MORRER, DORMIR... TALVEZ
SONHAR
André
C S Masini
Era
uma brilhante manhã de sol, e eu acabara de me
sentar à mesa do café. A velha empregada
aproximou-se com olhar triste, meia sem jeito, e contou-me
que na calçada, diante de nosso portão,
havia um cãozinho caído.
Corri
para o portão, e lá estava ele. Era um Fox
Paulistinha, minha raça favorita. Respirava com
dificuldade e não esboçava qualquer reação
ao ser tocado. Exibia pavorosos sinais de maus-tratos,
que prefiro não descrever.
Entrei
e liguei para o veterinário. Ao voltar ao portão,
encontrei duas crianças: uma menina de uns 9 anos
e um menino de uns 6. Estavam sérios, com os olhos
tristes fixos no bichinho. Arfavam, como se suas respirações
pesadas ajudassem o corpo cansado do animalzinho a continuar
respirando. A presença delas ali foi para mim um
grande alívio.
É
surpreendente como -- nas questões realmente essenciais
da vida -- coisas terrenas como força, poder, idade,
e intelecto revelam-se insignificantes... A companhia
daquelas crianças, em toda sua fragilidade, teve
mais valor para mim do que se lá tivessem estado
presidentes, reis, cientistas, ou gênios da literatura.
Tem
gente que pensa, nestes tempos materialistas, que solidariedade
significa gente rica dar coisas para gente pobre.
Mas solidariedade é muito mais: uma
imensa força da natureza humana, que pode ser o
bálsamo para as mais profundas e mais essenciais
feridas da alma. Muitas vezes, o único bálsamo...
Na
calçada estávamos eu, o cãozinho
e as duas crianças...
O veterinário
chegou, fez um breve exame no bicho, e, discretamente,
deu-me a entender que o caso era sem remédio...
Olhei
para as crianças num dilema: elas haviam escolhido
estar ali e tinham absoluto direito de saber a verdade.
Mas eu era um estranho para elas, e revelar-lhes cruamente
o terrível ato que iria ocorrer, talvez fosse rude
demais...
Acabei
pedindo que fossem chamar sua mãe... que ela poderia
ajudar, etc... Elas partiram correndo.
O cãozinho
estava muito mal, já havia sofrido terrivelmente
e era quase um milagre que ainda estivesse vivo, que tivesse
conseguido andar até ali.. Ele havia gastado suas
últimas forças, seus últimos instantes,
sua última intuição... para chegar
ao meu portão, à minha casa...
O veterinário
foi claro: não havia nada a fazer senão
sacrificá-lo e abreviar sua agonia.
Pegamos
o cãozinho e o colocamos no carro. Quando íamos
partir, as crianças reapareceram, num carro, com
sua mãe, trazendo dois potinhos de plástico
com comida e água. Eu disse que o estávamos
"levando", sem maiores explicações.
Despedi-me com um sorriso amarelo, e nunca mais as vi.
Guardo delas uma lembrança afetuosa, de respeito
e solidariedade.
Vida,
morte... chegadas, partidas...
Vinte
anos antes, em um dia ensolarado como aquele, eu pousara
no aeroporto de Quito, no Equador. Fora para trabalhar,
mas chegara como quem cai do céu, como uma criança
que nasce para um mundo novo. Tudo era novidade: a língua,
os costumes, as cidades, a selva. Aos poucos fui conhecendo
aquele estranho mundo, e ele se foi tornando meu lar,
minha vida.
Após
um ano de intenso trabalho, eu estava tão habituado
com aquela vida, que parecia ter estado ali desde o início
dos tempos.
Depois,
em uma nova manhã ensolarada, eu e outro geólogo
voltamos àquele aeroporto para nos despedirmos
de nosso mentor, o "velho professor". Num instante
ele estava ali, como "sempre" estivera, e no
instante seguinte havia partido, para sempre.
Voltei
do aeroporto em silêncio, olhando pela janela do
ônibus. O dia continuava ensolarado, e a cidade
continuava igual, mas o professor já não
estava lá para ver nada daquilo...
Subitamente
me dei conta de que em breve eu próprio partiria,
e também não estaria mais ali, e que aquelas
ruas e casas e selvas tão familiares, aquela "minha
vida", passariam a ser apenas lembranças.
Partidas...
morte...
O veterinário
aplicou a injeção no coração
do cãozinho.
Em
seu instante final, ele saiu do torpor em que estava,
enrijeceu-se e chorou alto, com profundos e sentidos soluços
que jamais esquecerei... a impressão que tive foi
que, apesar de todos sofrimentos que padecera, ele lamentava
partir desta vida... A tristeza e a intensidade daquele
momento foram imensas. Em minha alma ficou gravada, para
sempre, a idéia do apego que o cachorrinho tinha
à vida.
Morrer,
dormir... talvez sonhar...
Não
sei se ele levou lembranças... mas para ele essa
dúvida já não importa nem causa angústia.
A morte
faz parte da vida, parte dessa imensa e maravilhosa unidade
que é a natureza. Não há outra atitude
razoável senão aceitar e respeitar a morte,
seja lá o que ela for. E para nós que ficamos,
resta o bálsamo da solidariedade.
Voltei
para casa. O dia continuava brilhante e ensolarado, e
todas as coisas permaneciam como antes: o portão,
a calçada, o mundo... mas o cãozinho já
não estava mais aqui para ver tudo isso.
* * * * *
O
objetivo desse texto poderia ser apenas um reflexão
sobre a vida e a morte, mas é mais que isso.
Quando
vi aquele heróico cachorrinho -- mesmo irremediavelmente
doente e em imenso sofrimento -- chorar e soluçar
por ter que deixar este mundo, não pude deixar
de pensar nos milhares de outros, que gozam de plena saúde,
mas que são friamente assassinados em nosso nome,
por entidades do Estado Brasileiro, a cada semana.
Essa
foi a herança que o cãozinho deixou: um
grito de alerta para que nós, humanos, compreendamos
a imensa brutalidade que é essa matança.
Os
cães são os maiores companheiros e o maior
presente que a natureza nos deu. Eles nos amam incondicionalmente,
sua fidelidade é sólida como as mais profundas
fibras de suas almas de heróis (que sacrificam
sem hesitação suas vidas para defender seus
donos), sua alegria e seu carinho são lições
que a cada dia nos ensinam a ser melhores e a viver melhor...
Não
tenho idéia de o que fizemos para merecer tamanho
presente...
Deveríamos
agradecer a Deus e à natureza esse presente, e
mostrar permanente respeito e carinho por esses seres
infinitamente alegres e amigos, e que amam tanto a vida,
e que a cada dia nos ensinam a amá-la também
.
Mas,
ao invés disso, criamos "centros de controle
de zoonoses", as malfadadas "carrocinhas",
que capturam os cães pelas ruas e os assassinam
com bestial frieza!
Às
vezes eu penso: o que, afinal, nossa espécie está
fazendo na Terra? aonde queremos chegar? Não nos
contentamos em estar destruindo cada um dos ecossistemas
do planeta, não nos contentamos em nos comportar
como verdadeiros playboys mimados, que -- sem qualquer
consciência ou segundo pensamento sobre o fato de
existirem outros seres -- dilapidamos a herança
que a natureza nos deu, numa verdadeira orgia de inconseqüência.
Não. Além disso tratamos nossos melhores
amigos, os cachorros, como se fossem resíduos descartáveis,
não seres brilhantes e repletos de vida.
Vi
outro dia na TV um certo professor da USP afirmando que
a hostilidade da população contra a carrocinha
é devida à "ignorância",
pois a população não sabe que os
cães podem (sic) "causar doenças".
Pobre criatura vaidosa. Do alto de seu pedestal, ele nem
sequer cogita a hipótese de que o ignorante possa
na verdade ser ele próprio. A tal "população",
as pessoas, pode perfeitamente saber da possibilidade
de um cão transmitir uma doença -- bem como
da possibilidade de outro ser humano transmitir uma doença
-- mas nem por isso precisam acreditar que se deve sair
por aí praticando extermínios.
O
sábio professor nem percebe que seu raciocínio
brota do mesmo campo de onde brotaram as maiores monstruosidades
da história humana. A mente dissociada do coração
é um mecanismo defeituoso e pervertido, que pode
levar para absolutamente qualquer direção
e fazer estragos sem qualquer limite. Não existe
nada mais ignóbil do que a pseudo-sabedoria, que
tenta mostrar a "lógica" de atos monstruosos
através de argumentos "científicos",
mas sem discutir os aspectos éticos da questão.
A
solução para o problema da carrocinhas,
porém, não é de modo algum hostilizar
os funcionários da carrocinha, muitos dos quais
também sofrem com a matança dos animais.
A solução é exigir dos políticos
que a matança seja proibida por lei, e seja substituída
por programas de esterilização e adoção,
como muitos que já existem em curso.
O
autor é Escritor, Auditor Fiscal da Receita Federal
e Diretor Geral da Casa da Cultura.