Artigo:
O
artigo dessa semana, "Bicha explode no ar!",
é uma engraçadíssima crônica
sobre dois assuntos cuja relação está
longe de ser óbvia: os incômodos das viagens
aéreas e a maldade humana. O artigo foi publicado
hoje, 03/03/04, no Jornal O Paraná.
Para
ler outras crônicas humorísticas de André Masini,
acesse: [http://www.casadacultura.org/andre_masini/artigos/index.html]
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Artigo:
BICHA
EXPLODE NO AR!
André
C S Masini
Certa vez, passando
diante de uma banca de jornais na cidade de São Paulo,
eu deparei com a seguinte manchete:
"Bicha explode no
ar!"
Aquilo me pareceu
tão assombroso, que não pude evitar me misturar
ao bolo de pessoas paradas que liam os jornais expostos.
A manchete era um
tablóide sensacionalista, já extinto, chamado
Notícia Popular, mas bastavam duas linhas
da matéria para entender que, obviamente, ninguém
tinha "explodido no ar".
Ao lado do NP,
o sóbrio Estadão tratava do mesmo fato
sob o título: "Cabeleireiro ameaça a tripulação
em vôo comercial." A matéria dizia: "Fulano
de tal, 29 (...) sofreu uma crise nervosa no vôo tal
e ameaçou perfurar uma lata de laquê, o que,
segundo ele, causaria a explosão do avião
(...) foi preso e depois liberado..."
À parte o
incrível exemplo de como uma mesma história
pode ser noticiada e contada de maneiras distintas, o caso
me chamou a atenção por outro aspecto. Eu
me pus a imaginar o que teria passado na cabeça das
pessoas, fechadas numa lata com centenas de outras, a vários
quilômetros de altura, assistindo alguém ameaçar
explodir tudo com um spray de laquê...
Pareceu-me até
engraçado... Até que, anos depois, eu passei
por situação semelhante:
Eu tentava voltar
de Fortaleza para São Paulo, por uma das recém
criadas empresas aéreas econômicas...
Às duas da
manhã, depois de cinco horas de atraso, as pessoas
na fila para o embarque pareciam um grupo de refugiados
de alguma catástrofe: abatidos, exaustos e com os
nervos à flor da pele. Durante todo o tempo que esperáramos
ali, não havíamos visto um único funcionário
da companhia, até que de repente apareceu um homem
com chapeuzinho de aviador (seria ele o próprio piloto?)
e, sem dizer palavra, abriu a porta soltando a manada para
disputar o embarque no tapa.
Apesar do corre-corre
e do empurra-empurra, acabamos todos dentro do avião,
ainda bufando de impaciência, mas ao menos aliviados
por termos conseguido embarcar. Parecia que chegaríamos
em casa...
A comissária
(sim, havia uma) deu a famosa ordem para "colocar os encostos
na posição vertical"... e foi aí que
tudo começou:
De meu lugar, pude
ver, pouco atrás, uma senhora lutando com a própria
poltrona. Quando entendeu que a poltrona não pararia
mesmo na vertical, ela ergueu-se, os olhos desvairados,
e, com o avião já na pista, gritou para a
comissária:
-- Pare o avião!
Eu vou procurar outra cadeira! Não decole até
eu dar ordem!
(Para muitos, depois
de cinco horas de espera, aquilo pareceu um insulto.)
Mas a comissária
fingiu não ouvir, e o avião decolou, enquanto
a mulher equilibrava-se pelo corredor e sumia em direção
à calda.
Lá da frente
nós não vimos nada. Mas quando a mulher chegou
à única outra cadeira livre do avião,
e descobriu que aquela também estava quebrada...
ela entrou em pânico!
Ao pousarmos na escala
em Recife, ela reapareceu discursando no corredor, ordenando
a todos que descessem e exigindo que o avião ficasse
no solo até que se fizesse uma revisão completa.
Aos trambolhões
ela saiu, e eu ouvi um funcionário na escada explicando
a ela que só haveria lugar em outro vôo daí
a três semanas.
Torci para que a
mulher não voltasse, mas, meia hora depois, quando
a porta do avião se fechava, ela reapareceu, esgueirando-se
pela última fresta. Continuou berrando sobre o risco
daquele vôo. Os passageiros apenas resmungaram entre
dentes.
Mas aí o avião
se pôs em movimento, e, como por mágica, a
mulher sentou-se e aquietou-se.
Tudo acabara bem:
seguíamos a caminho de casa, e a mulher se calara.
Mas aí, surpreendentemente,
os outros passageiros, aqueles inofensivos cidadãos
que só queriam voltar pra casa, resolveram se manifestar.
O curioso é
que, enquanto a mulher esbravejava ameaçadoramente,
ninguém falara nada; mas, agora que se aquietara,
passavam a zombar dela, com comentários em voz alta,
risadinhas maldosas, e até ficando de joelhos na
poltrona para encará-la. Um jovem advogado a ridicularizava
em jargão jurídico, uma adolescente a fitava
e ria, parecendo estar num êxtase de alegria.
A infeliz se encolhera
na poltrona e ouvia a tudo quieta, como um animal assustado.
Não que eu
achasse que ela não houvesse errado, muito menos
que as pessoas não devam responder por seus atos.
Acho até que, houvesse a cena se prolongado, teria
sido correto que a tripulação a retirasse
do avião. Mas algo muito diferente é alguém
se valer de uma situação como essa para, covardemente,
exercer seu sadismo.
Quando o avião
pousou, um homem fez um incompreensível discurso,
acusando-a entre outras coisas de ser "atéia"...
e todos aplaudiram histericamente...
Já era demais!
A meu lado, um distinto
senhor negro, que não dera um pio a viagem toda,
balançou a cabeça em desaprovação.
De algum lugar, veio
a voz de um jovem homossexual:
-- Cheeega gente!
Mas não chegou.
Uma hora depois,
quando a mulher pegava o táxi diante de mim, ainda
havia um jovem zombando dela.
Naquela noite, a
bicha explodira no ar!
A bicha da maldade
humana, que vem à tona explosivamente, sempre que
lhe dão oportunidade.