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Artigo de André Masini publicado no Jornal O Paraná em 17/mar/2004

O MONSTRO NO ESPELHO

André C S Masini

No sombrio e clássico livro 'I am Legend', o escritor estadunidense Richard Matheson conta uma história arrepiante, que é uma lição de autoconsciência:

Em uma Terra tomada por seres noturnos, que sugam o sangue dos humanos e os transformam em seres iguais a eles, surge um homem chamado Robert, que resolve assumir sozinho a tarefa de salvar a humanidade. Ele passa os dias caçando as criaturas e as massacrando por todos os meios imagináveis. A matança é narrada com riqueza de detalhes e abundância de sangue e violência.

No início do livro, essa carnificina é aplaudida pelo leitor. Afinal Robert está lutando por "nós" e exterminando "eles". O leitor não hesita; não pára para questionar se o massacre das criaturas -- adultas e crianças, machos e fêmeas, velhas e moças, de todos os feitios imagináveis -- se o massacre é correto ou ético.

Se o livro acabasse assim, estaríamos apenas diante de mais uma história banal, dessas que Hollywood tanto gosta, onde um "inimigo" é criado e caracterizado apenas para servir de objeto ao ódio dos espectadores e para depois ser trucidado, dando vazão à agressividade coletiva num ritual catártico.

Mas a história vai muito além. A luta de Robert é apenas o cenário e a armadilha que o autor cria para chegar à verdadeira mensagem.

A cada dia o "salvador" tem menos humanos para "salvar", mas ele persiste em sua missão de extermínio, com a mesma tenacidade de antes. O leitor aos poucos vai percebendo que já não existe nenhuma batalha: Robert é o último humano...

Surge então a perturbadora pergunta: Quem, afinal, é o monstro?

As criaturas querem simplesmente viver suas vidas... mas subsistem sob a permanente ameaça de um assassino obcecado...

E isso é o que Matheson tenta nos mostrar: a dramática e perigosíssima diferença de perspectiva que existe entre o "nós" e o "eles".

Nessa diferença está a raiz de todo ódio e intolerância que devastam a humanidade desde que ela existe.

Terríveis explosões abalaram Madri no último dia 11. Pessoas inocentes foram chacinadas: homens, mulheres, crianças, velhos... Como pode alguém fazer tamanha barbaridade?

Pois essa tragédia é apenas mais uma demonstração de nossa infame capacidade de desumanizar o "eles". Para quem preparou aquelas bombas, as vítimas não eram homens, mulheres, crianças... eram simplesmente "eles".

O grande etologista e pensador Konrad Lorenz elucidou os elementos da natureza humana que são a chave para nossa capacidade destrutiva e cuja compreensão é nossa única esperança de um dia melhorarmos.

Lorenz mostra que a agressividade é inata ao ser humano e que pode facilmente ser redirecionada para qualquer objeto externo. Mostra que temos tendência ao comportamento de "tribo" ou "manada": identificarmo-nos com os membros de "nosso grupo" e coletivamente agredirmos o " grupo contrário". E, pior, mostra que quanto mais forte a agressividade contra o " grupo contrário", mais forte são os laços de amizade dentro de "nosso grupo".

Sigmund Freud, por métodos distintos, chega a conclusões idênticas: "A vantagem que um grupo cultural obtém concedendo a esse instinto (agressão) um escoadouro sob a forma de hostilidade contra intrusos, não é nada desprezível. É sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade."

E é isso que somos: seres capazes de imensa solidariedade para com aqueles que julgamos similares a nós, e de cega indiferença (ou ódio) para com aqueles que imaginamos diferentes.

Os tiranos de todos os tempos têm manipulado massas ao canalizar sua agressividade para um objeto externo. A única coisa que muda é o "critério" (étnico, religioso, político...) para identificar quem são os "eles": troiano, cartaginês, herege, ateu, negro, índio, não-ariano, burguês, comunista, reacionário, judeu... e, ultimamente, "terroristas" e "cruzados".

É cômodo acreditar que o mal está nos outros, "neles", fora de nós próprios. O trágico é que, quanto menos enxergamos o mal em nós, mais propensos ficamos a "exterminar" o mal que vemos nos outros.

Se houvesse um espelho em que cada homem pudesse ver sua própria alma, certamente os responsáveis pelas bombas em Madri não as teriam colocado, os estadunidenses que bombardearam Bagdá não o teriam feito, o Azn(o)ar não teria arrastado a Espanha para a guerra... e toda a história humana teria sido diferente.

O autor é  Escritor, Auditor Fiscal da Receita Federal
e Diretor Geral da Casa da Cultura
.


NOTAS BIBLIOGRÁFICAS:

Parágrafos 1 a 9: MATHESON, RICHARD: I am Legend. O relato que faço desse livro e de sua mensagem eu tirei da precisa e habilidosa narrativa de meus colegas do Clube dos Leitores de Ficção Científica, um grupo de extraordinária cultura geral e de um conhecimento sobre ficção científica nada menos que enciclopédico. Entre os muitos que colaboraram, consigo recordar: Ataíde Tartari, Humberto Fimiani, Alfredo Keppler, Ivan Regina (que me deve um livro), e, principalmente, Eduardo Torres, que gentilmente me forneceu os detalhes finais e o título exato da obra.
Daqui a cerca de um mês deverei, finalmente, receber meu exemplar pelo correio e desfrutar a experiência de modo direto.

Parágrafos 13 e 14: LORENZ, CONRAD: On Aggression, (original em alemão: 1963) (tradução para o inglês: o próprio autor). New York: MJF Books, 1966* (*data da tradução, não há no livro informação sobre a data da presente edição) (306 páginas). A "agressividade inata" é o tema central de todo o livro. O "redirecionamento" é apresentado em detalhes nos capítulos 5, 6 e 7, pp. 57-138. A "agressividade contra o grupo contrário" é no apavorante capítulo 10, pp157-164, e no 11, pp165-219. O "comportamento de manada" aparece entre outros locais no capítulo 8, pp139-149.

Parágrafo 15: FREUD, SIGMUND: O Mal-estar na Civilização, (tradução de José Octávio de Aguiar Abreu) (original em alemão, 1930) Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1997 (112 páginas) - p. 71.

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