André
C S Masini
Desde
a aurora dos tempos, escritores têm procurado definir
a hipocrisia:
"O
homem é único animal que consegue se manter
em atitude amistosa com a vítima que tenciona devorar,
até devorá-la." (Samuel Butler).
"Eu
me sento sobre as costas de um homem, sufocando-o e obrigando-o
a me carregar, mas garanto que desejo aliviar seu sofrimento
por qualquer meio possível -- exceto sair de suas
costas." (Tolstoi).
Hoje,
porém, todo esse acervo literário parece
ultrapassado, pois George Bush está conseguindo
realizar, na prática, aquilo que a mais sinistra
ficção ousara somente imaginar: "Eu
falo de paz, enquanto minha oculta hostilidade, dissimulada
sob um sorriso de segurança, flagela o mundo."
(Shakespeare).
A
catástrofe do Iraque surgiu unicamente da vontade
de Bush. Ele buscou a guerra obstinadamente, por todos
os meios possíveis. Fez-se de surdo aos inspetores
da ONU, que afirmavam não haver armas de destruição
em massa; surdo aos apelos do mundo, que pedia diplomacia.
Fez chantagem, ameaçou
países, apresentou provas forjadas...
Reveladora
é a frase que o sutil Secretário de Defesa,
Donald Rumsfeld, deixou escapar no início da guerra:
"Se essa gente (os iraquianos) fosse minimamente
racional, eles simplesmente deporiam suas armas."
Ou seja, diante da esmagadora superioridade bélica
estadunidense, seria "ilógico" para os
iraquianos morrer lutando.
De
um ponto de vista estritamente matemático, Rumsfeld
tinha razão. Em um raciocínio frio e "contábil",
para os iraquianos seria mais "racional " deixar
os estadunidenses invadir e tomar conta do petróleo,
deixar a Halliburton apoderar-se das obras... Seria mais
"lógico" ceder, que morrer enfrentando
uma força infinitamente maior que eles próprios.
Se
os homens fossem máquinas, e no lugar do coração
tivessem pedras, e no lugar de almas tivessem só
ganância e covardia, Rumsfeld e Bush teriam acertado.
Mas erraram ao julgar os outros por si próprios.
A verdade é que o ser humano raramente é
"lógico", e a vida não pode ser
"calculada" como uma planilha de contabilidade.
Por mais "irracional" que pareça ao senhor
Rumsfeld, um ser humano muitas vezes prefere a morte do
que ceder a um conquistador poderoso e arrogante.
Mas,
em um ponto, Bush estava certo. Se a guerra realmente
tivesse sido como ele esperava, todos seus pecados teriam
sido perdoados: As mentiras, esquecidas. A reeleição,
garantida. O butim de sua quadrilha, bilionário;
e ninguém se lembraria dos milhares de inocentes
mortos. Seriam apenas cinzas no limbo da História,
como tantas outras barbaridades esquecidas.
Mas
a guerra reservava surpresas. Hoje, diante do crescente
amontoado de cadáveres estadunidenses, que faz
Bush? Simplesmente, coloca a culpa no serviço secreto.
Pobre
Bush, foi "levado" a declarar guerra...
Para
coroar a hipocrisia, surge o escândalo da tortura
de prisioneiros iraquianos.
Bush
se mostra indignado, aponta o dedo para seus míseros
soldados, e promete puni-los. Mas a verdade, por trás
dessa encenação, é outra.
A
história começou em 2002, quando Bush (sim,
ele próprio) "decretou" que as Convenções
de Genebra não se aplicariam a "certos"
prisioneiros dos EUA. Que algumas autoridades estadunidenses
poderiam, num clicar de dedos, decidir que certa pessoa
simplesmente não teria mais direito a qualquer
proteção legal. Bastaria pronunciarem a
palavra mágica, "terrorista", e poderiam
fazer com a pessoa o que bem entendessem.
As
conseqüências disso foram mostradas exaustivamente
na TV: os tais prisioneiros sem direito à proteção
das Convenções de Genebra, os párias
da humanidade, sendo humilhados, com sacos na cabeça,
arrastados, jogados em buracos incomunicáveis...
no Afeganistão, Guantánamo, Iraque...
Os
próprios EUA admitiram "métodos agressivos
de interrogatório", "privação
de sono", "suicídios". Mas Bush
considerava tudo isso "perfeitamente legal"
(isso
foi denunciado até aqui mesmo, nesta coluna, em
09/04/2003).
Então,
surgem as imagens das torturas no Iraque, e Bush (pasmem)
finge enorme surpresa!
Mas,
afinal, qual é a novidade?
Bush
deveria tentar explicar aonde exatamente acaba sua "legalidade",
e onde começam os "crimes" de seus soldados
torturadores.
Henrique
IV? Ricardo III? Iago? Qual nada!
Cala
tudo o que o antigo Shakespeare canta, que outro patife
mais falso se alevanta!
O
autor é Escritor, Auditor Fiscal da Receita Federal
e Diretor Geral da Casa da Cultura.