LOBOS,
LEÕES E ESTELIONATÁRIOS
Na última quinta-feira,
passei pela desagradável experiência de ter um cheque
adulterado por estelionatários.
Um sujeito entrou no estabelecimento
comercial de onde eu acabara de sair, e, enganando a balconista,
conseguiu apoderar-se do cheque, trocando-o por dinheiro. Depois
acrescentou-lhe dois zeros e sacou-o no caixa, naufragando minha
conta nas profundezas vermelhas do cheque especial.
Eu – que estava em um dia
particularmente corrido, com a cabeça perdida em preocupações
– não percebi que estava sendo observado, nem tive o cuidado
de fazer o cheque nominal e cruzado, coisa que sempre faço.
Mais tarde, voltando da
delegacia – com minha fila de preocupações acrescida
de mais essa – pus-me a pensar sobre nossa vida civilizada, e
a compará-la com a vida na natureza.
Na natureza, os animais
vivem em permanente estado de perigo e alerta. Ao pastar, por
exemplo, mesmo de cabeças abaixadas, eles mantém
os ouvidos sempre atentos a qualquer alarme dos companheiros ou
qualquer barulho suspeito... Quando caminham, seus olhos inquietos
vão perscrutando cada sombra debaixo dos arbustos, cada
movimento por detrás das árvores... De onde menos
se espera pode surgir uma avalanche de garras e dentes e dar fim
às suas vidas...
Também nós,
homens e mulheres, vivíamos assim em tempos idos. Hoje,
graças à civilização, não precisamos
mais ocupar nossos sentidos em vigiar leões, leopardos
ou hienas (exceção talvez de alguns irmãos
africanos); hoje não precisamos dedicar nossas mentes a
cuidar do momento presente... Elas podem divagar por problemas
e abstrações distantes...
Mas será que isso
é mesmo uma vantagem?
Se tentarmos "contabilizar"
a vida em números, certamente concluiremos que sim. Vive-se
"mais" anos hoje, com "menos" doenças,
e por aí vai... Mas se olharmos para a "forma"
como vivemos, aí as coisas tornam-se menos óbvias...
Hoje não há
mais feras ao nosso redor, mas temos a cabeça sempre repleta
de todo o tipo de preocupações. No trabalho, pensamos
nos problemas da casa, no aumento do condomínio, no horário
de pegar os filhos na escola... Em casa, pensamos nas contas a
pagar, na reestruturação da empresa, nos relatórios
atrasados, no desemprego, no envelhecimento... tememos fantasmas
do presente, deliramos ambições do futuro, remoemos
frustrações do passado...
Questões abstratas
e ninharias cotidianas solicitam-nos tanto, que quase não
notamos a vida de verdade que acontece à nossa volta: as
plantas que nascem, crescem e morrem, o céu estrelado que
muda a cada noite, os animais que correm e voam cheios de disposição,
nossos próprios parentes com suas alegrias e dores, nosso
próprio corpo que vai perdendo a vitalidade...
A vida parece acontecer
fora de nós... nos computadores dos bancos, na televisão,
nas reuniões de nossos chefes, e tudo vai passando, passando,
como se apenas assistíssemos.
Não. Não
precisamos mais nos preocupar com os leões, mas ainda temos
feras que nos perseguem. Feras ardilosas e pertinazes, contra
as quais não adianta estarmos alertas, nem apurarmos olhos
e ouvidos. Feras que nos atacam por dentro e não são
detectadas por nossos sentidos... Feras que nos afastam do momento
presente... Feras abstratas, que vão tornando nossas vidas
também abstratas...
Eu tenho a experiência
– e não sei se o leitor concorda comigo – de que nenhum
problema ou tarefa é perturbador, desde que possamos nos
dedicar exclusivamente a ele. Um carro quebrado, por exemplo,
não é nenhum incômodo quando nos ocupamos
em consertá-lo. Mas é algo desesperador quando pensamos
no banco que está fechando. O mesmo vale para o trabalho
no escritório, as tarefas caseiras ou qualquer outra coisa.
A situação enlouquecedora é estar resolvendo
um problema e simultaneamente preocupando-se com outro.
Qual de nós, no
mundo moderno, pode se dar ao luxo de pensar exclusivamente no
que está fazendo a cada momento?
Parece-me que isso é
privilégio dos seres selvagens, com seus inimigos de carne
e osso...
É nessas horas que
eu me pergunto se realmente ganhamos algo com a civilização...
Mas, enfim, voltando aos
cheques. Já que não estamos mais alertas às
feras carnívoras, estejamos alertas a nossos irmãos
civilizados! Homo homini lupus. Emitamos somente cheques
nominais e cruzados, escritos com caneta esferográfica
grossa; reescrevamos o valor no verso; e peçamos ao recebedor
para não entregá-lo a terceiros!
André
C S Masini
O autor é
Auditor Fiscal da Receita Federal e Escritor
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