No sombrio e clássico
livro 'I am Legend', o escritor estadunidense Richard Matheson
conta uma história arrepiante, que é uma lição
de autoconsciência:
Em uma Terra tomada por
seres noturnos, que sugam o sangue dos humanos e os transformam
em seres iguais a eles, surge um homem chamado Robert, que resolve
assumir sozinho a tarefa de salvar a humanidade. Ele passa os
dias caçando as criaturas e as massacrando por todos
os meios imagináveis. A matança é narrada
com riqueza de detalhes e abundância de sangue e violência.
No início do livro,
essa carnificina é aplaudida pelo leitor. Afinal Robert
está lutando por "nós" e exterminando "eles".
O leitor não hesita; não pára para questionar
se o massacre das criaturas -- adultas e crianças, machos
e fêmeas, velhas e moças, de todos os feitios imagináveis
-- se o massacre é correto ou ético.
Se o livro acabasse assim,
estaríamos apenas diante de mais uma história
banal, dessas que Hollywood tanto gosta, onde um "inimigo" é
criado e caracterizado apenas para servir de objeto ao ódio
dos espectadores e para depois ser trucidado, dando vazão
à agressividade coletiva num ritual catártico.
Mas a história
vai muito além. A luta de Robert é apenas o cenário
e a armadilha que o autor cria para chegar à verdadeira
mensagem.
A cada dia o "salvador"
tem menos humanos para "salvar", mas ele persiste em sua missão
de extermínio, com a mesma tenacidade de antes. O leitor
aos poucos vai percebendo que já não existe nenhuma
batalha: Robert é o último humano...
Surge então a
perturbadora pergunta: Quem, afinal, é o monstro?
As criaturas querem simplesmente
viver suas vidas... mas subsistem sob a permanente ameaça
de um assassino obcecado...
E isso é o que
Matheson tenta nos mostrar: a dramática e perigosíssima
diferença de perspectiva que existe entre o "nós"
e o "eles".
Nessa diferença
está a raiz de todo ódio e intolerância
que devastam a humanidade desde que ela existe.
Terríveis explosões
abalaram Madri no último dia 11. Pessoas inocentes foram
chacinadas: homens, mulheres, crianças, velhos... Como
pode alguém fazer tamanha barbaridade?
Pois essa tragédia
é apenas mais uma demonstração de nossa
infame capacidade de desumanizar o "eles". Para quem preparou
aquelas bombas, as vítimas não eram homens, mulheres,
crianças... eram simplesmente "eles".
O grande etologista e
pensador Konrad Lorenz elucidou os elementos da natureza humana
que são a chave para nossa capacidade destrutiva e cuja
compreensão é nossa única esperança
de um dia melhorarmos.
Lorenz mostra que a agressividade
é inata ao ser humano e que pode facilmente ser redirecionada
para qualquer objeto externo. Mostra que temos tendência
ao comportamento de "tribo" ou "manada": identificarmo-nos com
os membros de "nosso grupo" e coletivamente agredirmos o " grupo
contrário". E, pior, mostra que quanto mais forte a agressividade
contra o " grupo contrário", mais forte são os
laços de amizade dentro de "nosso grupo".
Sigmund Freud, por métodos
distintos, chega a conclusões idênticas: "A
vantagem que um grupo cultural obtém concedendo a esse
instinto (agressão) um escoadouro sob a forma de hostilidade
contra intrusos, não é nada desprezível.
É sempre possível unir um considerável
número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas
para receberem as manifestações de sua agressividade."
E é isso que somos:
seres capazes de imensa solidariedade para com aqueles que julgamos
similares a nós, e de cega indiferença (ou ódio)
para com aqueles que imaginamos diferentes.
Os tiranos de todos os
tempos têm manipulado massas ao canalizar sua agressividade
para um objeto externo. A única coisa que muda é
o "critério" (étnico, religioso, político...)
para identificar quem são os "eles": troiano, cartaginês,
herege, ateu, negro, índio, não-ariano, burguês,
comunista, reacionário, judeu... e, ultimamente, "terroristas"
e "cruzados".
É cômodo
acreditar que o mal está nos outros, "neles", fora de
nós próprios. O trágico é que, quanto
menos enxergamos o mal em nós, mais propensos ficamos
a "exterminar" o mal que vemos nos outros.
Se houvesse um espelho
em que cada homem pudesse ver sua própria alma, certamente
os responsáveis pelas bombas em Madri não as teriam
colocado, os estadunidenses que bombardearam Bagdá não
o teriam feito, o Azn(o)ar não teria arrastado a Espanha
para a guerra... e toda a história humana teria sido
diferente.
O
autor é Escritor, Auditor Fiscal da Receita Federal
e Diretor Geral da Casa da Cultura.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS:
Parágrafos 1 a 9: MATHESON,
RICHARD: I am Legend. O relato que faço desse
livro e de sua mensagem eu tirei da precisa e habilidosa narrativa
de meus colegas do Clube dos Leitores de Ficção
Científica, um grupo de extraordinária cultura
geral e de um conhecimento sobre ficção científica
nada menos que enciclopédico. Entre os muitos
que colaboraram, consigo recordar: Ataíde Tartari, Humberto
Fimiani, Alfredo Keppler, Ivan Regina (que me deve um livro),
e, principalmente, Eduardo Torres, que gentilmente me forneceu
os detalhes finais e o título exato da obra.
Daqui a cerca de um mês deverei, finalmente, receber meu
exemplar pelo correio e desfrutar a experiência de modo
direto.
Parágrafos 13
e 14: LORENZ, CONRAD: On Aggression, (original
em alemão: 1963) (tradução para o inglês:
o próprio autor). New York: MJF Books, 1966* (*data da
tradução, não há no livro informação
sobre a data da presente edição) (306 páginas).
A "agressividade inata" é o tema central de todo o livro.
O "redirecionamento" é apresentado em detalhes nos capítulos
5, 6 e 7, pp. 57-138. A "agressividade contra o grupo contrário"
é no apavorante capítulo 10, pp157-164, e no 11,
pp165-219. O "comportamento de manada" aparece entre outros
locais no capítulo 8, pp139-149.
Parágrafo 15: FREUD, SIGMUND: O
Mal-estar na Civilização, (tradução
de José Octávio de Aguiar Abreu) (original em
alemão, 1930) Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1997
(112 páginas) - p. 71.