde ateniense e esse pouco
revelava a boca inerme,
sem um laivo de volúpia.
Esperava um rei que a vingasse
ou que pusesse fim a seus agravos.
"Quem dá mais, senhores! Quem dá mais!"
Perto de nós, um indeciso cidadão
contava e recontava suas dracmas.
IX
Meia dúzia de bois, seis sombras
esquálidas foi o que restou
da pompa de outrora. Seis pares
de chifres sonâmbulos, seis dísticos
córneos já de si subtraídos a dignidade
animal, apartados de rebanho e herdade,
confinados em seu mísero redil.
E agora surge um homem roto e triste,
montado num rocim. Pensa tanger
uma manada, aboiando na manhã cinzenta
seu berrante corroído na salsugem.
Empunhando um relho ilusório,
fustiga os seis nadas. Maestro,
rege seis miragens com seus lúgubres mugidos,
leva-as a pascer, seis bocas, rosas murchas
mais inapetentes do que ávidas
pela paisagem erma e calcinada.
Nessa aurora suja de subúrbio,
são seis arremedos móveis, míseras mortalhas
anunciadas no canto débil e roufenho
dos galos de gargantas necrosadas.
X
Esses que me impõem a diária cota de silêncio
em tudo lembram aqueles que me quiseram morto,
tão logo emiti os primeiros acordes do meu canto.
Aqueles, revelaram-se insuficientes na destreza ou,
não a possuindo, empregaram armas de brinquedo
e balas de festim no meu fuzilamento.
Depois, raivosos ante a falha do projeto,
tentaram estrangular-me com mãos viciadas na carícia,
deram comigo em um poste de borracha.
Não menos ineptos, o lado ao fogo destinado
de carne excomungada era composto. Eu doara
aos epígonos de drácula esse lado vampiresco.
Morreu aí a vaidade; mataram-me, assim, pelo avesso.
Isso agradeço. Por fim (e como último recurso),
cravaram-me no peito o amor de Magdalena,
um amor chinfrim, meio canhestro. Então pergunto-vos:
se no mercado há assassinos eficazes e infalíveis,
por que atribuírem a missão a essa legião de vingadores míopes?
De sorte que a morte que foi minha reviveu-me
e hoje estou mais vivo do que morto. Merda!
Onde é que já se viu!? Não se mata alguém assim!
XI
O mar que me horroriza não é tanto
o mar das cartas ou aquele que se avista
da praia, de uma aeronave ou do frontão.
Desses ângulos, a visão do horror aquático na alma se dilui,
cede lugar à beleza advinda da contemplação.
Há um outro mar sob a planície indevassável,
um inferno proto-histórico e abissal,
o lugar do pesadelo e sua vil figuração.
Esse mar é meu avesso e é meu vício. Esse mar
me acovarda e me amedronta: é tudo que não sou.
Quem há de convencer-me que, nessas solidões marinhas,
não cavalgam as tribos dos fantasmas bárbaros,
ecoa o lamento prolongado dos impérios derruídos?
Medo não congênito; oriundo da perda de uns amigos
rendidos pelo mar: um útero de mãe e um abrigo.
Sob o manto dessas águas, deve haver
um monstro imensurável à espreita,
acorrentado há cem mil anos pelos deuses:
a solidão da fúria reservada ao Dia do Juízo,
o nome do horror que habita a escuridão.
Acorrentado, num arco de mil braças,
nenhuma criatura a ele sobrevive.
Raiva criadora, aberração da natureza. Um polvo
colossal, a julgar por seus tentáculos atrozes,
a pele pegajosa. Mas como dar um nome a essa Coisa,
cujo pensamento só já me enregela e paralisa?
Caso rompam-se os grilhões e ele emerja
dentre as águas agitadas vazando sua sanha assassina
em variadas latitudes, o teu amor e o meu em tudo
estão perdidos. Quem o poderá conter, se não mais
existem deuses? Por isso tenho infinita pena
dos navegantes, pescadores, e de todos aqueles
que se aventuram nessas misteriosas e terríveis paisagens.
Não sei se ingênuos ou se corajosos.
XII
O exercício da humildade ainda vai trazer
toda verdade. Enquanto isso, esquadrinho
os trágicos teatros de Treblinka, Dachau e Auschwitz.
Ao fazê-lo, me pergunto que razões de suicídio
teria o Natimorto de impronunciável nome?
O que reinventou a lágrima e o terror,
em grande escala e em larga série,
provando-nos com sangue santo que o mal
é necessário para abrilhantar o bem supremo,
o quanto ignoramos a lição dolorosa e presente
dos massacres e das carnificinas, abismados
que estamos em nossa própria dor pequena.
Estarrece ainda mais saber, não raro,
cúmplice do algoz o mártir, ovelha
para sacrifício a deuses inúteis e bastardos.
É o que parece ter havido aqui, nesse lugar de morte
infame, inscrito para sempre na memória,
onde tantos, cabisbaixos, se renderam nos comboios,
nos sinistros edifícios que Davi sabotaria com Engenho.
Moisés avançaria sobre as armas,
ou ao menos cuspiria sobre o rosto do inimigo!
Entretanto, viu, em desalento, confirmar-se
no holocausto de seu povo a vocação do sofrimento.
XIII
Eu, que há tantas estações venho pedindo a Deus
por uma primavera, não a tenho. E nada sei
de suas florações, embora tenha chegado o tempo
dela nos campos do Brasil. Os jardins abandonados
atestam o grande cisma da religião dos jardineiros.
As vestes das mulheres sugerem, aqui, tal maravilha
mas meus olhos miram variados gases em suspensão
(gases azuis, gases verdes, gases lilases, gases amarelos)
a lembrar-me as lições primevas da floral anatomia.
Quem sabe me dizer se essas cores são da minha primavera?
Tão grande a sua ausência, a saudade dela e a espera,
diviso-a nessa profusão de tons letais da noite
em que são pardas todas as primaveras.
XIV
Em Minas tudo estava bem, passado o ciclo
daqueles camundongos saídos do nada,
em tamanha horda e profusão que se diriam
salvados do mar de Hamlin, onde o flautista
os pensara para sempre sepultados.
Do bem pouco que sobrara, arrancado não
de hastes ou do chão: do bico do melro
(o melhor de nossos tordos de belcanto),
da maritaca, do godelo e do corrupião,
depois depauperado pela fome roedora,
restava armazenado nos paióis, nas tulhas, nos jiraus
e essa safra pouca, salvada do pouco que restara,
estava sob a guarda de vovô,
rude sertanejo armado com facão, punhal e rifle,
um pente de bala atravessado no dorso,
imprecando contra o corso roedor,
em fuga sob gotas de água benta,
espargidas com as rezas de vovó.
Enquanto isso tinha curso o concerto
em si bemol do apocalipse atômico
que dizimaria Hiroshima e Nagasaki
deixando incólume o País das Gerais,
seus montes penitentes, sua gente
protegida pela crença, trabalho e devoção
do Inferno de Dante e de toda explosão.
XV
Quando Deus secou o mar de Minas
procurando o seu relógio digital,
revelou-se o monte Ibituruna.
E o filete d’água que restou, fluindo
em seu sopé, "Doce" foi chamado por Adão,
quando, a caminho do exílio, nele sua sede saciou.
Em sua margem, o tetravô do meu avô –
que não sei se era negro, branco, índio
ou furta-cor – construiu toscos casebres
e invocou em sua proteção mais de uma vintena
de santos-guardiões. A cidade cresceu
em santidade, o que não impediu
a criação da zona dita álacre ou boêmia,
inscrição carnal nessa mineira hagiografia,
que curou peitos feridos e um sem-número
de sólidos matrimônios dissolveu.
Desde então esse povo ribeirinho
vive de muitas rezas, tragos e afagos.
Os meus pés inauguraram o mercado,
onde uma caixa de madeira rústica,
flanela, graxa e minhas hábeis mãos
atrasaram em alguns anos a indústria de sapatos.
E onde o orgulho dos mineiros hoje exibe
clássica gama de produtos nobres: sumarentas
mangas, íntegra farinha, robustos feijões, queijos
que de longe superam os gauleses, urucum
e arroz d’abril para a mantença do corpo rijo
desses bardos, que descendo pela encosta
desse vale sinuoso, trotando em suas bestas
e tangendo os alaúdes, aqui chegam
sem sinais de exaustão.
Ostentam nos olhos a única riqueza
herdada em Minas: a firme determinação
de vencer sem pressa e sem dor os únicos
inimigos que na vida vale a pena combater:
a si mesmos. Foi ali, debruçado sobre
o parapeito da ponte desse rio poluído,
perturbado, violado, perdido no rasto de Adão,
"Doce", anacronicamente assim chamado,
que me veio, sorrateira, uma idéia suicida;
talvez protesto contra a iniquidade,
contra a diáspora das hordas de rapazes,
mal-cotados como as ametistas, as esmeraldas
e as turmalinas, que malgrado traficadas,
continuam cintilando na órbita dos olhos
das meninas dessas Minas.
XVI
Sim. Sou teu. Mas cuide com desvelo teus cabelos
que o vento desgrenha, o tempo enfeia e envilece.
Escravo da beleza, acostumei a ver-te reluzindo
e decidi ignorar se tens um fim e um começo,
lugares onde engendro a minha própria decadência
(inaugurei o amor errado e é tarde para recomeço).
O dia sedimenta rugas em teu rosto, te maltrata.
Tu te defendes no arsenal do toucador à tiracolo.
Só assim a queda do amor vai-se protelando
no artifício; o corpo fica menos vulnerável: monolítico.
Pois que é o amor, senão as muitas trilhas
onde o tempo não desarme do gozo as armadilhas?
XVII
Outro dia, um feliz ou triste acaso deu-me uma virgem.
Maravilhado com aquele corpo raro, imaculado,
iniciei-a nas práticas da libido. Devasso confesso,
primeiro acarinhei-lhe os seios róseos, intumescidos,
com a volúpia e a sofreguidão de um tocador de cordas,
e rocei meus lábios nos lábios aqueles, de leve,
macios lábios que beijavam ávidos, tensos, constrangidos
(seduzindo seduzidos), como é própria a vez primeira
de quem beija. E afaguei-lhe os cabelos negros e a púbis,
a mão descendo pelo rego do seu dorso,
o meu peito largo insinuando-se em seus ombros.
Ai! Tudo nela era queixa, súplica, estremeção!
Ao ver escorrer pelas ilhargas o líquido do desejo,
ela pôs-se a chorar – menos de medo
que pelo estupor da novidade –, pois acendeu-se
nela um fogo de lírios desconhecido. Aí quis
sacrificar-se pela causa de um deus bastardo
(que isso sempre exige altar, mestre, divindade);
ela, hirta como uma espada, lívida de gozo,
e eu, o ereto membro, o viril, mas resistindo
à responsabilidade, ouvi a conhecida
voz de sua mãe, que me chamava à ordem:
– Menino, tem juízo! E a virgem, hoje,
anda louca de desejo pelas ruas da cidade,
implorando que a deflore os homens da misericórdia.
XVIII
Naquela noite, noitão lúgubre do tempo
dos ciganos, em que os cães ladravam
os fantasmas invisíveis no terreiro,
Maria agonizava mais um parto, o décimo
de uma série de raquíticos pirralhos,
uns arrebatados ao sarampo, à varicela,
à coqueluche, minados pelos vermes,
outros de saudosa lembrança, mercê
da graça divina, da escassez de medicamentos.
Maria concertava seu destino, sozinha,
agonizando em silêncio, como convinha
àqueles cuja boca, meio, ofício,
não foi dado pela honra dar vazão à dor
ou revelar as convulsões do sofrimento.
Se gritasse, se gemesse, os meninos saberiam
não ser filhos da terra como rezavam
os mandamentos, provindo daquele mesmo
ventre saliente. Assim dormiam sobre
os catres, nas esteiras, o sono dos inocentes.
Dessa dor intransferível, dessa vária Maria,
mais uma vez brotou a vida com seu dom
de teimosia. Cantaram as águas do Cassiano
e a lua esplendeu na noite. Súbito, calou
o pio das corujas e cessou a bulha dos sapos,
grilos, curiangos, ofuscando os pirilampos.
E Deus – que vinha comigo pela várzea
mas perdeu-se – criou as aves carniceiras
dos chapadões e dos frontões marinhos
para que a memória retivesse tão-somente
os dolentes movimentos de amor e gozo
e não se desse aqui, em Bangladesh ou no
Jequitinhonha, onde morte e fome imperam
testemunhos vis ou abjetos.
Assim, abandonamos nas planícies nossos mortos
e Ele, pela graça de perpetuar, nos agradece.
XIX
O desespero criador levou-me a desenhar a paisagem:
uma montanha recortada no azul, ao centro e ao fundo;
um cervo galgando uma escarpa, um cervo suicida;
serpe em movimento, o rio, a Leste, como se um dedo
polegar sujo de barro tivesse escorregado no verde.
Na ravina, em arco recurvo, pasta o gado. Pincelam-se
uns "Vs" em negro e aí esta um céu com aves:
no plano superior, as de rapina, majestosas, graves.
A Oeste, o rancho tosco com seu fumo em espirais.
Se rancho de caboclo, mulher à janela para minorar
seus ais. Mas escusa-se de pôr nesse cenário
uma cabocla brejeira, frustrando a expectativa brasileira:
assoma e acena da janela uma gueixa japonesa.
O nome dessa moça dizem-no Mayumi. É Teresa.
XX
Mugido de vacas prenhes, balidos caprinos,
preces de exorcismo à cancela, tudo se perdera
no ronco ensurdecedor e impiedoso do que,
sendo máquina e avançando pela estrada,
a livrava de buracos traiçoeiros e rebarbas
da reintegração movida pela esbulhada natureza.
Críamos ser aquilo a besta apocalíptica,
o sinal terrífico e inelutável do soberbo
fim do mundo. Nós, infantes, ignaros sertanejos,
perdemos a infância e o juízo tentando decifrar
esse prenúncio da hecatombe. Hoje, convivemos
com vacas mecânicas, pássaros metálicos,
aboios fantasmas, cópulas cibernéticas,
enquanto vão morrendo a madressilva, o malvarisco
e se perde na fuligem o horizonte solitário.
XXI
Amigo meu, assassinado por ciúmes, foi Geraldo,
o que selou seu Alazão quando caía a tardinha,
tomou banho na bica e passou água-de-cheiro.
Trajou calça de cambraia, camisa de linho,
calçou botas de couro. No pescoço, à moda cigana,
amarrou lenço vermelho. Mirou e remirou-se
no espelho. Afagou o cão e pediu benção à mãe.
Abençoado, montou todo prosa
e cavalgou ao encontro de Rosa,
não mais que meia légua, uma canção,
que, súbito, um estampido interrompeu.
Da tocaia, uma bala rasgou-lhe o peito.
Com isso, o noivado foi desfeito.
XXII
Cuidado! Há três índias loucas na floresta,
remanescentes de uma gloriosa tribo extinta.
Paira sobre elas o estigma dos ancestrais, do sexo.
Alimentam-se de larvas e raízes, às expensas
de um deus pobre e se expressam num intraduzível dialeto.
O riso insano delas para mim é gravação no esquife
da memória e mortalha a mão da amizade branca.
Retesam os cacos do arco coletivo e vai a flecha
estropiada soçobrar longe dos bichos. Nelas,
com a imprecisão da mira, cessou todo entendimento;
os sentidos rarefazem o que foi a existência.
Para elas, céu é sótão, ave é esqueleto. Fremem
seus corpos ao alçar do vôo dos pássaros.
Estão aniquiladas essas índias, inaptas
como os velhos vates, pressupondo que o verso
guarda-se entre as cinzas do passado
para que o ritual do fogo no futuro aconteça.
Tentaram demover-me dessas litanias de gosto duvidoso,
iniciei-as na seara sempre virgem de Alóvena Ebaente.
Despiram minhas vergonhas do rouge e do noir,
vesti-as de toda cor, inclusive azul e branco.
Passei ali, se me lembro, três semanas
barganhando espelhos, odes de Pessoa, ícones de santos
Defendi que a poesia é raio solar, cão, gato,
elas que o poema é alma e ômega, trompa e cornucópia.
Avizinhei-me da orla recitando um poema de Seferis:
Stratis, o marujo, entre os agapantos.
Elas taparam os ouvidos e sumiram mato adentro.
XXIII
Noite, noite, noite, quando sobre nós
abatem-se temores, presságios maus, vis carências.
Vai o carro chapinhando águas no asfalto
e o céu desaba ao peso dos satélites e dos astros.
Abre-se o véu celeste e cessa a borrasca.
À margem do caminho, desliza uma sombra
entre troncos e folhagens de eucaliptos.
E o que poderia corporificar o sonho fáustico
do fauno, materializar o mito da mulher no bosque
é trottoir. Nem isso, esta palavra revestida
de conotações sofisticadas e prosódia sedutora
e sim baixo meretrício. Então eu sigo envergonhado,
sob o peso da minha própria máscara.
Mas por que anda o ser assim tão apartado,
isolado como um velho urso?
Ora, que pergunta improcedente! Eu, que celebrei
tantas mulheres, as de quinze e, com mais afinco,
as de quarenta e cinco? Eu, que piedoso, celebrei-me
e aos homens deploráveis, rancorosos, ostentando
falsa segurança nos gestos e falsos conhecimentos,
orgulhosos de suas pueris indumentárias de zinco?
Mas por que andam assim da tribo apartados
esses índios velhos, isolados da tribo, desgarrados
esses velhos elefantes esperando a morte
em seus cemitérios? Quando?
Pergunto a ti, exausto de pensar esses humanos
e de vituperar contra a máquina do sofrimento.
Nunca! – Tu rebates sem pôr fim ao meu tormento.
E a tua afirmação, como o corvo de Poe ou disco
riscado na vitrola, pelos dias ressoa em meus tímpanos.
E passamos a gastar nossa existência
aprimorando a pronúncia de uma cifra.
XXIV
E o dia é usufruto. Então sigamos!
Compassiva senhora que ofertais o vosso pão e vinho,
permiti que Helena, a primogênita, ensine-me o caminho!
E Helena disse: – O dia é usufruto. Então sigamos!
Cuidado, extremo cuidado aí, ao descer os degraus,
onde um quebrou a perna, dez as costelas, três o crânio.
Há varões de riso no caminho e trêfegas moçoilas,
cujas nádegas e seios já foram tatuados por piratas
e, num jardim pisoteado, rotas pétalas e hastes.
Teu olfato é bom? Podes com os odores?
Há mais crimes que suportam a fragilidade dos sentidos:
crianças assassinadas, soldados corrompidos,
prostitutas infectas com dentes corroídos, eunucos
e ratos no porão tripudiando sobre os moribundos.
O dia é utensílio. Sigamos então pelas artérias de Sodoma,
sabotar mansões, palácios, monumentos.
Sigamos! Há caninos à espera, pontiagudos e cortantes.
Sigamos! Onde o rumo? Aí, onde os perigos
inibem naturais desejos, as inclinações de gozo,
orientar adolescentes no caminho tortuoso das viúvas,
pronunciar palavras de gosto duvidoso. Melhor,
pronunciar palavras chulas de comprovado impacto
nas lides aristocráticas, burguesas, dizer vocabulários
de zona e cais entre reis, príncipes, rainhas.
Ah, e tendo a multidão por testemunha,
vou cair de boca aí no teu. Terás vergonha?
Ai, se me lambes como um bicho ante os transeuntes!...
Sigamos a matar poetas como Ivan, auscultar
nossa morte nos cárceres onde agonizam ilusões de glória;
queimar searas, desdenhar o programa do partido,
os manuais de etiqueta e a ordem paradoxal do dia.
Não vês congestos rostos, múltiplos esgares?
Ouve, meu coração, imprecações de que o País anda tão cheio!
Sigamos a erigir ribaltas e teatros, encenar
o tragicômico fim de desbotadas civilizações,
a violar (Epa! Uma viola?) no ser individuais direitos,
certidões de posse e convicções religiosas.
E o dia é usufruto. Então sigamos!
No caminho, ao sol, à sombra, triunfantes ante os paraplégicos,
risos escarninhos para bem nascidos e profissionais do tédio.
O dia é usufruto e nele andamos cegos.
XXV
O que se dá à piedosa inocência dessas moças
não se pode dar às velhas e suas afeições remissas;
e nada é novo, canto, riso, medo, amor,
embora sempre vivo permaneça,
transposto à esfera do vício, praticado à exaustão.
Não percebeis, acaso, redivivos, não percebeis
esses arcaísmos, essas frases desbotadas? Reparai!
Mensurai a dimensão do desespero! Mas por vossa
conta e risco – o quanto a queda é natural principiando
pelo embotamento dos sentidos. Depois silenciai
os menos eloqüentes dentre vós, poetas,
que a menina grega está chorando
a beleza intolerável de seu trágico passado.
Contra quem guerreiam essas amazonas?
A lâmina penetra fundo nas carnes e seus gritos
enregelam a musculatura dos cavalos.
Oh, eu desisti de procurar-me! Aceitei minhas facetas,
como o mar aceita o sargaço e o naufrágio,
adotei as circunstâncias do meu cerzido drama.
Minha raça é uma só: humana. Sua cor variegada
salta-me das órbitas, dos poros iridescentes.
Aqui toda beleza é poço, embuste, arma, ilusão,
lugar onde as amazonas cavam sua própria rendição.
XXVI
Por mais que eu me seqüestre, aquele rio me retoma.
E começa a desenhar-se na lembrança
seus contornos imprecisos, rio limpo, atravessando
a alma sem escoriações, sem danos, embora
maculada para sempre a sua líquida história,
evocação inscrita agora, nessa idade sazonada
e madura. Traz ao poema os primeiros signos do mal.
Primeiro, surgem os palustres afogados,
continentais criaturas, depois os assassinados,
cujos inquéritos policiais não decifraram
a condição de peixes compulsórios, os que
tomaram o rio de empréstimo e têm nele
a morada derradeira. Obriga-os ao fundo
um colar de pérolas vulcânicas, utilitárias
da construção civil de grutas. E por falar
em habitat, esse rio serviu e serve
aos homens como empório de areia
para a engenharia de sólidas paredes
contra as intempéries, de resto poucas
nesse vale aninhado entre montanhas,
tirante as cheias, claro, quando o rio incha, alarga,
alonga a língua e lambe as casas, os escassos bens
e a preciosa vida desses ribeirinhos.
A melhor areia, dizem serventes e engenheiros,
justificando a azáfama das dragas e a faina
dos barqueiros. Depois, manutenção da vida,
franqueada a sua fauna, seu séquito
de peixes, anfíbios, crustáceos, quelônios
e outros seres inominados que, em preito,
ofertam-se à insaciável fome humana.
Para o bem da poesia e à revelia dos geógrafos,
todo rio marca o fim e o começo de outro mundo,
cujo acesso é uma ponte respeitável
que desencoraje a travessia à nado, como quis
certo Moisés, certa tarde, incerta idade.
Todo rio é da infância e principia com águas
de pouco caso e vai ganhando lenda
e autoridade a cada braça percorrida
para consumo próprio e assombração de inimigos.
E vai morrer, melhor, somar-se ao mar,
cumprido o seu destino, feito os kamikazes,
os poemas, os meninos. Veste-se
de ira quando violada sua integridade,
ao jugo de substâncias estranhas submetido.
Deve vingar-se semeando a morte se preciso,
pestilências de calibre, delegar armas letais
aos esquadrões de sua guarda para dizimar
aqueles que cometem lesa-majestade contra ele.
Rio que se preze não deve dar testemunho
de pusilanimidade, deve disfarçar seus tristes tons,
creditar à pujança toda venenosa escuma.
E mesmo que os discípulos chorem lágrimas veladas,
esse Mestre deve transitar por entre eles
de cabeça erguida. Um rio assim antepara
os aguilhões da mágoa. Quem obtém um rio assim
não anda mais sozinho. Rio desse naipe,
mesmo turvo como sói, rio deve, até que banhem
o coração de toda humanidade as suas águas.
XXVII
Atravessamos aquela mata sob a bulha dos símios
e chegamos ao entardecer do dia gasto; o céu,
baixo e enfarruscado, prenunciava uma noite de duendes.
Nenhum de nós acreditou no curiango renovando
a esperança: "Amanhã eu vou! Amanhã eu vou!".
O pai desceu os cestos da besta e depôs no chão
os pomos podres de um outono excessivamente rígido.
Ao lavar-se na bica, exorcizou as deformações do habitat,
desolado com os arranhões e a fuligem no rosto,
uma seara de calos nas extremidades do corpo.
Sua mão levou-me pela várzea, onde me presenteou
com um pé de amendoim recém-arrancado do solo,
um troféu de hastes e bagas, que ofertei ao sol.
Entanto, não há rogo nem choro. Lembram só os vivos,
que seu mister é lembrar. Os mortos, de seu limbo,
contemplam absortos suas culpas, o renque
de seus dolos. Nostalgia, mais que uma palavra
pegajosa e visguenta, é também um estado íntimo,
que agreste e doloroso traduz o quanto a vida
deu-se em gozo, o quanto dela se perdeu,
concupiscente – coivara de lembrança e de presença.
XXVIII
O que pretende essa voz tão asquerosa,
melíflua ou áspera, consoante o fim de persuasão,
dissuasão ou reprimenda, ciciante como se partisse
de um bonzo combatendo o mutismo, que pretende?
Ele – e ao dizê-lo distancio-me, benzo-me – está sentado
ali, após os buritis, continental ou insular, rural ou citadino,
em pose imperial numa cadeira giratória
atestando a falência da humanidade nesses seis milênios,
morto e abandonado pela ineficácia do serviço funerário.
O movimento de um dedo ou o deter-se olhando as unhas
constitui-lhe um flagelo insuportável.
Ei-lo, perfeito na imobilidade à maneira da Esfinge.
É um morto inconsciente regulando nosso medo,
nosso sonho de regresso uterino, arquitetado
durante toda a vida com zelos e cuidados.
Amargo, transitório, carecente de sentido,
se parte de seus lábios um assobio displicente,
protelador do túmulo ou dissipador do tédio,
contraem-se lábios e virilhas de seus comandados.
XXIX
Acontece quando não se aprendeu a gratidão
ou quando aquilo que chamam Diabo obstruiu
a estrada que vai dar no amor. Vêm derruindo
o Sete-Estrelo, a lua, os astros todos caem
fragorosos, lixo divino, fardo da criação.
Um resto de pardal silencia nas ruínas,
onde vagam as Irmãs das Tristezas:
Lachrymarum, Suspiriorum, Tenebrarum,
o ar, irrespirável, denuncia uma terra em estertor.
É preciso vigiar, ó Mãe Puríssima, as cidades,
os países, entidades perigosas, presunçosas,
habituadas à engrenagem inexorável do terror.
Ausente a dádiva das rosas, velar palavras murchas
e soldados lívidos, resignados ao ofício de combater-se.
Todo homem são é de paz e quer apenas viver.
Esta é uma maneira de exprimi-lo: sovada e banal,
enquanto não se lobotomiza o rei e o general.
XXX
O dia avança lento
cefalópode marinha angustiante
Eu quis mudar seu rumo e ritmo
derreando meu corpo neste assento
do canto dos pássaros ouvinte desatento
E vi Euterpe flutuando entre
a folhagem da flora e o mundo de hoje
não era mais miséria que o mundo de ontem
Sai do meu jardim, Euterpe, sai!
Pois não é tempo de cantar
ou fazer versos como manda
a tristeza do meu coração exausto
E pensar que nascemos para esses pomos
essas águas todas esses gozos
extraídos de fornicações à sombra
Vem e vê: aromas sândalos incensos
Outubro era o mês do pólen Se baixasse
um cardume de abelhas entre as florações
um enxame de peixes em meu coração
isso me inundaria de contentamento
Pelo menos foi assim a invenção desses caminhos
cuja embocadura ia dar no mel Depois
sobreviria o êxtase e o tormento
Mas o medo nós trazemos atávico fantasma
Eu tinha tanta coisa a dizer talvez
murmúrio ou grito lancinante
mas o rigor do itinerário cala-me em cada ponto
Houve um tempo quando o mal
era bem menor que um dos movimentos
dessa asa em vôo rasante Há muito tempo
Mentistes para mim é certo a grande mágoa
é menos o ter me enganado e mais
saber que mentistes o teu gesto
me confirma uma coisa das mais tristes
Não falemos disso agora Deixa-me
tomar fôlego antes do teu cerco obsidente.
XXXI
– Coragem! Coragem! Eu gritava de manhã
ao ancião noturno do outro lado da amurada,
pois seu medo excedia o limite tolerável.
Circunspecto, taciturno, meio surdo caminhando
entre canteiros de alecrins, ruminava frases
como ora pro nobis, triste vida, ai de mim,
os olhos fitos na covanca da mão, onde se aninhavam
míseros centavos e filhos desaparecidos.
Lembrei-me, então, de pessoas e objetos
que faziam meu apego, a maneira deprimente
de como eu próprio, eu me agarrava
a ínfimas ruínas, o valor do escombro
a agravar-se com a idade – tinha isso
em mente ou quis assim o Grande Mágico?
Por fim, rouco de gritar, pareceu-me vê-lo
esticar em minha direção o pescoço longo e rugoso,
displicente como todo velho ao ser interpelado,
resignado ao abismo de todos nós ou morte prévia.
Perguntou: – O que disseste mesmo? E eu,
já quase desistindo de revivê-lo, repliquei:
– Coragem!
XXXII
Já não te escrevo a última missiva.
Antes dela, irrompeu por telefone
o teu adeus abrupto, solerte despedida
que cessou a tua faina
e quase cala a minha fala.
Fique assim, letra capenga! Órfã
sucumbida aqui no verso, feito preito,
adormecida sobre o peito após o frenesi.
Fatigada sim, malgrado insaciada,
à revelia do desvelo, do lavor
e também de alguma lágrima frustrada.
Trégua à furiosa usina cerebral,
exausta de polir o duro metal das sílabas.
Requiescat. Silêncio compulsório, golpe
traiçoeiro, obra encerrada e traduzida.
Vixit! Sabemos inúteis as palavras,
meu prezado. Esse exercício da inutilidade
nem logra expressar o que me vai subtraído:
a fleuma inesperada, o gesto paciente, amigo,
coisas que ninguém, nem o poema irá recompor
no tortuoso curso desta vida,
que de modo cru e gradual se vai gastando
com a perda quase insuportável
dos poucos amigos duramente conquistados.
Praza-me não vir tua coivara horizontal
à essa idéia dolorosa de saudade,
não ter contemplado a tua física ruína,
sua cinza precoce e intempestiva.
Não adensar o último mistério,
não saber se tocam tambores
nesse Érebo imprevisto e luminoso,
quantas jardas mede a cauda do diabo,
qual o traje de verão no paraíso.
XXXIII
Soava o badalo do sino
quando notei a cachorra inerte.
Chamei-a. Estava surda, vítima
de enfarte, sem um ganido audível.
Pousei nela uma mão de afago, trêmula,
acendi uma vela tardia, tomei um trago.
"Para tão grande amiga,
vida tão pouca", murmurei
com voz rouca. Era de noite...
Fiz para ela uma mortalha de trapos,
nesgas de cânhamo, fiapos de lã.
Fazia frio e tingiu-se de cinza a manhã.
Desenterrei do quintal um osso antigo
e completei seu féretro de trastes
ouvindo além da névoa os ecos
do seu ladrido, lembrando
os orgulhosos gestos de sua ética vigília.
O pulso do dia adstringia já
os nervos de seu estômago convulso,
a língua presa entre os dentes
compondo a cena trágica, quase risível.
Num terreno baldio, improvisei
um epitáfio entre ratos,
sacos plásticos, frascos de vidro.
Cavei cinco palmos de buraco
(dois nacos de orvalho caindo da face).
Nesse cenário kitsch,
dei por dizer frases de Nietzsche,
rematei com um verso de Salomão.
Baixei na cova o meu cão:
fardo triste, inflável balão.
XXXIV
A cambaxirra me desperta ao primeiro pio,
um fio de canto longínquo, adrede ao sonho,
bem antes do espanto do relógio. É hora
de acordar, hora do necrológio.
Cheio de birra, diviso no quarto
um parto de luz. Um fogo de obus
vem descerrando as pálpebras
mas aferra-me no catre a tenaz do álcool.
Tento aprisionar num frasco
esse instante de horror,
negar a dor do ror da multidão
que sai para o trabalho.
Falho no gesto e levanto.
Como um gnomo,
descanto e descubro com medo
que o lavor é uma fuga,
apenas um ato nesse sempiterno teatro,
um coro de desabafos
das vidas que, ao invés de acordar
para o cio, o fazem para o cansaço.
Droga! E dizer que Deus ajuda
quem acorda cedo, enquanto o Diabo
senta o pau no dorso de quem madruga!
Tudo é fardo em mim:
alma, indumentária, sapatos.
Chacoalho o esqueleto,
verifico o amuleto contra o transe
que se fez a vida, contra a crise
em que imergiu o mundo.
A disposição é das melhores: homicida.
Transido de frio, sopeso a idade,
sorvo um gole de café requentado
pensando nos pulhas aumentando
o preço da proteína e do cigarro.
Começo assim como saúva,
extraindo do começo o meu fim,
levando o fardo da inutilidade.
Saio. Tropeço no passo. Ensaio
um torpe gesto mental. Estremeço,
possesso da idéia do trabalho.
Dobro a esquina prestes a gritar
ao mar, ao cão vadio e ao arcanjo:
– Não vêem como a vida é vil!
Meu coração civil quer que se lasquem
os poetas e os filósofos da revolução.
E penso em Chê, guerreiro Cristo,
revisito os mártires do dia e os heróis
anônimos, cobardemente assassinados.
Estou no Leste, por acaso, onde a peste
que chamam sol vai perfurando
o esplendor da treva. Mas neblina, quase
neva – Mário morto em meio ao fogo.
Um anjo torto, aquele drummondano,
tece um clarão apocalíptico.
Raia o dia, secular infâmia.
XXXV
Baixou em mim um desespero branco.
Agora, as palavras só traduzem seus avessos,
congeladas em cristais de água, congestas
na ânsia de expressão da minha angústia.
(O véu plúmbeo da vergonha cobriu as suas faces).
Oh minhas palavras, escravas da beleza!
Oh tradutoras dessa inútil emoção estética!
A vida, às vezes, faz-se torpe; torpe esse silêncio,
o medo de gerar um canto inexato,
simulacro nascido nos hiatos da incerteza
do que tenho de divino e o quê sombrio,
sussurrado entre um eu inacabado
e a perfeição – vista de viés com olho incrédulo
num flanco perolado dessa humana natureza.
Nós somos o milagre das águas verticais!
E nada me redime mais que esse andar
ereto, íntegro, flagrado em busca dos pulsares.
Em seu nome, água pensante, construo o perdão,
ergo alegorias. Unto as armas esperando hora e vez.
Tartamudeio um qualquer nome reademadeando
e redesenhando da infância os finos traços,
perdidos como níqueis num gramado espesso.
Em nome desse gesto redentor neguei Pasárgadas,
vahalas, paraísos. Sorvi a saliva do primeiro beijo,
diluído nas pegadas impúberes de Marluce,
orquídea branca e abrasada, celebrada em outros versos.
Agrestes fizeram-se estes lábios em nome desse amor.
Fizeram-se fugazes as volúpias, ariscos os contatos.
Desde então são terciárias as idades e os laços,
complacentes os desejos, evasivos os abraços.
Povoam minhas noites Tedas Baras fugidias
que me ofertam alfazemas de seus sexos.
Eu queria crer num deus, mesmo cruel;
libertar-me dessa máscara entre parêntesis.
Eu já condenei o triste escárnio do meu riso
e disparei sete palavras belas. Quedo-me à espera
que uma delas comova as criancinhas,
logre a plenitude, o êxtase, o vendaval,
conquanto eu feche os olhos e celebre o homem só:
imensidão vazia do anticanto, negra mas banal.
Nem isso – um zero anular num dedo irreal.
XXXVI
Se a poesia sagrasse o seu império aqui,
na borda deste copo, no rubro dos teus lábios.
Cintilasse no verniz dos teus sapatos, nas borbulhas
e fagulhas desse porre perigoso e sacrossanto.
E sob o manto do Divino, o chefe dessa missa
varresse as impurezas deste bar, a ferrugem
da tampa do latão, o mofo da cortiça,
os anti-tabagistas e fardados abstêmios
com seu cheiro agridoce de carniça,
deslocados nesse paraíso etílico,
lugar que é de gozo e doce danação.
E nesse altar erguido para Eros, para a fome
de nós dois, naufragássemos no afago
entre um e outro trago, corrompêssemos a encíclica
papal com beijos cálidos, toques proibidos,
gulas e soberbas sacanagens que até o pensamento
afastasse o sofrimento e a procriação,
confiscássemos os frígidos com poro imperativo.
Se ao nosso ventre de oferenda o mundo se rendesse.
Se a gente fosse um só, enrodilhados e inebriados;
fôssemos o pó, aquele da estrela estilhaçada.
Provocássemos uma overdose de alegria no diabo,
amarrando o nosso anjo terso e teso, feito fauno,
uma rosa e uma garrafa de cerveja no seu rabo.
Se o poeta fosse o assassino da incerteza
que corrói a todos nós,
se a dor de existir pagasse algum tributo
se toda voz se ressentisse do artifício
a boca fosse escrava da metáfora
um verso iniciasse o pregão de todo dia
a poesia fosse objeto de hasta pública
a ode fosse a oração dos novos-ricos
um anacoluto acessasse a Internet
a grande lavra fosse a do poema
e o cargo-mór fosse o de vate,
disputado na faca e na bala dos comícios.
Se os homens só falassem em recitais
o gozo da mulher se revelasse em madrigais
o bem supremo fosse a ars poética
todas as mulheres fossem beatrizes
e suas formosuras sempre verticais
o canto fosse evidência, puralira, ensaio de alegria,
vício fatal – cheirado como coca e comido como pizza.
XXXVII
Se a poesia está morta eu não sei.
Jaz no passeio, está inerte,
cercada pela turba,
tem os clássicos sinais. Mas e daí?
Eu mesmo os tenho, pelo tanto
Que me dão de obituários.
Vivo estou, rebelo-me, existo.
Diz-se morta a poesia,
pelo pouco de memória, muito de olvido,
que a faz cinérea de semblante
como Dante ao ingressar no Inferno.
Mil demônios exegetas avariam os seus flancos
e os expõem aos incrédulos passantes.
Talvez a poesia descanse da refrega
advinda do êxtase ou do estresse
na ante-sala de nossa morte moderna:
meteórica, asséptica, imputrescível, metafórica,
como a Vênus ao Espelho de Velázquez.
Viva ou morta fez-se ancila
de bastardas expressões,
de miseráveis arremedos da beleza,
camuflagens, trapos fônicos
desses tempos desbotados e vazios.
Seu olhar é vítreo como o das salamandras,
seu dorso está coberto por antigos vespertinos.
A fuligem e o pó de suas vestes
parecem indicar que a Poesia
andou queimando lata no canteiro de obras.
Decerto que andava cabisbaixa, depressiva.
Será que a poesia, aliciada, cheirou coca?
Será que a poesia, paranóica, fumou crack?
Indagam, atônitos, o vulgo e os acadêmicos.
Matou-a tanto choro, tanto rogo,
a praxis paulista, o grão parnaso,
os amores suburbanos?
Será morreu à míngua em cativeiro,
vítima do estipêndio verbal,
da música atonal, da saliva milimétrica?
Socorro! Acudam! Gritam os poetas.
Chamem o neo-qualquer,
o clínico barroco, a surrelência!
Alguns crêem tê-la ouvido
exalar o último suspiro,
dizem ter vertido sangue aos borbotões
pelo rasgo do punhal do assassino.
Se a poesia está morta eu não sei.
Declara-se aberta a sindicância
a mando de seu próprio ministério,
mais que público. A vanguarda,
a retaguarda, o feldmarechal e o passadista
comparecem ao local sinistro.
O delegado de plantão imprime na calçada
o compasso de seu passo preocupado,
vinco à testa.
Repassa mentalmente a lista
dos prováveis assassinos, os instrumentos
vezeiros nesses crimes capitais:
o sangra-na-vazante, o pérfuro-cortante,
o corto-contundente, enquanto a multidão expectante
estica o pescoço para o epicentro do que julgam
ser uma tragédia inda maior
do que o incêndio do Joelma e do Andrauss.
Fugia dos paroxismos adolescentes, afinal?
Houve disparo, houve luta corporal?
Ninguém viu nada. Ninguém ouviu,
ninguém fala se levou a mão ao peito
à moda dos infartados, se girou
sobre seu próprio corpo e caiu.
Chega-se o espelho às narinas,
em vão, escuta-se o coração.
Tanatológicas, tétricas figuras,
removem dali seu corpo magro, ressupino,
e baixam-no à marmórea mesa, em paramentos.
Querem dissecar a morte imponderável,
aquilatar o grau de fingimento, da que vive
entre últimos suspiros, índigos adeuses,
fúnebres unções e outros lenimentos.
Seu plúmbeo abdômen rejeita o bisturi,
a lima rilha e gasta-se em seus dentes.
O machado estilhaça-se em seu tórax
mais duro que o diamante.
O ambiente ilumina-se com as fagulhas
de seu corpo incorruptível, sacrossanto.
E vão-se os peritos entre imprecações
após a faina inútil; dessa sorte,
a poesia é um despojo devoluto,
como os corpos mortos, vivos, moribundos,
em Ruanda ou nos lixões do meu país,
abandonada à piedade dos amantes.
Resta a eles recompô-la e vesti-la,
guardar com zelo seu espólio iridescente.
Ficamos sem saber se a Poesia ainda vive
entre nós com o mesmo ímpeto
ou se nós e essa diva já passamos
ao reinado do esquecimento.
Sei que escrevo e toda vez que o faço
a letra dança álacre no papel.
Escrevo. E toda vez que o faço
ponho abaixo uma Babel.
SOBRE O AUTOR IMAGINADO
Acho fácil defini-lo, o tal. Anos a fio privei da amizade dele, desviei-o
da aridez doméstica, provi-o de alguns cotidianos com que sofreasse
o pendor místico-metafísico e abrilhantasse seu verso junto
ao rés-do-chão.
A começar, só existe no interregno entre a idéia e
a sílaba, esse um. Pensa com letras e signos. Ser vestido com indumentárias
lexicais. Desnudo, ou seja, sem a máscara das palavras, não
é de nada. Obumbra-se em meio à multidão sequiosa de
lendas. Não importa se detém o domínio da palavra:
escritura, para além das sutilezas do ofício, acompanha o
movimento dos povos. Demais, há coisas que são ariscas como
cavalos na chuva.
Estranha ciência a dele. Promove a superfície e desdenha o
cerne, o essencial. Outro o dia o flagrei, ensandecido, permutando seu canivete
novo por um escaravelho manco, em estado de ciência, e uma teia de
aranha devoluta e alcandorada de ver os cristais do sol. Não cultua
cães nem meninos em seu quintal, sorvedouro onde põe, diuturnamente,
a cabeça de seus semelhantes a prêmio.
Sabe que a divindade reside nas paixões. E que a vida só vale
a pena de ser vivida se inserida nesse território inóspito,
perigoso e imponderável. Nada mais absurdo do que tentar sobrelevar
a sua fala. Ei-lo, limpo, escanhoado e perfumado.
[Biografia do Autor e Uma crítica sobre seu trabalho]
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