ACASO, CIÊNCIA E FILOSOFIA
Na semana passada, nosso
artigo partiu da pergunta: Será que existe algum tipo
de ordem ou razão por detrás dessa intricada trama
que são nossas vidas? e encerrou-se com a conjectura:
Coisas ruins e boas acontecem... por acaso. Mas "acaso"
talvez seja apenas o nome dos motivos que estão muito além
do que alcançamos compreender, e do que jamais alcançaremos.
Para desfazer qualquer
mal entendido, é importante deixar claro que essa é
uma suposição metafísica.
Quando refletimos sobre ela, estamos navegando em mares muito
além do horizonte da ciência e irremediavelmente
afastados desta. É uma suposição que não
pode ser confirmada, nem refutada pela ciência, nem tampouco
examinada por métodos científicos.
Estar "fora"
da ciência pode hoje parecer algo desabonador. Mas isso
é uma distorção da época que vivemos,
em que Ciência parece algo onipotente – tal
qual Igreja na Idade Média – e estar fora
dela soa como excomunhão, como estar perdido para este
mundo e para qualquer outro.
Mas essa tendência
ao domínio absoluto da ciência é relativamente
nova. Iniciou-se no século XVII com a publicação
do livro Principia de Newton (1687), que conseguiu explicar
o funcionamento do sistema solar a partir de leis físicas
(as três leis do movimento). A idéia de ter alcançado
"os céus" e explicado os fenômenos astronômicos
que desde a antigüidade perturbavam a humanidade causou tal
impressão na cabeça das pessoas, que a ciência
começou a ganhar conotações míticas.
A partir daí –
da mesma forma como antes os teólogos católicos
haviam errado ao impor sua teologia à ciência –
foram os cientistas e filósofos que passaram a errar ao
não enxergar os limites dos métodos científicos.
Essa tendência atingiu seu ápice em meados do século
XIX, quando certos filósofos pretenderam aplicar "métodos
científicos" à filosofia, e através
desses supostos "métodos científicos"
quiseram descartar toda a filosofia jamais produzida, e substituí-la
toda por sua própria forma monolítica de entender
o mundo. Foi o "fim da filosofia": a maior catástrofe
da história do pensamento humano, a ditadura de idéias
filosóficas autoritárias travestidas de ciência.
Essas idéias impregnaram
o século XX e nos influenciam até hoje. Por isso
às vezes nos parece que em nosso mundo não há
mais lugar para filosofia, ou que este lugar teria sido ocupado
pela ciência. Mas, se sacudirmos um pouco o ranço
cientificista e a arrogância filosófica do século
XIX, poderemos voltar a enxergar algumas distinções:
Cabe à ciência lidar com as questões mais
tangíveis, como os fenômenos do mundo físico
que podemos perceber e medir (experimentar) sistematicamente com
nossos sentidos (mesmo que através de instrumentos). Cabe
à filosofia lidar com questões menos tangíveis
ou que estão além da possibilidade de experimentação
sistemática, e.g. a ética, a lógica, a estética,
o estudo do próprio conhecimento humano e seus limites
(epistemologia); e a metafísica.
Claro que a fronteira não
é nítida nem estanque. Muitos temas que foram filosofia
no passado, hoje são ciência. Um exemplo disso foi
a discussão da natureza da matéria pelos filósofos
pré-socráticos – como pode um carneiro
comer grama e crescer, se ele é constituído de carne
e ossos? Como pode ele ao morrer transformar-se em pó?
Seriam todas as coisas constituídas na verdade por uma
substância única? – discussão que
hoje foi plenamente absorvida pela química.
Por fim, voltando a nosso
tema das razões por detrás do acaso, podemos
agora entender que ele está muito distante da ciência,
mas que não há nenhum demérito nisso.
Metafísica
é o ramo da filosofia que busca a realidade última
das coisas, a realidade que existe por detrás
de todas as aparências, por detrás daquilo
que podemos perceber com nossos sentidos. Mas, mesmo entre os
filósofos, ela tem alguns críticos; que consideram
a tentativa de conhecer essa "realidade inacessível
aos sentidos" como perda de tempo, devaneio ou até
charlatanismo.
Assim caberá apenas
ao leitor ou leitora decidir se vale ou não a pena dedicar
alguns pensamentos à suposta existência de alguma
razão por detrás do acaso.
Metafísicas à
parte, o acaso também é assunto para a
ciência e para outros ramos da filosofia.
Tenho certeza que o leitor ou leitora ficará surpreso ao
ouvir o que a ciência tem a dizer a respeito... na próxima
semana.
Continua na próxima semana... |