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Índice Artigos de André Masini

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Artigo de André Masini publicado no Jornal O Paraná em 28/Jan/2004


O PENICO E A ARTE*

Antes de virar as costas, Tininho lançou um último olhar para sua velha casa e para sua mãe, que chorava na soleira. Caminhou pela rua de chão batido, seguido por amigos que faziam seresta e que se despediram logo adiante.

Partiu de seu bairro, partiu de Belo Horizonte... partiu Brasil afora, levando apenas a mochila, o violão e o desejo de mergulhar no mundo e na vida... Era o ano de 1974, e ele acabara de completar 20 anos.

A estrada reserva surpresas e decepções para quem nela se aventura, e com Tininho não foi diferente. No início ele foi se arranjando, tocando na rua, conseguindo aqui e ali alguma comida e lugar para dormir. Quis porém o destino que ele acabasse numa cidadezinha entre Goiás e Bahia, lugar pobre, cercado por um areial sem fim, onde crescia um cerrado baixo e seco, que se estendia plano para todos os lados, até onde a vista alcançasse.

Ali vivia um poderoso coronel, temido em toda a região por seu péssimo gênio; de humor tão terrível, que não havia quem dele se aproximasse sem sentir amolecer as pernas. O homem detestava qualquer tipo de música; de banda militar até coro de igreja, para ele era tudo "porcaria"; e de todas as "porcarias" a pior eram os "vagabundos com violão debaixo do braço": "Eu inda amarro um cabra desses num pau de aroeira e dou-lhe com gato morto na cara até o gato miá...... quero ver se não toma jeito e larga de incomodar..."

O povo da cidade estava mais que avisado. Era só o coronel apontar no fim da rua que os rádios e vitrolas eram imediatamente desligados e todos se calavam...

Tininho chegou no ônibus do meio-dia, desceu inocente, como pinto saído do ovo. Deu uns passos incertos pela praça e acabou parando diante da igreja. Sentou-se no banco debaixo da mangueira, tirou a viola do saco e pôs-se a tocar, em plena luz do dia.

Uma agitação silenciosa percorreu a praça. Os olhos inquietos passavam do violeiro para o início da rua, de onde o coronel poderia surgir a qualquer momento. Em volta de Tininho formou-se um círculo invisível, onde ninguém entrava.

As horas foram passando, e a expectativa crescendo. Uns sentiam simpatia pelo moço e torciam para que o coronel não surgisse, outros mal podiam esperar pela cena... Mas o dia acabou, e o coronel não apareceu.

Longamente, Tininho tocou sozinho. Depois se aborreceu, levantou-se e tentou puxar conversa com as pessoas, mas foi ignorado. Seguiu perambulando pelas ruas, com fome e cansaço cada vez maiores, lamentando ter caído naquele fim de mundo. Por fim, sentou-se na calçada, sem fazer idéia de que estava bem debaixo da janela do coronel. Decidiu dormir ali mesmo e pegar o primeiro ônibus da manhã seguinte.

Horas depois, para se distrair, resolveu tocar uma musiquinha obscena: paródia de Luar do Sertão:

– Não há coisa melhor/ do que ca... no urinol/ a gente senta bem na beira do penico/ senta pobre, senta rico, deputado, senador,/ depois faz força, engrossa a veia do pescoço/ ca.. fino, ca.. grosso, ca.. até o sol se pôr.

Ao ouvir aquilo, as pessoas dentro da casa sentiram um frio na espinha e se encolheram aguardando a explosão de fúria do coronel... Pobre músico!

Mas então veio a surpresa...

Meses antes, o coronel havia se hospedado na casa de um político em Brasília; casa suntuosa, com os banheiros recobertos de espelhos. Lá, ao sentar-se para fazer as necessidades, o coronel assustara-se com o que vira no espelho. Tendo sido criado sob rígida disciplina moral, ele jamais havia presenciado uma pessoa praticando aquele ato tão humano. Mas ali, no espelho, ele vira o próprio rosto ficar roxo, as veias se dilatarem... Hipocondríaco, logo imaginara estar possuído de terrível e mortal doença... pressão intestinal arrebatadora, dejeção explosiva, ou algo ainda pior...

Ele saíra do banheiro pálido, desculpara-se e partira sem terminar o jantar. Voltara para sua cidadezinha e isolara-se em casa para esperar a morte. Continuava nessa situação até aquela noite em que Tininho aparecera...

Nessa noite, quando a porta do quarto do coronel se abriu, os empregados, apavorados, esperaram pelo pior. Lá fora, a música continuava. Mas no rosto do coronel, ao invés de fúria, havia um sorriso. Pela música, ele havia entendido que, quando um homem está fazendo aquilo, é normal as veias se engrossarem.

--    Mas que música excelente! Que beleza! Isso sim é arte!

Tininho foi convidado a entrar e recebido como um príncipe... E o povo da cidade está até hoje tentando entender o que aconteceu.

* Na versão impressa o artigo saiu com o título "O Coronel, o Penico e a Arte".

André C S Masini

O autor é Auditor Fiscal da Receita Federal e Escritor

 

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