O texto literário
é como uma garrafa atirada ao mar. Ele deixa o aconchego
das mãos que o criaram, e mergulha na fria corrente de
indiferença, que é o mundo; é arrastado
pela imensidão impassível dos oceanos, perde-se
na infindável apatia das calmarias, é castigado
pelas tormentas do implacável desprezo...
Mas, em um
dia qualquer, acaba sendo encontrado pelas mãos de outro
ser humano... talvez na praia vizinha, talvez no outro lado
do planeta.
E essas mãos
recolhem a garrafa, abrem-na, compreendem-na, decifram-na...
e a garrafa e o texto revivem para a luz... E, assim, toda a
viagem, todos os mares, todo o sacrifício... afinal valeram
a pena.
Na alma que
encontrou a garrafa, o texto é recriado... E o texto
se transforma num elo de compreensão entre as almas e
os corações do leitor e do autor. Leitor e escritor
são os dois lados de uma realidade etérea que
somente eles dois compreendem, e que é a Vida da obra
literária. O grito e os sentimentos da alma que escreveu
só podem ser ouvidos e entendidos pela alma que lê.
As emoções, as angústias, as idéias,
a mensagem... são quase impossíveis de explicar
a uma terceira pessoa.
Uma garrafa
atirada ao oceano... sem as mãos que a encontram, não
é uma mensagem, não são palavras; é
a amargura de palavras não ditas, de palavras sufocadas
e perdidas para a eternidade... Uma garrafa, sem as mãos
que a encontram, não tem sentido algum... é apenas
um ruído a mais, um resíduo a mais a poluir o
mundo.
Escrevi essas
linhas, meu caro leitor ou leitora, numa frágil tentativa
de mostrar a imensa importância que você tem, e
para agradecer.
A todos que
têm lido minha coluna em "O Paraná",
e especialmente a quem me tem enviado e-mails: obrigado! Sem
vocês, meus textos não seriam nada... apenas ruído.
* * *
Ao falar
desse assunto sério -- o encontro de duas almas através
da literatura -- recordei alguns episódios tragicômicos,
uns verdadeiros desencontros, que me aconteceram devido à
ignorância em um idioma.
Ao chegar
ao Equador para trabalhar, eu quase nada sabia de espanhol,
e muito menos das gírias equatorianas. Mal passara-se
uma semana, e lá estava eu em uma "confraternização"
de escritório, com a presença dos mais importantes
chefes e diretores, e onde involuntariamente eu me tornei centro
das atrações.
Um brincalhão
geólogo equatoriano chegou para mim (como fazia a todos
os recém-chegados) e ofereceu-me um cálice de
um líquido transparente, que dizia ser uma "bebida
local". Eu deveria "virar" o tal cálice.
Os olhares
maliciosos de todos os presentes fixaram-se em mim, e um silêncio
opressor encheu a sala.
Intimidado,
eu virei o cálice.
Um violento
arrepio sacudiu meu corpo, e uma onda de calor me subiu às
faces...
O tal líquido
era simplesmente... cachaça!
As pessoas
riam discretamente de minha reação.
Estimulado
pelo choque do álcool e aliviado por a "bebida local"
não ser nada do outro mundo, eu exclamei:
-- Pinga!
E a sala
explodiu em um estrondo de gargalhadas e gritos! As pessoas
se dobravam segurando os estômagos, vermelhas de tanto
rir... Mulheres ficaram constrangidas... A meu lado, o tal geólogo
fingiu puxar a calça e entornar o cálice dentro...
-- Não,
não é para a "pinga", berrava ele.
Foi assim
que eu aprendi que "pinga", por lá, é
nada menos que o órgão masculino.
Semanas mais
tarde, interrompi meu trabalho no mato para servir de guia a
uma distinta senhora brasileira, mãe de um diplomata
do BID, que, sabe-se lá por que, cismara de conhecer
o rio Coca.
Fomos de
jipe, junto com um "machetero" (abridor de caminhos
no mato) meu subordinado; um senhor de certa idade, sério
e respeitoso. Por toda a viagem, ele não dissera palavra;
mas subitamente se empolgou, virou-se para a senhora e falou:
-- Podemo-nos
entrar em la selva allá adelante para ver la "pica"
de don Lutcho.
A fina senhora
arregalou os olhos e pasmou.
Eu acudi,
explicando que "pica", por lá, queria
dizer "picada", "caminho no mato", e que
a "pica de don Lutcho" era um belo "caminho"
que don Lutcho havia aberto no mato, rico em orquídeas,
etc...
Mas a boa
senhora, por via das dúvidas, não quis ver não.
Quis é voltar para Quito imediatamente, e acho que até
hoje tem sérias desconfianças sobre nós.
A língua,
se manejada com insuficiente destreza, é como um garrafa
atirada para cima, que pode voltar sobre nossas cabeças.
O
autor é Escritor, Auditor Fiscal da Receita Federal
e Diretor Geral da Casa da Cultura.