ACONTECEU NA VIA-SACRA
Tudo começou na
quinta-feira santa. Eu assistia TV tranqüilamente, quando
tocou a campainha.
Ao espiar pelo olho mágico,
vi uns oito homens, todos brancos como a cal virgem e fortes
como leões-de-chácara. Um deles aguardava bem
diante da porta, com expressão compenetrada. Os outros
lá atrás faziam enorme baderna, falando numa língua
incompreensível; erguiam uns copos de metal, brindavam
e despejavam o conteúdo nas goelas; depois gargalhavam
e enchiam os copos novamente...
Eu - que não sou
besta nem nada - fiquei bem quieto, fingindo que não
estava, até o barulho acabar. Então respirei aliviado
e voltei para a TV.
Quinze minutos depois
a campainha voltou a tocar. Era a esposa de meu vizinho; estava
desesperada, embolando as palavras. Com dificuldade entendi
que os sujeitos tinham ido parar na casa dela... e estavam lá,
brindando e gargalhando...
- Mas, como?! perguntei
eu. Quem são eles, de onde saíram?!
- Sei lá! disse
ela quase chorando. Acho que foi o chefe do Antônio, lá
de Curitiba, que deu o endereço. Acho que são
convidados da empresa... ou engenheiros... ou sei lá...
Ela pediu que eu fosse
- junto com o marido dela - levar os oito até uma certa
cidadezinha, onde supunha-se que alguém estivesse esperando
por eles. Ela queria que eu servisse de intérprete.
- Intérprete?!
protestei. Mas intérprete de quê, se eu não
sei nem que língua eles falam?!
Mas não adiantou
discutir. Ela caiu em prantos; e nenhum argumento racional a
fez mudar de idéia. No fim, lá fui eu de intérprete.
Ao chegar à cidade,
aconteceu o que eu mais temia: não havia ninguém
lá esperando por eles. Rodamos por várias horas,
e acabamos indo parar na sacristia da matriz, onde, por sorte,
um bondoso e rechonchudo padre nos recebeu. Mas, por azar, ele
inventou que os branquelos eram os convidados internacionais
para a encenação da via-sacra; espécies
tupiniquins de os oito reis magos da páscoa, ou algo
assim.
Apesar de tudo isso,
as coisas ainda não pareciam tão ruins; até
que tentamos lhes explicar o que era via-sacra...
- Cristo, dizia o padre
para mim.
- Cristo! berrava eu
para o líder.
- Cruistuo?! perguntava
o líder berrando ainda mais alto e arregalando os olhos;
e depois balançava a cabeça negativamente.
Os outros sete continuavam
falando entre si, alheios às explicações.
Mas o padre não
desistiu. Pegou uma imagem de Cristo e a mostrou ao líder,
dizendo:
- Cristo, nosso irmão,
muito bom! Ele ama vocês todos!
O líder fez uma
enorme careta de espanto e, colocando a mão no peito,
perguntou:
- Amar, ieu?!?
- Sim! disse o padre
abrindo um amplo sorriso. Ama! ama vocês todos!
- Amar, ieles?!? perguntou
o líder, ainda mais incrédulo, apontando para
os outros.
- Sim! disse o padre.
Ama eles também!
- Vroswk! berrou o líder.
Imgsb Cruistuo gjlma! disse ele apontando para a imagem.
Todos se calaram com
expressões espantadíssimas.
- Cruistuo gjlma mian?
Perguntou um deles colocando a mão no peito.
- Daah! Respondeu o líder.
Todos pareceram ficar
profundamente comovidos, e por algum tempo contemplaram a imagem...
Pelo jeito, eles haviam
entendido quem era Cristo, mas isso foi tudo que entenderam.
Por longas horas eu e o padre continuamos tentando lhes explicar
o que era encenação, teatro, representação,
mas o líder apenas balançava a cabeça negativamente.
No dia seguinte, o grupo
assistiu à via-sacra... Quando os soldados prenderam
Jesus, eles começaram a ficar agitados. Quando Herodes
fez suas maldades, eles levantaram e começaram a urrar.
Mas quando Jesus começou a ser açoitado, aí
eles partiram pra ignorância...
Coitado do ator com o
açoite na mão! Ele não deve ter entendido
nada quando viu surgir aqueles brutamontes distribuindo sopapos.
Foi um Deus nos acuda, com soldado romano correndo pra tudo
que é lado, Pilatos mergulhando num bueiro e Caifás
se escondendo debaixo do palco.
Quando vi que um dos
convidados internacionais tinha pego Judas e o arrastava gritando
e esperneando para o calvário, onde pelo jeito iam crucificá-lo,
eu fugi da cidade; e até hoje não sei como a coisa
acabou.
Chegando a Cascavel encontrei
alguns jovens católicos, da São Pedro, São
Cristóvão e outras paróquias. Estavam tristes
porque a chuva havia impedido as encenações da
via-sacra e meses de árduo trabalho haviam sido perdidos...
Então lhes contei
essa história, e a tristeza pareceu diminuir. Um deles
olhou para o céu e sorriu...
Quantas vezes aquilo
que lamentamos não é, sem que saibamos, uma dádiva
da providência?
André Carlos Salzano Masini