Certa vez, passando diante
de uma banca de jornais na cidade de São Paulo, eu deparei
com a seguinte manchete:
"Bicha explode no ar!"
Aquilo me pareceu tão
assombroso, que não pude evitar me misturar ao bolo de
pessoas paradas que liam os jornais expostos.
A manchete era um tablóide
sensacionalista, já extinto, chamado Notícia
Popular, mas bastavam duas linhas da matéria para
entender que, obviamente, ninguém tinha "explodido no
ar".
Ao lado do NP,
o sóbrio Estadão tratava do mesmo fato
sob o título: "Cabeleireiro ameaça a tripulação
em vôo comercial." A matéria dizia: "Fulano de
tal, 29 (...) sofreu uma crise nervosa no vôo tal e ameaçou
perfurar uma lata de laquê, o que, segundo ele, causaria
a explosão do avião (...) foi preso e depois liberado..."
À parte o incrível
exemplo de como uma mesma história pode ser noticiada
e contada de maneiras distintas, o caso me chamou a atenção
por outro aspecto. Eu me pus a imaginar o que teria passado
na cabeça das pessoas, fechadas numa lata com centenas
de outras, a vários quilômetros de altura, assistindo
alguém ameaçar explodir tudo com um spray de laquê...
Pareceu-me até
engraçado... Até que, anos depois, eu passei por
situação semelhante:
Eu tentava voltar de
Fortaleza para São Paulo, por uma das recém criadas
empresas aéreas econômicas...
Às duas da manhã,
depois de cinco horas de atraso, as pessoas na fila para o embarque
pareciam um grupo de refugiados de alguma catástrofe:
abatidos, exaustos e com os nervos à flor da pele. Durante
todo o tempo que esperáramos ali, não havíamos
visto um único funcionário da companhia, até
que de repente apareceu um homem com chapeuzinho de aviador
(seria ele o próprio piloto?) e, sem dizer palavra, abriu
a porta soltando a manada para disputar o embarque no tapa.
Apesar do corre-corre
e do empurra-empurra, acabamos todos dentro do avião,
ainda bufando de impaciência, mas ao menos aliviados por
termos conseguido embarcar. Parecia que chegaríamos em
casa...
A comissária (sim,
havia uma) deu a famosa ordem para "colocar os encostos na posição
vertical"... e foi aí que tudo começou:
De meu lugar, pude ver,
pouco atrás, uma senhora lutando com a própria
poltrona. Quando entendeu que a poltrona não pararia
mesmo na vertical, ela ergueu-se, os olhos desvairados, e, com
o avião já na pista, gritou para a comissária:
-- Pare o avião!
Eu vou procurar outra cadeira! Não decole até
eu dar ordem!
(Para muitos, depois
de cinco horas de espera, aquilo pareceu um insulto.)
Mas a comissária
fingiu não ouvir, e o avião decolou, enquanto
a mulher equilibrava-se pelo corredor e sumia em direção
à calda.
Lá da frente nós
não vimos nada. Mas quando a mulher chegou à única
outra cadeira livre do avião, e descobriu que aquela
também estava quebrada... ela entrou em pânico!
Ao pousarmos na escala
em Recife, ela reapareceu discursando no corredor, ordenando
a todos que descessem e exigindo que o avião ficasse
no solo até que se fizesse uma revisão completa.
Aos trambolhões
ela saiu, e eu ouvi um funcionário na escada explicando
a ela que só haveria lugar em outro vôo daí
a três semanas.
Torci para que a mulher
não voltasse, mas, meia hora depois, quando a porta do
avião se fechava, ela reapareceu, esgueirando-se pela
última fresta. Continuou berrando sobre o risco daquele
vôo. Os passageiros apenas resmungaram entre dentes.
Mas aí o avião
se pôs em movimento, e, como por mágica, a mulher
sentou-se e aquietou-se.
Tudo acabara bem: seguíamos
a caminho de casa, e a mulher se calara.
Mas aí, surpreendentemente,
os outros passageiros, aqueles inofensivos cidadãos que
só queriam voltar pra casa, resolveram se manifestar.
O curioso é que,
enquanto a mulher esbravejava ameaçadoramente, ninguém
falara nada; mas, agora que se aquietara, passavam a zombar
dela, com comentários em voz alta, risadinhas maldosas,
e até ficando de joelhos na poltrona para encará-la.
Um jovem advogado a ridicularizava em jargão jurídico,
uma adolescente a fitava e ria, parecendo estar num êxtase
de alegria.
A infeliz se encolhera
na poltrona e ouvia a tudo quieta, como um animal assustado.
Não que eu achasse
que ela não houvesse errado, muito menos que as pessoas
não devam responder por seus atos. Acho até que,
houvesse a cena se prolongado, teria sido correto que a tripulação
a retirasse do avião. Mas algo muito diferente é
alguém se valer de uma situação como essa
para, covardemente, exercer seu sadismo.
Quando o avião
pousou, um homem fez um incompreensível discurso, acusando-a
entre outras coisas de ser "atéia"... e todos aplaudiram
histericamente...
Já era demais!
A meu lado, um distinto
senhor negro, que não dera um pio a viagem toda, balançou
a cabeça em desaprovação.
De algum lugar, veio
a voz de um jovem homossexual:
-- Cheeega gente!
Mas não chegou.
Uma hora depois, quando
a mulher pegava o táxi diante de mim, ainda havia um
jovem zombando dela.
Naquela noite, a bicha
explodira no ar!
A bicha da maldade humana,
que serpenteia pelos subterrâneos e cloacas dos corações
e espreita escondida no silêncio das trevas... apenas
para vir à tona explosivamente, quando lhe dão
oportunidade.