Humanos fechar
Capítulo 1

 

Jorge permanecia estático, com a cara colada à janela. Seus olhos arregalados lacrimejavam, mas não piscavam, e o nariz, esmagado contra o vidro, recebia todo o frio daquela límpida noite de julho. Na escuridão da sala, só se enxergava a parte frontal de seu rosto, iluminada por aquela estranha luz alaranjada.

Mecanicamente, repetindo um gesto inúmeras vezes realizado no passado diante daquela mesma janela, sua mão procurou a borda da cortina de algodão: o aconchego de um objeto familiar e reconfortante. Porém, ao invés do tecido macio, encontrou algo duro. Algo nem frio nem quente, que não causava nenhuma sensação táctil, que apenas resistia ao movimento e produzia a estranha impressão de que sua mão estava anestesiada.

Jorge retirou a mão de súbito. Sua expressão de dor aumentou de intensidade, como se a estranheza do tecido houvesse machucado. Seus olhos, já fatigados de tantas novidades naquela noite, fixaram a velha cortina, que tinha a mesma estampa, as mesmas manchas, tudo como de hábito, exceto por um detalhe: estava absolutamente rígida. O formato de suas dobras dava impressão de leveza, da mesma leveza que a cortina sempre tivera; só que agora elas não mais ondulavam. A cortina parecia ser uma escultura de mármore dependurada no trilho.

Na cabeça de Jorge imperava o caos. Seu cérebro não conseguia processar as informações que seus sentidos enviavam. A situação... a sala de sua casa... aquele mundo ao seu redor que um dia houvera sido aconchegante e familiar – era agora insuportavelmente perturbador.

Estranha era aquela neblina pulsante de luz alaranjada... estranhos eram os solavancos em seu corpo que lhe tiravam o equilíbrio e lhe faziam sentir vertigens. O que estaria acontecendo? O cérebro buscava ansiosamente alguma referência, e, insucesso após insucesso, continuava a insistir. Resgatava experiências acumuladas durante toda uma vida e tentava compará-las, tentava reconhecer a situação presente. Mas era inútil. Nada encaixava. Nada fazia sentido.

Jorge sentia o interior de seu peito ao mesmo tempo queimar e gelar. A cada novo imprevisto cresciam a angústia, a confusão, e o pânico. Sua língua ressecada e áspera parecia um objeto estranho a lhe obstruir a boca.

Das mensagens que seus sentidos enviavam, a mais perturbadora vinha de forma sutil, quase subliminar. Em seu desespero, ele não chegava a tomar consciência da informação que mais lhe causava estranheza e que definitivamente lhe mostrava que aquele mundo já não era o seu. Nos seus ouvidos... reinava o mais absoluto silêncio. Um silêncio total, jamais antes experimentado.

Já sem pensar, guiado não se sabe bem pelo quê, recuou no escuro, tentando se afastar daquela janela. Sua maior dificuldade era a falta de sensação tátil de tudo. Suas mãos não reconheciam nenhum objeto, como se algum estranho tipo de anestesia lhe tivesse sido aplicado em todo corpo, tirando a sensibilidade e preservando apenas os movimentos. Mas não era bem uma anestesia, pois, curiosamente, ao seu próprio corpo – seu rosto, suas pernas – ele ainda conseguia sentir, como se ele próprio fosse a única parte de seu antigo mundo que não havia se transformado em algo desconhecido e assustador.

Chegou à porta do corredor que dava para os quartos. Tentou abri-la, mas não conseguiu. A maçaneta estava rígida como uma rocha. Apoiou todo seu peso sem qualquer resultado. Era uma maçaneta de madeira bem familiar, que não poderia resistir a toda aquela força. Mas resistia. Parecia indestrutível.

Jorge olhou para o corredor que dava para a cozinha e viu, no final dele, a luz passando pela porta meio aberta. Foi até lá e esgueirou-se pelo vão. A porta estava rígida em suas dobradiças.

Na parede oposta à porta, pousado numa prateleira alta, ficava o filtro de barro. Pouco abaixo dele, no vão entre a prateleira e a pia, diante dos azulejos brancos, havia um pequeno objeto pairando no ar.

Jorge avançou dois passos e parou. Do fundo de sua mente uma idéia tentava emergir: o significado, o reconhecimento daquela coisa flutuante; uma lembrança que estava lá presente em algum meandro, mas não conseguia chegar à tona.

Por uns instantes ele ficou olhando aturdido para aquela forma transparente do tamanho de uma ervilha, incomodado por uma sensação de intensa familiaridade. Depois aproximou-se até seu peito ficar a apenas 10 cm do objeto. Então ergueu os olhos para o filtro. A pequena torneira de plástico atraiu sua atenção, e, em seu rosto contorcido pelo desgaste, surgiu o esboço nervoso de um sorriso. Ele conseguira captar a idéia que tanto lhe havia teimado em fugir: aquilo, pairando no ar, era... uma gota de água! Um pingo de água caindo da torneira do filtro.

Tentou pegar a gota com a mão . Ao invés da sensação fria e líquida sentiu a mesma ausência de tato de tudo que o circundava. A gota estava tão rigidamente fixada no ar que nem toda sua força conseguia movê-la.

Enquanto se segurava na gota, com o canto do olho percebeu algo se aproximando, mas não teve tempo de esboçar qualquer reação. Pela porta por onde passara, com movimentos muito rápidos, entraram apêndices metálicos similares aos tentáculos de um polvo gigantesco, enrolaram-se em suas pernas e tronco e o arrastaram.

Nos tentáculos, o seu tato funcionava perfeitamente. Eles eram gelados; queimavam sua pele e apertavam, machucando.

Jorge foi rapidamente arrastado pelo corredor, pela sala escura e pelo “buraco” aberto na parede e na janela. “Buraco” não diz bem o que se via ali. A parede e a janela não haviam sido quebradas. A melhor forma de descrever seu estado seria dizer que haviam sido “rasgadas”. Não havia lascas de reboco e tinta caindo, nem estilhaços de alumínio ou vidro. Todos os materiais pareciam se comportar como se fossem uma coisa única, como uma tela de um quadro rasgada.

Em frente à casa, de dentro de uma densa nuvem de luz alaranjada, emergia o flanco de uma esfera clara de um material de aparência áspera. Jorge foi rapidamente arrastado pelo jardim em direção a um orifício da esfera. Sem conseguir esboçar uma reação eficaz, moveu seu único membro livre, o antebraço esquerdo, e tentou se agarrar à grama. Mas seus dedos não conseguiram sentir a grama.

O silêncio absoluto persistiu enquanto Jorge era arrastado pela casa. Estranhamente, nem seu corpo nem os tentáculos ao baterem nas paredes haviam produzido qualquer som. Mas, no exato instante em que ele entrou pelo orifício da esfera, o silêncio acabou, um estrondo ensurdecedor e contínuo invadiu sua cabeça e ele pode se lembrar de que ainda tinha audição. Nesse momento a intensidade da luz aumentou tanto que seus olhos doeram, mesmo estando fortemente cerrados.

Então ele sentiu uma dor lancinante em todo corpo. Nenhuma energia lhe restava, e seu espírito estava totalmente entregue ao que viesse. A desorientação, o medo e a dor acabaram com qualquer desejo de resistência. Em sua mente quase vazia, de algum lugar bem fundo vinha a certeza de que ele já não estava mais no jardim de sua casa. A única idéia que restava em seu espírito era a dúvida sobre se voltaria ou não.

Ninguém do mundo de Jorge poderia compreender o que acontecera ali naquela noite. Nenhum físico da Terra teria a mais remota idéia dos tipos de energia e interações envolvidos; nenhum filósofo ou teólogo se atreveria, nem por conjectura, a adivinhar as razões, ou as emoções e impulsos por trás das razões, do que se passara; nenhum louco ou artista, nem em sua mais alucinada fantasia, conseguiria imaginar o alcance, a intensidade e o horror da história que aquele rapto encobria. Um dia, porém, em um futuro distante, impensavelmente distante, descendentes dos homens da Terra viriam a saber, da forma mais crua, do que aquilo tudo se tratava.

Naquela noite, na velha Terra, por alguns instantes, Jorge vivera à margem da história... e o tempo havia parado.

 

© Todos os textos, ilustrações e fotos apresentados neste site têm direitos reservados.
Nenhuma parte deles pode ser copiada, transmitida, gravada ou armazenada em sistemas eletrônicos, nem reproduzida por quaisquer meios sem autorização prévia e por escrito do autor, sob pena das pertinentes sanções legais.
Quando autorizada, a reprodução de qualquer desses textos, ilustrações ou fotos deverá conter referência bibliográfica, com nome do autor e da publicação.
As solicitações para a reprodução de qualquer desses textos pode ser feita através do e-mail contatos@casadacultura.org