O Acaso e a Filosofia
Nesta manhã, antes
de me levantar, uma intensa batalha se travou em minha mente.
De um lado, o sono e a preguiça diziam:
"Só mais um minutinho..."
De outro, o senso de responsabilidade
retrucava:
"Levante já!"
Parecia mesmo que um diabinho
e um anjinho me sussurravam ao ouvido.
No fim escolhi levantar...
Escolhi?
Intimamente tenho convicção
de que sim, de que optei por sair da cama e de que igualmente
poderia ter optado por ficar.
Os seres humanos geralmente
têm essa sensação de que realizam escolhas,
de que possuem livre-arbítrio.
E é aí que
está o problema: essa nossa capacidade de realizar escolhas
não apenas é impossível de ser comprovada
por métodos científicos, mas está em severa
contradição com diversos aspectos da ciência.
Vimos, nos artigos anteriores,
que a física clássica vê o mundo material
como algo determinístico, ou seja, como um gigantesco
mecanismo de relógio pré-programado. Vimos também
que, por outro lado, a física quântica admite eventos
aleatórios: o acaso (mas note-se que acaso
é algo essencialmente diferente de escolha). Nenhuma
das duas físicas enxerga no mundo material qualquer pista
de nossas escolhas.
Quem está errado?
a física ou nossa percepção?
A solução
desse aparente dilema está em compreender que a física
tem escopo limitado e que nele não se incluem os pensamentos
ou escolhas dos seres vivos.
A física pode compreender
os átomos de carbono que constituem nossos corpos – que
aliás são idênticos aos átomos do grafite
e obedecem às mesmas leis naturais – mas essa compreensão
se restringe aos átomos em si, não alcança
a entidade ser humano. Entre átomos e conclusões
sobre a não existência de livre arbítrio,
a distância é enorme.
Se o mundo físico
é determinado, então nós também somos,
e qualquer "escolha" (como a que eu fiz hoje de manhã)
não passa de uma ilusão (que já estaria escrita
desde o início dos tempos)... Eis o típico argumento
falacioso, que parte de uma conjectura científica possível,
mas a extrapola para muito além da fronteira da ciência.
A física sim explicou, de forma determinística,
o movimento dos planetas em suas órbitas e o das folhas
levadas pelo vento, mas jamais chegou sequer perto de explicar
o funcionamento de uma escolha (ou não escolha) feita por
um ser vivo.
O livre-arbítrio,
portanto, é assunto mais para a filosofia que para a ciência;
e mesmo dentro da filosofia continua sendo controverso. Se de
um lado, a sensação de livre-arbítrio está
presente na maioria dos seres humanos (O fato de eu possuir
vontade é tão inegável quanto o fato de minha
própria existência, escreveu o genial etologista
Konrad Lorenz); de outro lado, as escolhas humanas não
são isentas de causas subjacentes, que têm
sido identificadas desde a Antiguidade.
Tais causas subjacentes
existem mesmo naquelas escolhas em que o agente acredita
ter agido com plena liberdade: e.g. a escolha de levantar
nesta manhã, que me pareceu um puro ato de vontade; mas
que, quando analisada em maior detalhe, revela depender de diversos
fatores, como a genética (maior ou menor ansiedade, necessidade
de dormir, etc...), a cultura e outros... O mesmo Lorenz demonstra,
através do comportamento animal, que nossa vontade e
nossas escolhas têm alcance limitado, e que impulsos
inatos estão presentes em todos nós seres vivos.
Aí chegamos a outra
questão importante: Caso o homem seja realmente escravo
do determinismo, estaria ele isentos da responsabilidade moral
por seus atos?
"Não",
respondem os filósofos de primeira linha. (Nosso mundo
sem responsabilidade moral é impensável!)
Mas como pode haver responsabilidade
por aquilo que não se pode evitar?
Essa questão foi
solucionada de distintas formas por distintos filósofos.
Spinoza, e.g., propôs que, sendo os seres humanos entes
autônomos, eles seriam responsáveis por seus atos
mesmo que esses atos obedecessem a causas determinísticas.
Nesses nossos 5 artigos
pudemos examinar o acaso sob as mais diversas perspectivas,
vimos que nem a ciência nem a filosofia chegaram à
palavra final sobre o assunto, e acabamos voltando ao ponto de
partida: Acaso? Determinismo? Livre-arbítrio? Onipotência
divina? Enfim... caberá apenas ao leitor escolher em
qual acreditar.
Escolher?
Bem... escolher,
ou pensar que escolheu, ou ser determinado a acreditar,
ou casualmente acreditar, ou ser guiado pela mão
Dele a...
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