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Artigo de André Masini publicado no Jornal O Paraná em 30/abr/2003


ACONTECEU NA VIA-SACRA

Tudo começou na quinta-feira santa. Eu assistia TV tranqüilamente, quando tocou a campainha.

Ao espiar pelo olho mágico, vi uns oito homens, todos brancos como a cal virgem e fortes como leões-de-chácara. Um deles aguardava bem diante da porta, com expressão compenetrada. Os outros lá atrás faziam enorme baderna, falando numa língua incompreensível; erguiam uns copos de metal, brindavam e despejavam o conteúdo nas goelas; depois gargalhavam e enchiam os copos novamente...

Eu - que não sou besta nem nada - fiquei bem quieto, fingindo que não estava, até o barulho acabar. Então respirei aliviado e voltei para a TV.

Quinze minutos depois a campainha voltou a tocar. Era a esposa de meu vizinho; estava desesperada, embolando as palavras. Com dificuldade entendi que os sujeitos tinham ido parar na casa dela... e estavam lá, brindando e gargalhando...

- Mas, como?! perguntei eu. Quem são eles, de onde saíram?!

- Sei lá! disse ela quase chorando. Acho que foi o chefe do Antônio, lá de Curitiba, que deu o endereço. Acho que são convidados da empresa... ou engenheiros... ou sei lá...

Ela pediu que eu fosse - junto com o marido dela - levar os oito até uma certa cidadezinha, onde supunha-se que alguém estivesse esperando por eles. Ela queria que eu servisse de intérprete.

- Intérprete?! protestei. Mas intérprete de quê, se eu não sei nem que língua eles falam?!

Mas não adiantou discutir. Ela caiu em prantos; e nenhum argumento racional a fez mudar de idéia. No fim, lá fui eu de intérprete.

Ao chegar à cidade, aconteceu o que eu mais temia: não havia ninguém lá esperando por eles. Rodamos por várias horas, e acabamos indo parar na sacristia da matriz, onde, por sorte, um bondoso e rechonchudo padre nos recebeu. Mas, por azar, ele inventou que os branquelos eram os convidados internacionais para a encenação da via-sacra; espécies tupiniquins de os oito reis magos da páscoa, ou algo assim.

Apesar de tudo isso, as coisas ainda não pareciam tão ruins; até que tentamos lhes explicar o que era via-sacra...

- Cristo, dizia o padre para mim.

- Cristo! berrava eu para o líder.

- Cruistuo?! perguntava o líder berrando ainda mais alto e arregalando os olhos; e depois balançava a cabeça negativamente.

Os outros sete continuavam falando entre si, alheios às explicações.

Mas o padre não desistiu. Pegou uma imagem de Cristo e a mostrou ao líder, dizendo:

- Cristo, nosso irmão, muito bom! Ele ama vocês todos!

O líder fez uma enorme careta de espanto e, colocando a mão no peito, perguntou:

- Amar, ieu?!?

- Sim! disse o padre abrindo um amplo sorriso. Ama! ama vocês todos!

- Amar, ieles?!? perguntou o líder, ainda mais incrédulo, apontando para os outros.

- Sim! disse o padre. Ama eles também!

- Vroswk! berrou o líder. Imgsb Cruistuo gjlma! disse ele apontando para a imagem.

Todos se calaram com expressões espantadíssimas.

- Cruistuo gjlma mian? Perguntou um deles colocando a mão no peito.

- Daah! Respondeu o líder.

Todos pareceram ficar profundamente comovidos, e por algum tempo contemplaram a imagem...

Pelo jeito, eles haviam entendido quem era Cristo, mas isso foi tudo que entenderam. Por longas horas eu e o padre continuamos tentando lhes explicar o que era encenação, teatro, representação, mas o líder apenas balançava a cabeça negativamente.

No dia seguinte, o grupo assistiu à via-sacra... Quando os soldados prenderam Jesus, eles começaram a ficar agitados. Quando Herodes fez suas maldades, eles levantaram e começaram a urrar. Mas quando Jesus começou a ser açoitado, aí eles partiram pra ignorância...

Coitado do ator com o açoite na mão! Ele não deve ter entendido nada quando viu surgir aqueles brutamontes distribuindo sopapos. Foi um Deus nos acuda, com soldado romano correndo pra tudo que é lado, Pilatos mergulhando num bueiro e Caifás se escondendo debaixo do palco.

Quando vi que um dos convidados internacionais tinha pego Judas e o arrastava gritando e esperneando para o calvário, onde pelo jeito iam crucificá-lo, eu fugi da cidade; e até hoje não sei como a coisa acabou.

Chegando a Cascavel encontrei alguns jovens católicos, da São Pedro, São Cristóvão e outras paróquias. Estavam tristes porque a chuva havia impedido as encenações da via-sacra e meses de árduo trabalho haviam sido perdidos...

Então lhes contei essa história, e a tristeza pareceu diminuir. Um deles olhou para o céu e sorriu...

Quantas vezes aquilo que lamentamos não é, sem que saibamos, uma dádiva da providência?

André Carlos Salzano Masini

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