Casa da Cultura    


Boletim Informativo Semanal

Ano II, número 21 - Quarta-feira, 14 de julho de 2.004   

Casa da Cultura Literatura Trabalhos de A. C. Masini


    Exemplar de Assinante Conveniado    

Bom Dia, Amigo(a) Assinante, (ou Boa Noite) 

A GRANDE Literatura de Ruy Câmara: Quando pela primeira vez tive um texto desse intelectual pernambucano em mãos, bastaram poucas linhas para compreender que estava diante de um Grande Escritor. "Grande", digo, como os maiores: Mário Palmério, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha, José Lins do Rego. Sua narrativa é enxuta, direta, e prende a atenção como poucas: a primeira palavra leva-nos necessariamente, e sem qualquer esforço, à última. Mas acima de tudo o que o destaca são suas riquíssimas imagens... como o "par de olhos famintos sobre quatro patas raquíticas, traquina com os olhos" que deseja em vão abocanhar uma sombra que se move no chão... Seu texto deixa uma indelével sensação na alma, como só as maiores obras de arte deixam.
Assim é a história que publicamos aqui hoje, sobre um cão, um menino e um lagarto: "A Tríade do Inferno". Desfrute-a, caro leitor ou leitora, pois ela está entre as melhores obras de arte que a Casa da Cultura pode oferecer. (André Masini)
Publicamos também, do mesmo autor, as crônicas:
[Um Dia Sem Pressa de Acabar]
[Águas Mortas]

O Humor Sarcástico de Carlos Couto: Esse poeta e ensaísta, engenheiro de formação, surpreende por sua despretensão. "Reflexões de cultura rasa," é uma das formas como ele descreve seu próprio livro: "Denúncia Vadia", que na verdade é muito mais que isso. É um conjunto de pensamentos e reflexões, sempre muito bem humorados, que lançam um olhar crítico e um tanto sarcástico sobre nossa vida prática, problemas e frustrações cotidianos:

  • Planos todos possuem, difícil é encontrar idiotas suficientemente dispostos a querer pô-los em
  • prática.

  • Ajudar sempre ao próximo torna próximo quem sempre precisa de ajuda.

  • Sem motivação para continuar nem coragem para desistir, acreditava naquilo que dizia: "Vou levando minha vida".

  • O culpado nunca está presente.

  • Quanto mais rica e extensa a teoria, menor serão as chances de que funcione na prática.

  • É inútil querer solucionar todos os problemas, afinal, tentar resolvê-los consiste em tarefa contínua que preenche o tempo da existência humana.

  • Uma coisa é certa: o erro.

Veja a série completa em nosso site:
[Frases do livro Denúncia Vadia]

Muitas outras obras, dos mais diversos gêneros, todas gratuitas e sem propaganda de qualquer tipo, você encontra em nosso sítio WEB, não deixe de nos visitar. Agora temos um mural informativo das últimas novidades, atualizado diariamente: [Link para o mural de últimas novidades da Casa da Cultura]

Um abraço fraternal,
Casa da Cultura

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Obrigado.


A Tríade do Inferno

 

Ruy Câmara

 

Meio dia. A luz intensa rompe um escampado de nuvens brancas e penetra por entre os galhos do cedro sem folhas. A sombra se move de um lugar ao outro, açoitada pelo vento escaldante. Pisando nela, um par de olhos famintos sobre quatro patas raquíticas. Traquina com os olhos. Deseja abocanhá-la em vão. Nesse cenário de miséria e delírio tudo que se move existe e se existe ou é alimento ou ameaça. Uma decisão quase negada, talvez a última, diz de si para si mesma: vai caçar um bicho! Da sombra saem dois vultos, um Menino tísico, cabeção e asmático, seguindo um Cão esquálido e rabugento, cor de raposa. Os dois tomam um rumo qualquer. Tudo é caatinga. Prosseguem sem esperanças. No íntimo pressentem que um êxito qualquer exterminará tudo de uma vez por todas. Do modo como o Cão está farejando, o Menino pode adivinhar onde está a vítima, o sustento de um dia infeliz, certamente o último. Num trocar de passos o Cão fica estático e atento. Contrai-se sobre o esqueleto quase visível. Rastros de um vivente exausto de fuga continua ali, grudado à terra rachada. A aparição inoportuna do Menino é ignorada pelo Cão, que continua farejando no rastro do que supõe ser uma solução ou o caos. “Se o Menino acertar a pedrada eu morrerei de fome”, raciocina o quadrúpede com egoísmo. Sem disfarçar o entusiasmo o Menino prepara o arremesso. O Cão levanta as orelhas, o rabo, fareja o ar como quem respira indícios de sobrevivência. Um chiado sobre folhas secas denuncia-se. O silêncio agônico do momento imobiliza os parceiros. Segundos de espera. O vivente agora é reconhecido pelo mais desprezível e envergonhador meio de existência: rastejar de fome sobre o próprio ventre e às escondidas. O Menino alegra-se com a possibilidade. O Cão nem tanto. Sabe por experiência própria que a caça não será repartida. Contudo, espreita o momento certo para o ataque. Desesperados como estão os parceiros já ultrapassaram a condição de aliados e logo, logo se tornarão inimigos. O Lagarto pressente que tem agora um só destino: escapar. O farejador apronta-se numa posição estática sobre três patas. O Menino pára no preciso instante em que seu pé de apóio esmaga um graveto teso de sequidão. Nessas horas tensas o estalar de um graveto pode ser o fim. Num esforço extenuado o Menino alonga-se por cima do arbusto e joga a pedra no local suspeito. Em disparada fuga vai o Lagarto e na perseguição o vira-lata perde-se de vista. Seus latidos ecoam no espaço. “Acua, acua”, grita o Menino, já em marcha corrida na direção do comparsa. No desespero salvífico o Lagarto entoca-se num buraco entre um pedregulho e um formigueiro e aí mantém-se quieto como se tivesse plena consciência de que sua vida está numa situação crítica. Os latidos do Cão aumentam o desespero de quem passou de caçador esfomeado e solitário à caça. “É um Tejo” grita o Menino atiçando o Cão, que no íntimo desconfia do seu proveito. Ambos sabem que algum êxito vai depender do esforço conjunto ou de muita espera. Mas a fome não pode esperar. O Menino expectora os brônquios, corta uma vara de marmeleiro e começa a estocar. O Cão permanece numa inquietação feroz, mostrando os caninos ao buraco em desespero. Lambe em seco o focinho goela adentro e torna a ladrar. Da toca sai um cheiro de banquete ameaçado. Acuado, o Lagarto respira fundo na esperança de empreender uma nova fuga. Pela demora da decisão deve estar ciente de que desta vez não sobreviverá inteiro. Agora que se acomodou na toca ocorreu de ter uma idéia: seu rabo tornará a crescer se conseguir cortá-lo. Mas precisa ser rápido para ludibriar o olhar e o faro obscuro da fera. Num ato de superação instintiva o Lagarto ergue-se por cima do dorso, alcança a cauda e com a dentição afiada, corta-lhe um pedaço para saciar a gana do inimigo no momento da fuga iminente. Cansado pelo esforço hercúleo e esvaindo-se em sangue, ainda acredita ser possível saciar o desejo voraz do inimigo para desaparecer na imensidão da caatinga. Só o instinto é capaz de ignorar que a sobrevivência em tais condições é uma utopia impossível, indigna da mais medíocre lógica. O Lagarto reúne todas a forças e de repente um chiado corre em desesperada fuga e desaparece na caatinga, deixando nas presas do esganado boa parte da sua cauda. Duas bocadas e pronto. Em segundos a catástrofe planejada fora devorada sem remorsos. O Menino olha para o companheiro com desprezo e raiva. Está completamente desnorteado. O Cão está quieto, desconfiado, com o rabo entre as pernas em posição de medo. Por certo lembrou que na semana anterior não tivera direito sequer ao esqueleto da última vítima. A ossada torrada e pilada fora misturada à farinha de mucunã e comida pelo Menino. Em toca segura o Lagarto contorce-se na dor secreta, desejando a desgraça ruir sobre os inimigos. Apesar das dores ele começa a lamber a ferida com o orgulho máximo de quem se presume sobrevivente. Distante da toca o Menino começa a delirar sob o firmamento aberto, de onde vem um brilho escaldante. A sede aumenta. Mirando uma sombra ele jura vingança ao seu parceiro, que se deita ao lado fingindo arrependimento. O Menino olha para o Cão como se quisesse lhe dizer que a dor e fome nas plagas sertanejas são irmãs gêmeas, como gêmeos são o egoísmo e o ódio. As horas passam devagar. O espetáculo mórbido parece ser o prenúncio de uma grande tragédia, uma tragédia sem culpados, sem testemunhas. Súbito o Menino sangra o Cão e bebe-lhe o sangue. Em seguida come-lhe a carne. O calor aumenta, vêm os engulhos, os delírios, e um tombo é ouvido na caatinga. Já é quase noite quando o Lagarto aproxima-se lambendo o espetáculo mórbido. Nesse espetáculo é custoso admitir que a morte é um caos sem providência divina, nem que a seca no Nordeste do Brasil é só um problema de incompreensão.


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