A GRAMÁTICA E O FUTEBOL
Muitos anos atrás, em meus idos tempos de menino, eu sonhava
– como sonhavam quase todos os meninos – em ser craque de futebol.
No meu caso, porém,
era um sonho sem esperança. Pois além de grosso
– grosso mesmo, desses de dar medo – eu do jogo não entendia
nada: nem da tática, nem das regras, nem de nada.
O sonho surgira assim de
forma quase etérea, coisa dos ares brasileiros, ou talvez
influência de meu tio Evelcor, corinthiano roxo, que certa
vez, quando eu tinha 7 anos, levou-me ao Morumbi pra ver um Corinthians
e Palmeiras. Da partida pouco me lembro, mas a festa da torcida
corinthiana saudando o time que entrava em campo... isso eu jamais
esquecerei.
Dali em diante, tornei-me
fanático. Comecei a passar as tardes de domingo sozinho
no quintal, acompanhado os jogos do Corinthians pelo radinho e
chutando uma velha bola de capotão por cima do varal (barreira
do time inimigo), fingindo ser o Rivelino.
A emoção
que vinha do rádio era indescritível... Não
que eu entendesse algo do que estivesse sendo narrado ou do que
de fato acontecia no jogo. Não. Eu nem sabia o que era
"meia-cancha", ou "intermediária", ou "impedimento"...
mas a voz do narrador exprimia uma intensidade tão dramática...
uma importância tão grandiosa... que parecia retratar
uma batalha épica e sobrenatural, uma batalha mítica
entre o bem (o Corinthians) e o mal, travada em alturas gloriosas
muito acima de nossa realidade terrena e que ficaria gravada eternamente
nas imensidões infinitas.
Nunca haverá no
mundo real um jogo que se compare às imagens daqueles jogos,
tecidas no ar pelo radinho de pilha.
Mas – à parte o
rádio – meu verdadeiro sonho, que era jogar de verdade,
esse eu nunca cheguei a realizar; e não foi por falta de
insistência.
Incontáveis vezes
eu me apresentei, cheio de disposição, em times
de rua ou da escola. Mas bastavam umas poucas correrias pelo meio
de campo e ataque, que logo minhas deficiências ficavam
óbvias... e mandavam-me para a zaga.
E lá ia eu pra defesa
sem me queixar; mas também lá me faltavam noções
de colocação e marcação. Eu corria
pra bola... e o centroavante recebia livre nas minhas costas...
Da zaga, eu ia pro gol,
e mesmo lá eu continuava feliz. Esforçava-me e atirava-me
como um camicase. Mas também lá me faltava técnica:
largava bolas, não sabia sair... e acabavam arranjando
um goleiro melhor.
De tudo isso, minha única
queixa é ter esperado, ano após ano, que algum professor
de educação física na escola me ensinasse
alguma coisa (talvez os fundamentos básicos do jogo: chutar,
matar a bola, colocar-me em campo)... Eu bem sabia que nunca seria
nenhum Rivelino, mas queria aprender um pouco! Era frustrante
ouvir de cada novo professor, ano após ano, sempre a mesma
frase (com um sorriso condescendente, de quem imagina que está
sendo muito bonzinho):
– Eu não vou
ensinar ninguém aqui a jogar bola (como se ensinar fosse
algo ofensivo). Futebol, já se nasce sabendo. Vamos jogar...
E lá ia eu, mais
uma vez, a correr atrás da bola... e a dar-lhe pavorosos
bicões toda a vez que a infeliz caia, por obra do acaso,
na minha frente... isso quando não era a perna de algum
colega...
Não. Eu não
havia nascido sabendo.
No fim, felizmente, a deficiência
futebolística não fez falta em minha vida, nem para
meu sustento, nem para a realização de minha verdadeira
vocação, que é observar o mundo e descrevê-lo.
Mas agradeço aos céus todos os dias o fato de meus
professores de português não terem sido como os de
educação física.
Também em português
eu tive minhas dificuldades, a começar pela dislexia. Mas
meus mestres não foram condescendentes com minha ignorância,
nem supuseram que os alunos nascem sabendo... Eles ensinaram...
e depois cobraram duramente. Foi graças a isso que eu aprendi.
Por isso é com tristeza
que observo hoje a moda de se substituir o ensino da gramática
por "interpretações de texto".
Tais "interpretações
" são como as peladas de minhas aulas de educação
física, inúteis para todos, e frustrantes para quem
não trouxe de casa a arte da bola ou da gramática.
Oferecer textos sem antes
ensinar gramática faz lembrar meus professores de educação
física: "Eu não preciso ensinar ninguém...
Futebol, já se nasce sabendo..."
A gramática, como
o futebol, é algo concreto, que pode ser aprendido e ensinado.
Mas as conseqüências da falta dela são muito
mais graves para a vida da pessoa, e para o país.
Nota do Autor: por motivo de saúde
estarei temporariamente afastado de minha coluna semanal. retornarei
oportunamente
André
C S Masini
O autor é
Auditor Fiscal da Receita Federal e Escritor
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