Bom
Dia, Amigo(a) Assinante, (ou Boa Noite)
A
GRANDE Literatura de Ruy Câmara: Quando pela
primeira vez tive um texto desse intelectual pernambucano
em mãos, bastaram poucas linhas para compreender que
estava diante de um Grande Escritor. "Grande",
digo, como os maiores: Mário Palmério, Graciliano
Ramos, Euclides da Cunha, José Lins do Rego. Sua narrativa
é enxuta, direta, e prende a atenção
como poucas: a primeira palavra leva-nos necessariamente,
e sem qualquer esforço, à última. Mas
acima de tudo o que o destaca são suas riquíssimas
imagens... como o "par de olhos famintos sobre quatro
patas raquíticas, traquina com os olhos" que deseja
em vão abocanhar uma sombra que se move no chão...
Seu texto deixa uma indelével sensação
na alma, como só as maiores obras de arte deixam.
Assim é a história que publicamos aqui hoje,
sobre um cão, um menino e um lagarto: "A Tríade
do Inferno". Desfrute-a, caro leitor ou leitora, pois
ela está entre as melhores obras de arte que a Casa
da Cultura pode oferecer. (André Masini)
Publicamos também, do mesmo autor, as crônicas:
[Um
Dia Sem Pressa de Acabar]
[Águas
Mortas]
O
Humor Sarcástico de Carlos Couto: Esse poeta
e ensaísta, engenheiro de formação, surpreende
por sua despretensão. "Reflexões de cultura
rasa," é uma das formas como ele descreve seu
próprio livro: "Denúncia Vadia", que
na verdade é muito mais que isso. É um conjunto
de pensamentos e reflexões, sempre muito bem humorados,
que lançam um olhar crítico e um tanto sarcástico
sobre nossa vida prática, problemas e frustrações
cotidianos:
- Planos todos possuem, difícil é encontrar
idiotas suficientemente dispostos a querer pô-los
em
prática.
- Ajudar sempre ao próximo torna próximo quem
sempre precisa de ajuda.
- Sem motivação para continuar nem coragem
para desistir, acreditava naquilo que dizia: "Vou levando
minha vida".
- O culpado nunca está presente.
- Quanto mais rica e extensa a teoria, menor serão
as chances de que funcione na prática.
- É inútil querer solucionar todos os problemas,
afinal, tentar resolvê-los consiste em tarefa contínua
que preenche o tempo da existência humana.
- Uma coisa é certa: o erro.
Veja
a série completa em nosso site:
[Frases
do livro Denúncia Vadia]
Muitas
outras obras, dos mais diversos gêneros, todas
gratuitas e sem propaganda de qualquer tipo, você encontra
em nosso sítio
WEB, não deixe de nos visitar. Agora temos um mural
informativo das últimas novidades, atualizado diariamente:
[Link
para o mural de últimas novidades da Casa da Cultura]
Um
abraço fraternal,
Casa da Cultura
AJUDE A DIVULGAR A CASA DA CULTURA retransmitindo nossas comunicações
a seus amigos e conhecidos.
Obrigado.
A
Tríade do Inferno
Ruy Câmara
Meio
dia. A luz intensa rompe um escampado de nuvens brancas
e penetra por entre os galhos do cedro sem folhas. A sombra
se move de um lugar ao outro, açoitada pelo vento
escaldante. Pisando nela, um par de olhos famintos sobre
quatro patas raquíticas. Traquina com os olhos.
Deseja abocanhá-la em vão. Nesse cenário
de miséria e delírio tudo que se move existe
e se existe ou é alimento ou ameaça. Uma
decisão quase negada, talvez a última, diz
de si para si mesma: vai caçar um bicho! Da sombra
saem dois vultos, um Menino tísico, cabeção
e asmático, seguindo um Cão esquálido
e rabugento, cor de raposa. Os dois tomam um rumo qualquer.
Tudo é caatinga. Prosseguem sem esperanças.
No íntimo pressentem que um êxito qualquer
exterminará tudo de uma vez por todas. Do modo
como o Cão está farejando, o Menino pode
adivinhar onde está a vítima, o sustento
de um dia infeliz, certamente o último. Num trocar
de passos o Cão fica estático e atento.
Contrai-se sobre o esqueleto quase visível. Rastros
de um vivente exausto de fuga continua ali, grudado à
terra rachada. A aparição inoportuna do
Menino é ignorada pelo Cão, que continua
farejando no rastro do que supõe ser uma solução
ou o caos. “Se o Menino acertar a pedrada eu morrerei
de fome”, raciocina o quadrúpede com egoísmo.
Sem disfarçar o entusiasmo o Menino prepara o arremesso.
O Cão levanta as orelhas, o rabo, fareja o ar como
quem respira indícios de sobrevivência. Um
chiado sobre folhas secas denuncia-se. O silêncio
agônico do momento imobiliza os parceiros. Segundos
de espera. O vivente agora é reconhecido pelo mais
desprezível e envergonhador meio de existência:
rastejar de fome sobre o próprio ventre e às
escondidas. O Menino alegra-se com a possibilidade. O
Cão nem tanto. Sabe por experiência própria
que a caça não será repartida. Contudo,
espreita o momento certo para o ataque. Desesperados como
estão os parceiros já ultrapassaram a condição
de aliados e logo, logo se tornarão inimigos. O
Lagarto pressente que tem agora um só destino:
escapar. O farejador apronta-se numa posição
estática sobre três patas. O Menino pára
no preciso instante em que seu pé de apóio
esmaga um graveto teso de sequidão. Nessas horas
tensas o estalar de um graveto pode ser o fim. Num esforço
extenuado o Menino alonga-se por cima do arbusto e joga
a pedra no local suspeito. Em disparada fuga vai o Lagarto
e na perseguição o vira-lata perde-se de
vista. Seus latidos ecoam no espaço. “Acua,
acua”, grita o Menino, já em marcha corrida
na direção do comparsa. No desespero salvífico
o Lagarto entoca-se num buraco entre um pedregulho e um
formigueiro e aí mantém-se quieto como se
tivesse plena consciência de que sua vida está
numa situação crítica. Os latidos
do Cão aumentam o desespero de quem passou de caçador
esfomeado e solitário à caça. “É
um Tejo” grita o Menino atiçando o Cão,
que no íntimo desconfia do seu proveito. Ambos
sabem que algum êxito vai depender do esforço
conjunto ou de muita espera. Mas a fome não pode
esperar. O Menino expectora os brônquios, corta
uma vara de marmeleiro e começa a estocar. O Cão
permanece numa inquietação feroz, mostrando
os caninos ao buraco em desespero. Lambe em seco o focinho
goela adentro e torna a ladrar. Da toca sai um cheiro
de banquete ameaçado. Acuado, o Lagarto respira
fundo na esperança de empreender uma nova fuga.
Pela demora da decisão deve estar ciente de que
desta vez não sobreviverá inteiro. Agora
que se acomodou na toca ocorreu de ter uma idéia:
seu rabo tornará a crescer se conseguir cortá-lo.
Mas precisa ser rápido para ludibriar o olhar e
o faro obscuro da fera. Num ato de superação
instintiva o Lagarto ergue-se por cima do dorso, alcança
a cauda e com a dentição afiada, corta-lhe
um pedaço para saciar a gana do inimigo no momento
da fuga iminente. Cansado pelo esforço hercúleo
e esvaindo-se em sangue, ainda acredita ser possível
saciar o desejo voraz do inimigo para desaparecer na imensidão
da caatinga. Só o instinto é capaz de ignorar
que a sobrevivência em tais condições
é uma utopia impossível, indigna da mais
medíocre lógica. O Lagarto reúne
todas a forças e de repente um chiado corre em
desesperada fuga e desaparece na caatinga, deixando nas
presas do esganado boa parte da sua cauda. Duas bocadas
e pronto. Em segundos a catástrofe planejada fora
devorada sem remorsos. O Menino olha para o companheiro
com desprezo e raiva. Está completamente desnorteado.
O Cão está quieto, desconfiado, com o rabo
entre as pernas em posição de medo. Por
certo lembrou que na semana anterior não tivera
direito sequer ao esqueleto da última vítima.
A ossada torrada e pilada fora misturada à farinha
de mucunã e comida pelo Menino. Em toca segura
o Lagarto contorce-se na dor secreta, desejando a desgraça
ruir sobre os inimigos. Apesar das dores ele começa
a lamber a ferida com o orgulho máximo de quem
se presume sobrevivente. Distante da toca o Menino começa
a delirar sob o firmamento aberto, de onde vem um brilho
escaldante. A sede aumenta. Mirando uma sombra ele jura
vingança ao seu parceiro, que se deita ao lado
fingindo arrependimento. O Menino olha para o Cão
como se quisesse lhe dizer que a dor e fome nas plagas
sertanejas são irmãs gêmeas, como
gêmeos são o egoísmo e o ódio.
As horas passam devagar. O espetáculo mórbido
parece ser o prenúncio de uma grande tragédia,
uma tragédia sem culpados, sem testemunhas. Súbito
o Menino sangra o Cão e bebe-lhe o sangue. Em seguida
come-lhe a carne. O calor aumenta, vêm os engulhos,
os delírios, e um tombo é ouvido na caatinga.
Já é quase noite quando o Lagarto aproxima-se
lambendo o espetáculo mórbido. Nesse espetáculo
é custoso admitir que a morte é um caos
sem providência divina, nem que a seca no Nordeste
do Brasil é só um problema de incompreensão.
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