De olhos fixos, Deuses e homens
acompanhavam as passadas firmes do Herói, que seguia
avançando. Vanderlei Cordeiro de Lima -- como Aquiles
abrindo espaço entre as hostes troianas, como Ulisses
rompendo os obstáculos do caminho -- avançava
sobre Atenas, abrindo imensa distância sobre seus rivais.
Feito inimaginável!
Ele iniciara
a prova ignorado por seus próprios compatriotas: "O
Brasil encerra sua participação conquistando o
ouro no vôlei," haviam anunciado as TVs, horas antes.
Medalha na maratona?
Para o Brasil? Que isso, Maratona Olímpica é sonhar
alto demais...
E é verdade
que, para um atleta brasileiro, ter chegado até aquela
prova já era um triunfo. Antes da própria maratona,
ele tivera que vencer a falta de apoio público, de patrocinadores,
de condições para treinar, de suporte médico,
psicológico, falta de quase tudo, inclusive de suficiente
reconhecimento pelas tantas vitórias já conquistadas.
Mas Vanderlei chegara lá, assim como os outros abnegados
de nosso atletismo.
Ele, porém,
trazia no peito aspirações maiores do que nossa
imprensa e todos nós podíamos sonhar. Por muito
tempo, longe do foco dos noticiários, ele havia se preparado
com grande seriedade para um único objetivo: vencer aquela
prova.
Assim, quando
Vanderlei irrompeu do meio da massa dos adversários e
avançou sozinho no caminho da vitória, o mundo
inteiro ficou atônito, principalmente o Brasil. Era uma
glória impensável. Vencer no berço das
olimpíadas, no berço da civilização
ocidental, vencer repetindo os passos lendários de Fidipides,
e vencer de forma avassaladora, com imensa distância sobre
os demais competidores...
E lá ia
ele, a caminho da imortalidade, do Olimpo... quando o inadmissível
acontece: surge um boçal que invade o asfalto, agarra-o
e arrasta-o para fora da pista.
Ao ver aquilo,
meu peito queimou de ultraje e indignação. Como
podia a organização grega permitir aquilo com
o líder da maratona?! Aonde estava a tão
falada "segurança"? Será que "segurança"
agora significa apenas impedir que algum árabe faça
algo contra algum estadunidense? Não seria também
"segurança" proteger as pessoas contra bárbaros
britânicos, como esse ou como os que mataram 39 pessoas
na final da copa da UEFA em 1985? Ou estarão eles agora
imunes, por não serem os inimigos da vez dos EUA?
Mas o pior foi
a expressão de desespero no rosto de Vanderlei ao ver
o sujeito se aproximar. Após tanto sacrifício
e o esforço! 36 quilômetros sob aquele calor, anos
de sofrido treinamento, uma vida voltada para aquele grande
sonho...
Desespero, pois
um ataque do gênero tira do atleta qualquer condição
prática de seguir em frente -- não apenas pelo
tempo perdido, ou pelo esforço extra sobre os músculos,
ou pelo cansaço extra (lutar cansa mais que correr) --
tal ataque é devastador principalmente por seu impacto
psicológico, por quebrar ritmo e concentração
numa prova de terrível desgaste como a maratona.
A revolta por
aquela injustiça dominou meu espírito. Deveriam
interromper a prova imediatamente! O Brasil deveria melar a
maratona, retirar-se dos jogos, devolver todas as medalhas.
As olimpíadas que fossem pro inferno...
Mas, para minha
imensa surpresa, Vanderlei continuou em frente (pondo a mão
na coxa, que doía). Acabou sendo ultrapassado por 2 oportunistas,
mas continuou correndo, e, na chegada, ao invés de protestar,
festejou fazendo aviãozinho!
Que imensa lição
ele deu a mim! Sua vontade de seguir em frente, dando o melhor
de si, foi maior que a revolta, mesmo ao lhe roubarem a glória
inimaginável de entrar sozinho no estádio olímpico!
Que lição de superação! Que lição
para este mundo, tão insuflado de ódio e intolerância
pelo arrogante moleque G. Bush!
Independente,
porém, da nobreza do herói, a verdade é
que a vitória lhe foi roubada! E o mínimo que
os juízes tinham que ter feito era conceder-lhe a medalha
de ouro e o título de campeão olímpico.
Mas o presidente Jacques Rogge, cinicamente, preferiu fingir
que tudo estava bem, e congratular a organização
grega pelos "jogos dos sonhos".
Sonhos e cinismo
à parte, Vanderlei é o verdadeiro campeão
da Maratona, e a justiça só será feita
no dia em que isso for oficialmente reconhecido.
Parabéns
Vanderlei, você é o campeão, herói
do Brasil e inspiração para o mundo. Cala tudo
o que Camões ou Homero canta, que um brasileiro mais
alto se alevanta.
O
autor é Escritor, Auditor Fiscal da Receita Federal
e Diretor Geral da Casa da Cultura.