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Artigo de André Masini publicado no Jornal O Paraná em 30/Jul/2003

O PIOR "PILOTA DA MUNDA" *


André Carlos Salzano Masini


De aviões, pilotos e loucuras, já ouvi muitas histórias; mas nenhuma que se compare à de Babau...

Os boatos sobre Babau começaram já no dia em que ele chegou a Altamira e aceitou pilotar o velho Pipper do doutor Cléssio:

– Sujeito maluco, ninguém em sã consciência ousa voar com aquela coisa, e só mesmo o caduco do coronel para querer transformar aquilo em "táxi-aéreo".

Mas Babau voou, e sua fama só foi aumentando.

O povo até hoje se lembra do dia em que ele transportou seu primeiro passageiro: O infeliz foi um certo topógrafo que Babau fora buscar em alguma fazenda lá pro sul. O avião retornara intacto, pousara suavemente e tudo parecia bem. Mas, mal a porta se abrira, de dentro saltara o sujeito berrando e gesticulando, tão agitado que ninguém conseguira entender o que tinha acontecido. Ele partiu bufando e proferindo insultos contra aquele "louco", "assassino", "suicida"...

Com os próximos passageiros, a história não foi diferente. Alguns relataram inclusive detalhes de manobras assustadoras...

Logo todos na cidade apontavam Babau – aquele magrelo de nariz enorme, feio como a desgraça – como o mais habilidoso e mais maluco piloto que a Amazônia já havia visto:

– Não é mal sujeito, diziam, mas tem essa compulsão para aterrorizar passageiros, uma coisa meio doente, meio sádica... e quanto mais "arrumadinho" é o infeliz, pior ele faz...

Babau orgulhava-se da fama, até que...

Um belo dia apareceu um senhor grave, impecavelmente vestido, de terno preto, chapéu preto, gravatinha-borboleta preta, guarda-chuva preto e jornal... Era um passageiro. Ao vê-lo Babau arregalou os olhos e enrijeceu-se todo, como um predador fitando a presa.

O homem tratou com o Dr. Cléssio e rumou direto para o avião. Passou pelo Babau sem olhar para ele e sem dizer palavra. Subiu no aparelho e, sem maiores cerimônias, acomodou-se no banco, afivelou o cinto, abriu o jornal e começou a ler.

– Macapá, Babau – disse o Dr. Cléssio que se aproximara.

O piloto entrou no aparelho, mirou o sujeito e sorriu com malícia. O homem pareceu não notar sua presença e continuou lendo o jornal.

O avião acelerou, estremeceu... decolou... e o sujeito continuou lendo.

Babau subiu por uns minutos... e subitamente mergulhou. Deu um rasante, fez violentas manobras...

Mas o homem não disse uma palavra.

Babau olhou de lado. O sujeito estava lá, olhando para ele, expressão neutra, jornal apoiado no colo, sobrancelhas levemente erguidas... e no instante seguinte reabriu o jornal e voltou a ler.

Babau apertou os dentes: aquele metido ia ver o que é bom. Levou o avião a 3.000 metros, virou o bico para cima, estolou, caiu de ré e entrou em parafuso. Desligou o motor, largou o manche, fechou os olhos e ficou esperando o grito.

Mas não houve grito nenhum.

Babau abriu os olhos. O mundo girava, e no meio de tudo estava o rosto sereno do homem, com a mesma expressão de antes.

O chão vinha chegando rápido...

No último instante, Babau reiniciou o motor e saiu do mergulho. Recuperou altura. Suas mãos estavam molhadas. E o homem já tinha voltado a ler o jornal.

Babau engoliu em seco. Estaria derrotado?

Foi nessa hora que lá em baixo surgiu a ponte.

Babau deu um sorriso nervoso e mergulhou.

Vendo a ponte, o homem dobrou o jornal e ficou imóvel.

Ela vinha chegando rápido; era baixa e estreita. Babau ofegava. Será que passava?

Mesmo com as rodas quase tocando o rio, a ponte ainda parecia baixa demais. Babau sentiu que não iria dar. Olhou para o lado: o homem continuava impassível, de sobrancelhas erguidas.

No último instante Babau desistiu. Puxou o manche, levantou o avião. Por um triz não bateu na ponte.

O homem fez: "Hum", abriu novamente o jornal e voltou a ler.

Babau suspirou. Estava derrotado. Pilotou até Macapá sem fazer qualquer outra gracinha. Pousou, taxiou e desligou o motor...

Então o homem dobrou o jornal, encarou-o e falou com o dedo em riste:

– A senhor ser a pior pilota da munda! (pausa) e ainda por cima ser covarde, porque quando mergulha para o ponte, tem que passar! – abriu a porta e desapareceu.

Babau, sem entender nada e bastante acanhado, saiu do avião. Aí surgiu um mecânico perguntado- lhe como tinha sido o vôo com o "louco Jimmy".

Louco Jimmy?!

Então Babau descobriu que o homem fora piloto na 2a. guerra, vivia no Brasil há vinte anos, e ganhava a vida transportando carga (só carga) num pesado hidroavião Catalina.

Contam que, depois disso, Babau nunca mais deu sustos em ninguém; e que foi com calafrios que, meses depois, recebeu a notícia que "Louco Jimmy" havia morrido... tentando dar um loop com seu Catalina.

O autor é  Escritor, Auditor Fiscal da Receita Federal
e Diretor Geral da Casa da Cultura
.


* Esta versão eletrônica deste artigo tem algumas diferenças em relação à versão impressa, pois sofreu modificações posteriores ao fechamento do jornal.

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