EDIÇÃO
ESPECIAL CLAUDIO WILLER
Zoommp! Eis que nosso velho boletim reaparece, materializado
do nada, como que voltando de hiperespaço. Reaparece
assim de repente, da mesma forma que desapareceu em outubro
de 2006, após sua última edição.
Parece que foi ontem, mas já faz 4 anos... E não
foi a relatividade ou o hiperespaço, mas simplesmente
essa nossa vida passando rápido...
Desculpas a todos que sentiram falta da publicação.
Foram as escolhas e prioridades que todos somos obrigados
a fazer que nos afastaram de nosso delicioso trabalho de conhecer,
examinar e divulgar obras literárias e outras artes,
aqui na Casa da Cultura.
Éramos pontuais e confiáveis como a Loteria
Federal, agora mais parecemos uma escritura de propriedade
do Viaduto do Chá (interessado? estamos vendendo! baratinho!
oportunidade única!! ).
O que nos traz de volta ao mundo é um acontecimento
literário-cultural que eu, André, achei que
merecia ser divulgado (no que fui apoiado pela Elizangela):
o lançamento de um livro que para mim tem um significado
muito especial: “Um obscuro encanto”, de Claudio
Willer.
Nosso país tem alguns escritores-ensaístas
que além de sinceros com seu trabalho, e de produzirem
textos que realmente valem a pena ser lidos, gozam de reconhecimento
público escrevendo para os principais jornais do país
e para nossas mais importantes revistas de literatura. Dentre
eles eu conheci apenas um pessoalmente: Claudio Willer.
Mas minha admiração por Willer vinha de muito
antes.
Começou quando descobri sua qualidade como tradutor:
Willer é provavelmente o principal tradutor e divulgador
brasileiro da obra do poeta estadunidense Allen Ginsberg.
Ele também publicou resenhas e coordenou incontáveis
grupos de estudos sobre contemporâneos de Ginsberg como
Jack Kerouac, William Burroughs, e outros. Esses autores são
normalmente identificados por “Geração
Beat”. Assumindo o risco de parecer simplório,
eu tentaria descrever esses autores como pessoas que não
quiseram ou não conseguiram se ajustar à hipocrisia
e ao formalismo da sociedade estadunidense dos anos 50, e
partiram em busca algo mais verdadeiro. Voltaram-se para suas
próprias almas, através da liberdade de se expressar
espontaneamente, sem necessidade de respaldo intelectual ou
institucional; do inconformismo; da liberdade de perambular
(“por o pé na estrada”, como fizemos alguns
de nós por aqui nos anos 60 e 70); da busca de uma
nova percepção do mundo, inclusive através
do uso de drogas como o LSD.
Naturalmente essa busca produziu textos também livres
e espontâneos que apresentavam grandes dificuldades
de tradução. Para quem como eu passou muitos
anos estudando e praticando tradução, a leitura
de um texto traduzido, mesmo um cujo original jamais foi visto,
pode ser bastante incômoda. Uma infinidade de detalhes
podem “emperrar” a fluência. Cito apenas
dois como exemplo: frases mal digeridas que acabam se tornando
estranhas ou desconfortáveis em língua portuguesa,
ou o uso de palavras de origem etimológica idêntica
à do texto original, mas que em português ficam
fora de contexto, ou geram construções sintáticas
não-naturais. Mas, longe disso, a leitura de “Uivo,
Kaddish e outros poemas de Allen Ginsberg” foi uma experiência
sem sobressaltos, tão fluente que o texto foi me levando,
até eu esquecer que aquilo era uma tradução.
Somente depois me dei conta que havia lido um trabalho de
Tradução intocável, e que Cláudio
Willer havia conseguido realizar algo muito difícil.
O poética de Ginsberg está longe de ser meu
estilo favorito, mas seu pensamento é para mim de grande
interesse. Nosso movimento hippie dos anos 60 é influência
direta desses pioneiros, e faz parte de minha vida. Minha
primeira experiência das agruras do escritor independente
foi aos 8 anos de idade, na feira da praça da República,
tentado vender um livro de poesias de uma amiga de minha mãe.
Por vários domingos circulei pela feira com um exemplar
de “O sorriso do menino negro” na mão.
Nunca vendi nenhum.
Minha segunda experiência com a obra de Willer foi
muito mais intensa, surpreendente e até chocante. Ao
ler seu texto auto-biográfico “Volta”,
pela primeira vez me dei conta de quanto a literatura que
eu devorara e recriara em minha mente por toda a vida, situava-se
em paisagens exóticas! Do Rio de Janeiro do século
19 de Machado de Assis, aos sertões de Mário
Palmério, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha
e Vargas Llosa; dos campos de neve cobertos de sangue de Tostoi,
ao inacessível interior da Argélia dos pais
de Camus; do mundo assombroso de Poe, aos mundos extraterrenos
de Heinlein; e assim por diante. Claro que sempre houve crônicas
de jornal, ou outras obras de pouco peso, mas essas não
contam. Estou falando de livros que marcam, que tornam-se
referências, abrem portas para compreensão do
ser humano e da vida. Que recordamos recorrentemente em súbitos
instantes de nossas vidas.
Ao começar a ler “Volta”, deparei-me com
Higienópolis, Liberdade, Teatro Municipal, o Clubinho
da Rua Bento Freitas, os anos 70 e seus poetas e hippies,
o movimento político que eu vivi. Depois o bar Persona,
do Roberto Campadello, na Treze de Maio. O livro enveredava
por lugares e tempos que cruzavam com “minha vida”,
como uma história paralela à minha própria.
Imaginei como milhões de outras histórias dos
milhões de pessoas que habitavam São Paulo também
se cruzavam...
Aquela história porém era particularmente
interessante. O texto vibrante e repleto de imagens e sensações
que ficam gravadas na mente, com passagens de pura poesia
em prosa, e com freqüente uso de um recurso literário
que me agrada muito, o contraste: "O silêncio
do teatro vazio e a tranqüilidade de um domingo à
noite" contraposto à correria e caos de antes,
e ao furacão que viria depois... As personagens, que
são ou foram na verdade pessoas, como o Augusto, apesar
de não serem nitidamente delineadas, são riquíssimas
em sugestões e (não sei explicar como) tornam-se
marcantes.
O estilo do autor é suave e sutil, os dramas ou intensidades
acontecem porque são parte da vida, mas o autor os
desenha sem qualquer realce nas pinceladas ou cores. Porém,
curiosamente, para mim esses dramas e intensidades ficaram
gravados de forma extremamente exacerbada, diversas passagens
e imagens do livro me trazem melancolia e até tristeza.
Não compreendo bem isso, acho que porque o livro é
tão próximo de minha vida, acho que a tristeza
vem mais de mim que do autor. Uma passagem particular ficou
gravada de modo muito intenso. É a saga de um exemplar
de “Dias Circulares”, que primeiro surge como
parte de uma dupla dos dois primeiros exemplares da obra.
Ele é autografado e dado a um amigo do autor que tempos
depois falece, mas o exemplar inexplicavelmente “Volta”
às mãos do autor que o encontra no topo de uma
pilha de livros em um sebo. Eu vejo essa cena do sebo tão
nitidamente, como se tivesse acontecido comigo.
O livro também tem um intrigante interligação
de passado e futuro, com alusões que ficam pairando
para serem retomadas posteriormente, e outras que nos remetem
a passagens anteriores.
Alguns trechos:
Em uma certa Feira de Poesia (pp. 14-15), Willer consegue
ao mesmo tempo mostrar a situação externa e
o subjetivismo do narrador. O autor utiliza pontuação
livre, um estilo que dificilmente me agrada (pelo simples
fato de tornar o texto menos inteligível do que um
com pontuação ortodoxa). Mas seu resultado é
tão bom que a ousadia da linguagem acaba justificada.
O texto é intocável:
"... paro para autografar, rodeia-me um torvelinho
de pessoas a quem ainda reconheço, passam por mim Osvaldo
e Augusto, acelerados mensageiros na maratona por alguma providência
cujo sentido me escapa, volto a ser sorvido pela multidão
e já estamos na segunda noite, os dias se emendam,
a festa suprimiu o tempo intermediário, horas tragadas
em um desvão do sonho onde jamais saberei onde estive
e o que fiz..."
Em certos trechos o livro transforma-se em pura poesia, como
no capítulo 6, que começa com as palavras "Tânia
Mergulhava", e depois é o texto que “mergulha”
em palavras e simbologias e insinuações aquáticas
e sensuais.
"... ampla casa térrea com um pátio
de redes estendidas, úmido poço de vegetação
onde ficava em seus dias marítimos. Tânia viajava
na difusa paisagem entrevista pelo vidro de sua máscara
de mergulho, a distinguir formas distorcidas por trás
das cores reduzidas a tonalidades de sombra, enquanto experimentava
a substituição de todas as sensações
corpóreas por gradações do frio."
(...)"uma nova espécie de organismo, ..."
(...)"... uma viscosidade de animais disformes das profundezas."
(...) "Travesseiro náufragos a flutuarem nos lençóis
amassados,..." (...) "Éramos amantes embebidos
em uma névoa familiar, submersos na aura de cheiros
do corpo... "(...)"... nas pausas entre seus mergulhos
(...), por manhãs de lençóis náufragos,
perpétua madrugada de persiana baixa, sobra dourada
ao sol da manhã. "
Por fim, li um trecho que me deu a sensação
de ter sido escrito diretamente para minha pessoa, e que expressa,
em três linhas, aquilo que livros inteiros de semiologia
tentam explicar:
"... são simultâneos meu gesto de
digitar essas palavras e seu olhar, leitor, voltado para o
escrito, voltado para mim. Entre meu gesto e seu olhar está
o que o símbolo contém e nos restitui, simultaneidade
de imagens que se sobrepõem no mesmo espelho bifronte,
luzes vencendo sua opacidade, ...”
Obviamente Willer se dirige ao leitor, e eu naquela situação
era o leitor... bem, mas aquelas palavras me surpreenderam
tanto como se alguém tivesse subitamente surgido em
meu estúdio vazio, onde antes estávamos apenas
eu e o livro...
A terceira experiência foi com a pessoa do Willer. Iríamos
participar de uma mesa redonda sobre tradução
de poesia. Eu, mesmo não passando de um desconhecido
e auto-proclamado poeta e tradutor, tenho minha visão
sobre poética (acredito que a “liberdade do verso”
não é realmente uma liberdade, e que o “jugo”
da métrica produz resultados que falam mais facilmente
à alma humana que a poesia livre, propiciando realização
ao autor e prazer ao leitor). É uma opinião
sincera, que eu tinha vontade de expressar naquela ocasião,
inclusive porque só traduzo poesias metrificadas, quase
todas do século 19. Já Willer, poeta de métrica
livre, narrador de pontuação livre, tradutor
de Ginsberg, de Lautréamont, de Artaud, obviamente
tem uma opinião bastante distinta. Sendo ele um reconhecido
artista e pensador, e sendo eu apenas quem sou, temi um pouco
a reação que ele poderia ter à minha
expressão (qual é meu lugar? eu mesmo não
sei!). Mas, para minha grande alegria, ele respeitou minha
expressão. Com maestria, direcionou suavemente o debate
para os temas mais relevantes, sem precisar de nenhum pedestal
(que suas realizações lhe propiciariam facilmente
caso quisesse), e deixando quaisquer credenciais ou poderes
inteiramente de lado.
Eu havia ressaltado a importância da métrica
na poesia, comparando-a com o ritmo universalmente presente
no mundo biológico, e apresentei meu projeto (ainda
hoje inacabado) de tradução de “O Corvo”.
Willer respondeu à minha apresentação
com uma agudeza e habilidade admiráveis. Ele simplesmente
recordou que “O Corvo” é o extremo dos
extremos (provavelmente a poesia mais rica em elementos rítmicos
jamais escrita, e indiscutivelmente dependente da métrica).
Com isso ele evitou que incorrêssemos na (então
inapropriada) discussão sobre poesia metrificada x
livre, e colocou cada coisa em seu lugar. Ele preservou meu
espaço e minha manifestação de amor à
métrica, sem precisar restringir qualquer manifestação
ou discussão sobre a poesia livre. Com isso o evento
permaneceu vivo, e as idéias de todos os presente floresceram.
Eu vivi ali algo maior que minhas idéias sobre poética,
vivi uma experiência de liberdade, de horizontes ampliados,
de relação humana possível e frutífera,
transcendendo idéias conflitantes.
Para uma pessoa como eu, de precaríssimas habilidades
sociais, essa capacidade do Willer de respeitar a idéia
contrária (até mesmo uma idéia radical),
mas sem deixar que essa idéia prejudique o andamento
de um encontro, abrindo espaço para que várias
idéias permaneçam vivas, é em si admirável.
Mas esse é um dom que outros palestrantes experientes
também tem. O que é raríssimo é
encontrar alguém que consegue deixar de lado os poderes
e credenciais que tem, e valer-se apenas de sua habilidade
e argumentos sinceros (sem retórica ou artifícios)
para lidar com uma situação, e faz tudo isso
abrindo horizontes.
Willer agiu nesse evento, como alguém que está
“na estrada” age, ou supostamente deveria agir,
em relação a seus semelhantes. De ser humano
para ser humano. Willer não apenas fala de liberdade,
ele mostra a liberdade na forma como age com os outros. Foi
assim que ele agiu comigo.
Considerando todos as experiências acima, é
com grande prazer e alegria que convido a todos nossos assinantes
para o lançamento e sessão de autógrafos
do novo livro de Cláudio Willer: Um obscuro encanto:
gnose, gnosticismo e poesia moderna, publicado pela editora
Civilização Brasileira:
Convite
Lançamento e sessão de autógrafos
do novo livro de Cláudio Willer
Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia
moderna. Ed. Civilização Brasileira
LOCAL: Livraria Cultura (Loja Record) Conjunto Nacional,
Av. Paulista 2073, São Paulo.
DATA: Dia 11 de agosto, quarta-feira, a partir das
19 h. |
Recomendo a todos o conhecimento, direto ou indireto, desse
instigante escritor e ensaísta, que é sincero
com seu trabalho e sua filosofia, não apenas com sua
razão, mas com seus atos: Claudio Willer.
Um forte abraço a todos, e até a próxima
publicação,
André Masini
Links relacionados a "Um obscuro encanto"
e Claudio Willer:
Conversa
sobre o Livro, entre Willer e o Poeta Edson Bueno de Camargo
Agulha
- Revista de Cultura, editada por Floriano Martins e Claudio
Willer
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