Era uma brilhante
manhã de sol, e eu acabara de me sentar à mesa
do café. A velha empregada aproximou-se com olhar triste,
meia sem jeito, e contou-me que na calçada, diante de
nosso portão, havia um cãozinho caído.
Corri para
o portão, e lá estava ele. Era um Fox Paulistinha,
minha raça favorita. Respirava com dificuldade e não
esboçava qualquer reação ao ser tocado.
Exibia pavorosos sinais de maus-tratos, que prefiro não
descrever.
Entrei e
liguei para o veterinário. Ao voltar ao portão,
encontrei duas crianças: uma menina de uns 9 anos e um
menino de uns 6. Estavam sérios, com os olhos tristes
fixos no bichinho. Arfavam, como se suas respirações
pesadas ajudassem o corpo cansado do animalzinho a continuar
respirando. A presença delas ali foi para mim um grande
alívio.
É
surpreendente como -- nas questões realmente essenciais
da vida -- coisas terrenas como força, poder, idade,
e intelecto revelam-se insignificantes... A companhia daquelas
crianças, em toda sua fragilidade, teve mais valor para
mim do que se lá tivessem estado presidentes, reis, cientistas,
ou gênios da literatura.
Tem gente
que pensa, nestes tempos materialistas, que solidariedade
significa gente rica dar coisas para gente pobre. Mas
solidariedade é muito mais: uma imensa força
da natureza humana, que pode ser o bálsamo para as mais
profundas e mais essenciais feridas da alma. Muitas vezes, o
único bálsamo...
Na calçada
estávamos eu, o cãozinho e as duas crianças...
O veterinário
chegou, fez um breve exame no bicho, e, discretamente, deu-me
a entender que o caso era sem remédio...
Olhei para
as crianças num dilema: elas haviam escolhido estar ali
e tinham absoluto direito de saber a verdade. Mas eu era um
estranho para elas, e revelar-lhes cruamente o terrível
ato que iria ocorrer, talvez fosse rude demais...
Acabei pedindo
que fossem chamar sua mãe... que ela poderia ajudar,
etc... Elas partiram correndo.
O cãozinho
estava muito mal, já havia sofrido terrivelmente e era
quase um milagre que ainda estivesse vivo, que tivesse conseguido
andar até ali.. Ele havia gastado suas últimas
forças, seus últimos instantes, sua última
intuição... para chegar ao meu portão,
à minha casa...
O veterinário
foi claro: não havia nada a fazer senão sacrificá-lo
e abreviar sua agonia.
Pegamos o
cãozinho e o colocamos no carro. Quando íamos
partir, as crianças reapareceram, num carro, com sua
mãe, trazendo dois potinhos de plástico com comida
e água. Eu disse que o estávamos "levando",
sem maiores explicações. Despedi-me com um sorriso
amarelo, e nunca mais as vi. Guardo delas uma lembrança
afetuosa, de respeito e solidariedade.
Vida, morte...
chegadas, partidas...
Vinte anos
antes, em um dia ensolarado como aquele, eu pousara no aeroporto
de Quito, no Equador. Fora para trabalhar, mas chegara como
quem cai do céu, como uma criança que nasce para
um mundo novo. Tudo era novidade: a língua, os costumes,
as cidades, a selva. Aos poucos fui conhecendo aquele estranho
mundo, e ele se foi tornando meu lar, minha vida.
Após
um ano de intenso trabalho, eu estava tão habituado com
aquela vida, que parecia ter estado ali desde o início
dos tempos.
Depois, em
uma nova manhã ensolarada, eu e outro geólogo
voltamos àquele aeroporto para nos despedirmos de nosso
mentor, o "velho professor". Num instante ele estava
ali, como "sempre" estivera, e no instante seguinte
havia partido, para sempre.
Voltei do
aeroporto em silêncio, olhando pela janela do ônibus.
O dia continuava ensolarado, e a cidade continuava igual, mas
o professor já não estava lá para ver nada
daquilo...
Subitamente
me dei conta de que em breve eu próprio partiria, e também
não estaria mais ali, e que aquelas ruas e casas e selvas
tão familiares, aquela "minha vida", passariam
a ser apenas lembranças.
Partidas...
morte...
O veterinário
aplicou a injeção no coração do
cãozinho.
Em seu instante
final, ele saiu do torpor em que estava, enrijeceu-se e chorou
alto, com profundos e sentidos soluços que jamais esquecerei...
a impressão que tive foi que, apesar de todos sofrimentos
que padecera, ele lamentava partir desta vida... A tristeza
e a intensidade daquele momento foram imensas. Em minha alma
ficou gravada, para sempre, a idéia do apego que o cachorrinho
tinha à vida.
Morrer, dormir...
talvez sonhar...
Não
sei se ele levou lembranças... mas para ele essa dúvida
já não importa nem causa angústia.
A morte faz
parte da vida, parte dessa imensa e maravilhosa unidade que
é a natureza. Não há outra atitude razoável
senão aceitar e respeitar a morte, seja lá o que
ela for. E para nós que ficamos, resta o bálsamo
da solidariedade.
Voltei para
casa. O dia continuava brilhante e ensolarado, e todas as coisas
permaneciam como antes: o portão, a calçada, o
mundo... mas o cãozinho já não estava mais
aqui para ver tudo isso.
* * * * *
O
objetivo desse texto poderia ser apenas um reflexão sobre
a vida e a morte, mas é mais que isso.
Quando
vi aquele heróico cachorrinho -- mesmo irremediavelmente
doente e em imenso sofrimento -- chorar e soluçar por
ter que deixar este mundo, não pude deixar de pensar
nos milhares de outros, que gozam de plena saúde, mas
que são friamente assassinados em nosso nome, por entidades
do Estado Brasileiro, a cada semana.
Essa
foi a herança que o cãozinho deixou: um grito
de alerta para que nós, humanos, compreendamos a imensa
brutalidade que é essa matança.
Os
cães são os maiores companheiros e o maior presente
que a natureza nos deu. Eles nos amam incondicionalmente, sua
fidelidade é sólida como as mais profundas fibras
de suas almas de heróis (que sacrificam sem hesitação
suas vidas para defender seus donos), sua alegria e seu carinho
são lições que a cada dia nos ensinam a
ser melhores e a viver melhor...
Não
tenho idéia de o que fizemos para merecer tamanho presente...
Deveríamos
agradecer a Deus e à natureza esse presente, e mostrar
permanente respeito e carinho por esses seres infinitamente
alegres e amigos, e que amam tanto a vida, e que a cada dia
nos ensinam a amá-la também .
Mas,
ao invés disso, criamos "centros de controle de
zoonoses", as malfadadas "carrocinhas", que capturam
os cães pelas ruas e os assassinam com bestial frieza!
Às
vezes eu penso: o que, afinal, nossa espécie está
fazendo na Terra? aonde queremos chegar? Não nos contentamos
em estar destruindo cada um dos ecossistemas do planeta, não
nos contentamos em nos comportar como verdadeiros playboys mimados,
que -- sem qualquer consciência ou segundo pensamento
sobre o fato de existirem outros seres -- dilapidamos a herança
que a natureza nos deu, numa verdadeira orgia de inconseqüência.
Não. Além disso tratamos nossos melhores amigos,
os cachorros, como se fossem resíduos descartáveis,
não seres brilhantes e repletos de vida.
Vi
outro dia na TV um certo professor da USP afirmando que a hostilidade
da população contra a carrocinha é devida
à "ignorância", pois a população
não sabe que os cães podem (sic) "causar
doenças". Pobre criatura vaidosa. Do alto de seu
pedestal, ele nem sequer cogita a hipótese de que o ignorante
possa na verdade ser ele próprio. A tal "população",
as pessoas, pode perfeitamente saber da possibilidade de um
cão transmitir uma doença -- bem como da possibilidade
de outro ser humano transmitir uma doença -- mas nem
por isso precisam acreditar que se deve sair por aí praticando
extermínios.
O
sábio professor nem percebe que seu raciocínio
brota do mesmo campo de onde brotaram as maiores monstruosidades
da história humana. A mente dissociada do coração
é um mecanismo defeituoso e pervertido, que pode levar
para absolutamente qualquer direção e fazer estragos
sem qualquer limite. Não existe nada mais ignóbil
do que a pseudo-sabedoria, que tenta mostrar a "lógica"
de atos monstruosos através de argumentos "científicos",
mas sem discutir os aspectos éticos da questão.
A
solução para o problema da carrocinhas, porém,
não é de modo algum hostilizar os funcionários
da carrocinha, muitos dos quais também sofrem com a matança
dos animais. A solução é exigir dos políticos
que a matança seja proibida por lei, e seja substituída
por programas de esterilização e adoção,
como muitos que já existem em curso.
O
autor é Escritor, Auditor Fiscal da Receita Federal
e Diretor Geral da Casa da Cultura.
NOTA: Este artigo
em conjunto com
“A Carrocinha”
foi republicado no Jornal O VIRA-LATA, do nobilíssimo
CLUBE
AMIGOS DOS ANIMAIS de
Santa Maria, RS (número 5, Setembro
de 2008). Para mim, ter tido contato, mesmo que indireto e distante,
com as pessoas desse Clube, foi uma imensa alegria e honra,
e ver meu texto em seu Jornal uma grande realização.
O romancista Léon Tolstoi escreveu “Ao homem ou
mulher que almeja uma vida digna, o primeiro voto deve ser o
de não maltratar qualquer animal” **, se o amigo
leitor ou leitora já visitou alguma associação
de amigos de cães ou outros animais, e experimentou ter
oferecido algo de si a esses nossos companheiros de planeta,
mesmo algo muito pequeno, certamente sentiu uma alegria diferente,
difícil de descrever, uma espécie de calor interior,
de calor na alma... Foi um pouco desse calor na alma que eu
senti ao ter em minhas mãos o belíssimo exemplar
de O VIRA-LATA - Jornal de um grupo de pessoas que faz a diferença
entre a vida e a morte para alguns animais - e ver nele meu
insignificante texto. Desse contato recebi rejuvenescimento
e arejamento, como uma onda de VIDA e DIGNIDADE, que veio dessas
pessoas que se dedicam a tão nobre causa. Se o amigo
leitor ou leitora jamais visitou alguma associação
do tipo, eu lhe diria para não perder tempo... esse calor,
essa alegria... é uma das poucas dádivas genuinamente
boa e valiosa que a vida nos oferece.
Por tudo isso,
aos Amigos dos Animais de Santa Maria, meu Muito Obrigado!!
www.clubeamigosdosanimais.com.br/
Diretório
Brasileiro de Entidades de Adoção de Cães
e outros Animais
Por
quê cães adotados são mais saudáveis
que os comprados de um canil?
André
Masini, 2009
** [ Tradução Livre a partir do Inglês:
“If a man aspires towards a righteous life, his first
act of abstinence is from injury to animals” : Literalmente
“Se um homem almeja buscar uma vida correta, seu primeiro
ato de abstinência é a de ferir animais”.
Nota: Na época, a “abstinência” era
genericamente e amplamente vista como uma atitude virtuosa.
]