O PIOR "PILOTA DA MUNDA" *
André Carlos Salzano Masini
De aviões, pilotos e loucuras, já ouvi muitas histórias;
mas nenhuma que se compare à de Babau...
Os boatos sobre Babau começaram
já no dia em que ele chegou a Altamira e aceitou pilotar
o velho Pipper do doutor Cléssio:
– Sujeito maluco, ninguém
em sã consciência ousa voar com aquela coisa,
e só mesmo o caduco do coronel para querer transformar
aquilo em "táxi-aéreo".
Mas Babau voou, e sua fama
só foi aumentando.
O povo até hoje
se lembra do dia em que ele transportou seu primeiro passageiro:
O infeliz foi um certo topógrafo que Babau fora buscar
em alguma fazenda lá pro sul. O avião retornara
intacto, pousara suavemente e tudo parecia bem. Mas, mal a porta
se abrira, de dentro saltara o sujeito berrando e gesticulando,
tão agitado que ninguém conseguira entender o que
tinha acontecido. Ele partiu bufando e proferindo insultos contra
aquele "louco", "assassino", "suicida"...
Com os próximos
passageiros, a história não foi diferente. Alguns
relataram inclusive detalhes de manobras assustadoras...
Logo todos na cidade apontavam
Babau – aquele magrelo de nariz enorme, feio como a desgraça
– como o mais habilidoso e mais maluco piloto que a Amazônia
já havia visto:
– Não é
mal sujeito, diziam, mas tem essa compulsão para aterrorizar
passageiros, uma coisa meio doente, meio sádica... e quanto
mais "arrumadinho" é o infeliz, pior ele faz...
Babau orgulhava-se da fama,
até que...
Um belo dia apareceu um
senhor grave, impecavelmente vestido, de terno preto, chapéu
preto, gravatinha-borboleta preta, guarda-chuva preto e jornal...
Era um passageiro. Ao vê-lo Babau arregalou os olhos e enrijeceu-se
todo, como um predador fitando a presa.
O homem tratou com o Dr.
Cléssio e rumou direto para o avião. Passou pelo
Babau sem olhar para ele e sem dizer palavra. Subiu no aparelho
e, sem maiores cerimônias, acomodou-se no banco, afivelou
o cinto, abriu o jornal e começou a ler.
– Macapá, Babau
– disse o Dr. Cléssio que se aproximara.
O piloto entrou no aparelho,
mirou o sujeito e sorriu com malícia. O homem pareceu não
notar sua presença e continuou lendo o jornal.
O avião acelerou,
estremeceu... decolou... e o sujeito continuou lendo.
Babau subiu por uns minutos...
e subitamente mergulhou. Deu um rasante, fez violentas manobras...
Mas o homem não
disse uma palavra.
Babau olhou de lado. O
sujeito estava lá, olhando para ele, expressão neutra,
jornal apoiado no colo, sobrancelhas levemente erguidas... e no
instante seguinte reabriu o jornal e voltou a ler.
Babau apertou os dentes:
aquele metido ia ver o que é bom. Levou o avião
a 3.000 metros, virou o bico para cima, estolou, caiu de ré
e entrou em parafuso. Desligou o motor, largou o manche, fechou
os olhos e ficou esperando o grito.
Mas não houve grito
nenhum.
Babau abriu os olhos. O
mundo girava, e no meio de tudo estava o rosto sereno do homem,
com a mesma expressão de antes.
O chão vinha chegando
rápido...
No último instante,
Babau reiniciou o motor e saiu do mergulho. Recuperou altura.
Suas mãos estavam molhadas. E o homem já tinha voltado
a ler o jornal.
Babau engoliu em seco.
Estaria derrotado?
Foi nessa hora que lá
em baixo surgiu a ponte.
Babau deu um sorriso nervoso
e mergulhou.
Vendo a ponte, o homem
dobrou o jornal e ficou imóvel.
Ela vinha chegando rápido;
era baixa e estreita. Babau ofegava. Será que passava?
Mesmo com as rodas quase
tocando o rio, a ponte ainda parecia baixa demais. Babau sentiu
que não iria dar. Olhou para o lado: o homem continuava
impassível, de sobrancelhas erguidas.
No último instante
Babau desistiu. Puxou o manche, levantou o avião. Por um
triz não bateu na ponte.
O homem fez: "Hum",
abriu novamente o jornal e voltou a ler.
Babau suspirou. Estava
derrotado. Pilotou até Macapá sem fazer qualquer
outra gracinha. Pousou, taxiou e desligou o motor...
Então o homem dobrou
o jornal, encarou-o e falou com o dedo em riste:
– A senhor ser a pior pilota da munda!
(pausa) e ainda por cima ser covarde, porque quando mergulha para
o ponte, tem que passar! – abriu a porta e desapareceu.
Babau, sem entender nada
e bastante acanhado, saiu do avião. Aí surgiu um
mecânico perguntado- lhe como tinha sido o vôo com
o "louco Jimmy".
– Louco Jimmy?!
Então Babau descobriu
que o homem fora piloto na 2a. guerra, vivia no Brasil
há vinte anos, e ganhava a vida transportando carga (só
carga) num pesado hidroavião Catalina.
Contam que, depois disso,
Babau nunca mais deu sustos em ninguém; e que foi com calafrios
que, meses depois, recebeu a notícia que "Louco Jimmy"
havia morrido... tentando dar um loop com seu Catalina.
O
autor é Escritor, Auditor Fiscal da Receita Federal
e Diretor Geral da Casa da Cultura.
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