Desde
a aurora dos tempos, escritores têm procurado definir
a hipocrisia:
"O
homem é único animal que consegue se manter em
atitude amistosa com a vítima que tenciona devorar, até
devorá-la." (Samuel Butler).
"Eu
me sento sobre as costas de um homem, sufocando-o e obrigando-o
a me carregar, mas garanto que desejo aliviar seu sofrimento
por qualquer meio possível -- exceto sair de suas costas."
(Tolstoi).
Hoje,
porém, todo esse acervo literário parece ultrapassado,
pois George Bush está conseguindo realizar, na prática,
aquilo que a mais sinistra ficção ousara somente
imaginar: "Eu falo de paz, enquanto minha oculta hostilidade,
dissimulada sob um sorriso de segurança, flagela o mundo."
(Shakespeare).
A
catástrofe do Iraque surgiu unicamente da vontade de
Bush. Ele buscou a guerra obstinadamente, por todos os meios
possíveis. Fez-se de surdo aos inspetores da ONU, que
afirmavam não haver armas de destruição
em massa; surdo aos apelos do mundo, que pedia diplomacia. Fez
chantagem, ameaçou países,
apresentou provas forjadas...
Reveladora
é a frase que o sutil Secretário de Defesa, Donald
Rumsfeld, deixou escapar no início da guerra: "Se
essa gente (os iraquianos) fosse minimamente racional, eles
simplesmente deporiam suas armas." Ou seja, diante da esmagadora
superioridade bélica estadunidense, seria "ilógico"
para os iraquianos morrer lutando.
De
um ponto de vista estritamente matemático, Rumsfeld tinha
razão. Em um raciocínio frio e "contábil",
para os iraquianos seria mais "racional " deixar os
estadunidenses invadir e tomar conta do petróleo, deixar
a Halliburton apoderar-se das obras... Seria mais "lógico"
ceder, que morrer enfrentando uma força infinitamente
maior que eles próprios.
Se
os homens fossem máquinas, e no lugar do coração
tivessem pedras, e no lugar de almas tivessem só ganância
e covardia, Rumsfeld e Bush teriam acertado. Mas erraram ao
julgar os outros por si próprios. A verdade é
que o ser humano raramente é "lógico",
e a vida não pode ser "calculada" como uma
planilha de contabilidade. Por mais "irracional" que
pareça ao senhor Rumsfeld, um ser humano muitas vezes
prefere a morte do que ceder a um conquistador poderoso e arrogante.
Mas,
em um ponto, Bush estava certo. Se a guerra realmente tivesse
sido como ele esperava, todos seus pecados teriam sido perdoados:
As mentiras, esquecidas. A reeleição, garantida.
O butim de sua quadrilha, bilionário; e ninguém
se lembraria dos milhares de inocentes mortos. Seriam apenas
cinzas no limbo da História, como tantas outras barbaridades
esquecidas.
Mas
a guerra reservava surpresas. Hoje, diante do crescente amontoado
de cadáveres estadunidenses, que faz Bush? Simplesmente,
coloca a culpa no serviço secreto.
Pobre
Bush, foi "levado" a declarar guerra...
Para
coroar a hipocrisia, surge o escândalo da tortura de prisioneiros
iraquianos.
Bush
se mostra indignado, aponta o dedo para seus míseros
soldados, e promete puni-los. Mas a verdade, por trás
dessa encenação, é outra.
A
história começou em 2002, quando Bush (sim, ele
próprio) "decretou" que as Convenções
de Genebra não se aplicariam a "certos" prisioneiros
dos EUA. Que algumas autoridades estadunidenses poderiam, num
clicar de dedos, decidir que certa pessoa simplesmente não
teria mais direito a qualquer proteção legal.
Bastaria pronunciarem a palavra mágica, "terrorista",
e poderiam fazer com a pessoa o que bem entendessem.
As
conseqüências disso foram mostradas exaustivamente
na TV: os tais prisioneiros sem direito à proteção
das Convenções de Genebra, os párias da
humanidade, sendo humilhados, com sacos na cabeça, arrastados,
jogados em buracos incomunicáveis... no Afeganistão,
Guantánamo, Iraque...
Os
próprios EUA admitiram "métodos agressivos
de interrogatório", "privação
de sono", "suicídios". Mas Bush considerava
tudo isso "perfeitamente legal" (isso
foi denunciado até aqui mesmo, nesta coluna, em 09/04/2003).
Então,
surgem as imagens das torturas no Iraque, e Bush (pasmem) finge
enorme surpresa!
Mas,
afinal, qual é a novidade?
Bush
deveria tentar explicar aonde exatamente acaba sua "legalidade",
e onde começam os "crimes" de seus soldados
torturadores.
Henrique
IV? Ricardo III? Iago? Qual nada!
Cala
tudo o que o antigo Shakespeare canta, que outro patife mais
falso se alevanta!
O
autor é Escritor, Auditor Fiscal da Receita Federal
e Diretor Geral da Casa da Cultura.