O PENICO E A ARTE*
Antes de virar as costas,
Tininho lançou um último olhar para sua velha casa
e para sua mãe, que chorava na soleira. Caminhou pela rua
de chão batido, seguido por amigos que faziam seresta e
que se despediram logo adiante.
Partiu de seu bairro, partiu
de Belo Horizonte... partiu Brasil afora, levando apenas a mochila,
o violão e o desejo de mergulhar no mundo e na vida...
Era o ano de 1974, e ele acabara de completar 20 anos.
A estrada reserva surpresas
e decepções para quem nela se aventura, e com Tininho
não foi diferente. No início ele foi se arranjando,
tocando na rua, conseguindo aqui e ali alguma comida e lugar para
dormir. Quis porém o destino que ele acabasse numa cidadezinha
entre Goiás e Bahia, lugar pobre, cercado por um areial
sem fim, onde crescia um cerrado baixo e seco, que se estendia
plano para todos os lados, até onde a vista alcançasse.
Ali vivia um poderoso coronel,
temido em toda a região por seu péssimo gênio;
de humor tão terrível, que não havia quem
dele se aproximasse sem sentir amolecer as pernas. O homem detestava
qualquer tipo de música; de banda militar até coro
de igreja, para ele era tudo "porcaria"; e de todas as "porcarias"
a pior eram os "vagabundos com violão debaixo do braço":
"Eu inda amarro um cabra desses num pau de aroeira e dou-lhe com
gato morto na cara até o gato miá...... quero ver
se não toma jeito e larga de incomodar..."
O povo da cidade estava
mais que avisado. Era só o coronel apontar no fim da rua
que os rádios e vitrolas eram imediatamente desligados
e todos se calavam...
Tininho chegou no ônibus
do meio-dia, desceu inocente, como pinto saído do ovo.
Deu uns passos incertos pela praça e acabou parando diante
da igreja. Sentou-se no banco debaixo da mangueira, tirou a viola
do saco e pôs-se a tocar, em plena luz do dia.
Uma agitação
silenciosa percorreu a praça. Os olhos inquietos passavam
do violeiro para o início da rua, de onde o coronel poderia
surgir a qualquer momento. Em volta de Tininho formou-se um círculo
invisível, onde ninguém entrava.
As horas foram passando,
e a expectativa crescendo. Uns sentiam simpatia pelo moço
e torciam para que o coronel não surgisse, outros mal podiam
esperar pela cena... Mas o dia acabou, e o coronel não
apareceu.
Longamente, Tininho tocou
sozinho. Depois se aborreceu, levantou-se e tentou puxar conversa
com as pessoas, mas foi ignorado. Seguiu perambulando pelas ruas,
com fome e cansaço cada vez maiores, lamentando ter caído
naquele fim de mundo. Por fim, sentou-se na calçada, sem
fazer idéia de que estava bem debaixo da janela do coronel.
Decidiu dormir ali mesmo e pegar o primeiro ônibus da manhã
seguinte.
Horas depois, para se distrair,
resolveu tocar uma musiquinha obscena: paródia de Luar
do Sertão:
– Não há
coisa melhor/ do que ca...
no urinol/ a gente senta bem na beira do penico/ senta pobre,
senta rico, deputado, senador,/ depois faz força, engrossa
a veia do pescoço/ ca..
fino, ca..
grosso, ca..
até o sol se pôr.
Ao ouvir aquilo, as pessoas
dentro da casa sentiram um frio na espinha e se encolheram aguardando
a explosão de fúria do coronel... Pobre músico!
Mas então veio a
surpresa...
Meses antes, o coronel
havia se hospedado na casa de um político em Brasília;
casa suntuosa, com os banheiros recobertos de espelhos. Lá,
ao sentar-se para fazer as necessidades, o coronel assustara-se
com o que vira no espelho. Tendo sido criado sob rígida
disciplina moral, ele jamais havia presenciado uma pessoa praticando
aquele ato tão humano. Mas ali, no espelho, ele vira o
próprio rosto ficar roxo, as veias se dilatarem... Hipocondríaco,
logo imaginara estar possuído de terrível e mortal
doença... pressão intestinal arrebatadora, dejeção
explosiva, ou algo ainda pior...
Ele saíra do banheiro
pálido, desculpara-se e partira sem terminar o jantar.
Voltara para sua cidadezinha e isolara-se em casa para esperar
a morte. Continuava nessa situação até aquela
noite em que Tininho aparecera...
Nessa noite, quando a porta
do quarto do coronel se abriu, os empregados, apavorados, esperaram
pelo pior. Lá fora, a música continuava. Mas no
rosto do coronel, ao invés de fúria, havia um sorriso.
Pela música, ele havia entendido que, quando um homem está
fazendo aquilo, é normal as veias se engrossarem.
-- Mas que música excelente! Que beleza!
Isso sim é arte!
Tininho foi convidado a
entrar e recebido como um príncipe... E o povo da cidade
está até hoje tentando entender o que aconteceu.
*
Na versão impressa o artigo saiu com o título "O
Coronel, o Penico e a Arte".
André
C S Masini
O autor é
Auditor Fiscal da Receita Federal e Escritor
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