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ACASO

Mauro Andriole

Não há acaso, tudo pode assumir um significado.

Aristóteles classifica o acaso, ou acidente, em sua Física e Metafísica.

Maquiavel também fala do acaso, refere-se ao bom senso diante da sorte, e da prudência, em reconhecer sua face gigantesca espreitando o mundo dos homens.

Mas não é isso o que vem de encontro ao nosso propósito.

Falar do acaso é, invariavelmente, falar de uma espécie de coincidência, isto é, daquilo que se apresenta como significativo, a despeito de qualquer intenção premeditada.

Mas como algo torna-se significativo?

Talvez não haja nenhuma resposta que venha a atender rigorosamente as exigências que uma investigação destas implica. Adentramos o reino da especulação.

E então nos perguntamos se há, de fato, rigor possível sobre o que chamamos de pensamento?

É muito consolador recorrer às leis da Ciência, seja ela qual for, e nos ancorarmos firmemente, enquanto a tempestade se avulta no horizonte enigmático da livre especulação.

Corremos o risco de irmos a limites longínquos demais para a saúde social e seus policiais no plantão médico. No entanto, isso já não é mais temível do que amestrarmos a mente com significados que a tv enxerta através dos mais ingênuos slogans.

Ousemos pensar...

Significativo é o que mantém relação com algo além de si mesmo, uma referência.

Daí, considera-se significativo o número de vezes que algo ocorre, até isto tornar-se previsível, surge então, o fenômeno classificável, que por sua vez, engendra um sentido numa tese, que vem a confirmar teorias, e gerar leis. Certamente é preciso um pouco de flexibilidade para sustentarmos a inexorabilidade de qualquer coisa nesse sentido. É preciso crer na razão e nos seus produtos, sejam pensamentos ou equipamentos construídos pelas mãos humanas.

Como negar o que a razão mostra claramente?

Não é essa a questão, mas sim, se a razão pode dar conta de tudo o que nos habituamos a chamar de conhecimento, de tudo aquilo que reconhecemos como significativo, enfim, de tudo o que consideramos verdadeiro ou falso.

Cogitar a possibilidade de conhecimento absoluto, que atribuímos generosamente somente a Deus, já levou homens a fogueira e a loucura, e nada mais.

Absoluto é apenas uma abstração em nosso vocabulário, tanto quanto infinitude ou eternidade. São necessidades lógicas também; não haveria como "progredir cientificamente" sem admitir essas possibilidades, ainda que intangíveis ao aparato tecnológico. De modo que vislumbramos a ponta da corda, que prende nossa âncora à essa nau errante, chamada Ciência, e cremos que há de fato uma âncora tocando o fundo desse misterioso mar, toda vez que adicionamos um "eternamente" às nossas conjecturas. Será lógico?

A necessidade da certeza dá ao acaso seu estatuto especial dentro do nosso corre-corre. Aliás, pouco sobra além das certezas que engolimos com um pouco de água tratada cientificamente. Qualquer sinal de euforia diante do insólito, do acaso talvez, e já nos encaminhamos para a fila dos desesperados, dos doidos e fanáticos religiosos; estamos obsecados pela segurança das superfícies planas. Nada pode obstruir a visão que temos de nossos pequenos afazeres, de nossa estúpida noção de ciência e da medíocre crença no saber que possuímos acerca de nós mesmos. Nenhum relevo é páreo para nosso trator de óleo diesel.

E súbito, o acaso esfola a pele, mostrando um pouco de nossa fragilidade física e emocional. Oh!! Como isso pode ser assim? Não é incrível como se deu sem ninguém querer?

Transitamos nessa pobre dualidade, possível ou impossível, certo ou errado, vivo ou morto...até não agüentarmos mais enfileirar termo atrás de termo.

Onde está o que ultrapassa, ou melhor, o que sobrepassa a possibilidade e o impossível? Sempre há algo com o que comparar, estancar o fluxo com uma referência que submete a originalidade ao padrão inteligível do menu a disposição.

Mas uma face vermelha sorri das distâncias marcianas, sorri por ver ruínas impossíveis, em locais improváveis da América Latina, erigidas por povos ancestrais absolutamente estranhos aos ensinamentos administrados pelas universidades, que são oferecidos às crianças, seus futuros doutores empacotados com a mesma toga.

Será acaso que essa lógica social se preserve como assistimos?

Não será essa, a "lógica" do acaso?

Não é justamente a ausência dessa dicotomia - possível/impossível - que permite que o insólito crave sua flecha em nossos corações, nos arrancando da pose e abrindo nossos olhos mais do que temos coragem de fazer em público?

Ah! A inteligibilidade do texto é luxuosa, seu sabor engorda as páginas e satisfaz o paladar dos mais exigentes durante a degustação que antecede a defecação.

Certa noite, resolvi escrever sobre o acaso, e logo faltou energia elétrica. Escuridão. Senti algo inefável nisso. Um espanto inquietante, que só cessou quando as luzes se acenderam novamente. Talvez não devesse escrever nada antes daquele apagão. Não era para ser assim. Certamente não teria escrito coisa que valesse a pena naquele impulso primeiro, mas a falta de luz me lançou no que era inesperado. Diretamente no olho escuro do acaso.

Isso foi hoje, antes de tudo o que escrevi agora.

Não há acaso, apenas pensamos que sabemos algo sobre as coisas. Que são coisas, que somos nós, e que não há como ser de outro modo.

Só então podemos sonhar na escuridão e povoá-la com coisas que somos em liberdade ocasional. Não precisamos contar a verdade sobre isso.

 

O Autor, Mauro Andriole, é artista plástico, estudioso de filosofia, sobretudo de temas que convergem para a ciência e a metafísica.

e-mail: andriole7@hotmail.com