Casa da Cultura    

Boletim Informativo Semanal

Ano VIII, número 63 - Sábado, 07 de agosto de 2.010  

Casa da Cultura Literatura Trabalhos de A. C. Masini


Exemplar de Assinante Conveniado

EDIÇÃO ESPECIAL CLAUDIO WILLER

Zoommp! Eis que nosso velho boletim reaparece, materializado do nada, como que voltando de hiperespaço. Reaparece assim de repente, da mesma forma que desapareceu em outubro de 2006, após sua última edição. Parece que foi ontem, mas já faz 4 anos... E não foi a relatividade ou o hiperespaço, mas simplesmente essa nossa vida passando rápido...

Desculpas a todos que sentiram falta da publicação. Foram as escolhas e prioridades que todos somos obrigados a fazer que nos afastaram de nosso delicioso trabalho de conhecer, examinar e divulgar obras literárias e outras artes, aqui na Casa da Cultura.

Éramos pontuais e confiáveis como a Loteria Federal, agora mais parecemos uma escritura de propriedade do Viaduto do Chá (interessado? estamos vendendo! baratinho! oportunidade única!! ).

O que nos traz de volta ao mundo é um acontecimento literário-cultural que eu, André, achei que merecia ser divulgado (no que fui apoiado pela Elizangela): o lançamento de um livro que para mim tem um significado muito especial: “Um obscuro encanto”, de Claudio Willer.

Nosso país tem alguns escritores-ensaístas que além de sinceros com seu trabalho, e de produzirem textos que realmente valem a pena ser lidos, gozam de reconhecimento público escrevendo para os principais jornais do país e para nossas mais importantes revistas de literatura. Dentre eles eu conheci apenas um pessoalmente: Claudio Willer.

Mas minha admiração por Willer vinha de muito antes.

Começou quando descobri sua qualidade como tradutor: Willer é provavelmente o principal tradutor e divulgador brasileiro da obra do poeta estadunidense Allen Ginsberg. Ele também publicou resenhas e coordenou incontáveis grupos de estudos sobre contemporâneos de Ginsberg como Jack Kerouac, William Burroughs, e outros. Esses autores são normalmente identificados por “Geração Beat”. Assumindo o risco de parecer simplório, eu tentaria descrever esses autores como pessoas que não quiseram ou não conseguiram se ajustar à hipocrisia e ao formalismo da sociedade estadunidense dos anos 50, e partiram em busca algo mais verdadeiro. Voltaram-se para suas próprias almas, através da liberdade de se expressar espontaneamente, sem necessidade de respaldo intelectual ou institucional; do inconformismo; da liberdade de perambular (“por o pé na estrada”, como fizemos alguns de nós por aqui nos anos 60 e 70); da busca de uma nova percepção do mundo, inclusive através do uso de drogas como o LSD.

Naturalmente essa busca produziu textos também livres e espontâneos que apresentavam grandes dificuldades de tradução. Para quem como eu passou muitos anos estudando e praticando tradução, a leitura de um texto traduzido, mesmo um cujo original jamais foi visto, pode ser bastante incômoda. Uma infinidade de detalhes podem “emperrar” a fluência. Cito apenas dois como exemplo: frases mal digeridas que acabam se tornando estranhas ou desconfortáveis em língua portuguesa, ou o uso de palavras de origem etimológica idêntica à do texto original, mas que em português ficam fora de contexto, ou geram construções sintáticas não-naturais. Mas, longe disso, a leitura de “Uivo, Kaddish e outros poemas de Allen Ginsberg” foi uma experiência sem sobressaltos, tão fluente que o texto foi me levando, até eu esquecer que aquilo era uma tradução. Somente depois me dei conta que havia lido um trabalho de Tradução intocável, e que Cláudio Willer havia conseguido realizar algo muito difícil.

O poética de Ginsberg está longe de ser meu estilo favorito, mas seu pensamento é para mim de grande interesse. Nosso movimento hippie dos anos 60 é influência direta desses pioneiros, e faz parte de minha vida. Minha primeira experiência das agruras do escritor independente foi aos 8 anos de idade, na feira da praça da República, tentado vender um livro de poesias de uma amiga de minha mãe. Por vários domingos circulei pela feira com um exemplar de “O sorriso do menino negro” na mão. Nunca vendi nenhum.

Minha segunda experiência com a obra de Willer foi muito mais intensa, surpreendente e até chocante. Ao ler seu texto auto-biográfico “Volta”, pela primeira vez me dei conta de quanto a literatura que eu devorara e recriara em minha mente por toda a vida, situava-se em paisagens exóticas! Do Rio de Janeiro do século 19 de Machado de Assis, aos sertões de Mário Palmério, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha e Vargas Llosa; dos campos de neve cobertos de sangue de Tostoi, ao inacessível interior da Argélia dos pais de Camus; do mundo assombroso de Poe, aos mundos extraterrenos de Heinlein; e assim por diante. Claro que sempre houve crônicas de jornal, ou outras obras de pouco peso, mas essas não contam. Estou falando de livros que marcam, que tornam-se referências, abrem portas para compreensão do ser humano e da vida. Que recordamos recorrentemente em súbitos instantes de nossas vidas.

Ao começar a ler “Volta”, deparei-me com Higienópolis, Liberdade, Teatro Municipal, o Clubinho da Rua Bento Freitas, os anos 70 e seus poetas e hippies, o movimento político que eu vivi. Depois o bar Persona, do Roberto Campadello, na Treze de Maio. O livro enveredava por lugares e tempos que cruzavam com “minha vida”, como uma história paralela à minha própria. Imaginei como milhões de outras histórias dos milhões de pessoas que habitavam São Paulo também se cruzavam...

Aquela história porém era particularmente interessante. O texto vibrante e repleto de imagens e sensações que ficam gravadas na mente, com passagens de pura poesia em prosa, e com freqüente uso de um recurso literário que me agrada muito, o contraste: "O silêncio do teatro vazio e a tranqüilidade de um domingo à noite" contraposto à correria e caos de antes, e ao furacão que viria depois... As personagens, que são ou foram na verdade pessoas, como o Augusto, apesar de não serem nitidamente delineadas, são riquíssimas em sugestões e (não sei explicar como) tornam-se marcantes.

O estilo do autor é suave e sutil, os dramas ou intensidades acontecem porque são parte da vida, mas o autor os desenha sem qualquer realce nas pinceladas ou cores. Porém, curiosamente, para mim esses dramas e intensidades ficaram gravados de forma extremamente exacerbada, diversas passagens e imagens do livro me trazem melancolia e até tristeza. Não compreendo bem isso, acho que porque o livro é tão próximo de minha vida, acho que a tristeza vem mais de mim que do autor. Uma passagem particular ficou gravada de modo muito intenso. É a saga de um exemplar de “Dias Circulares”, que primeiro surge como parte de uma dupla dos dois primeiros exemplares da obra. Ele é autografado e dado a um amigo do autor que tempos depois falece, mas o exemplar inexplicavelmente “Volta” às mãos do autor que o encontra no topo de uma pilha de livros em um sebo. Eu vejo essa cena do sebo tão nitidamente, como se tivesse acontecido comigo.

O livro também tem um intrigante interligação de passado e futuro, com alusões que ficam pairando para serem retomadas posteriormente, e outras que nos remetem a passagens anteriores.

Alguns trechos:

Em uma certa Feira de Poesia (pp. 14-15), Willer consegue ao mesmo tempo mostrar a situação externa e o subjetivismo do narrador. O autor utiliza pontuação livre, um estilo que dificilmente me agrada (pelo simples fato de tornar o texto menos inteligível do que um com pontuação ortodoxa). Mas seu resultado é tão bom que a ousadia da linguagem acaba justificada. O texto é intocável:

"... paro para autografar, rodeia-me um torvelinho de pessoas a quem ainda reconheço, passam por mim Osvaldo e Augusto, acelerados mensageiros na maratona por alguma providência cujo sentido me escapa, volto a ser sorvido pela multidão e já estamos na segunda noite, os dias se emendam, a festa suprimiu o tempo intermediário, horas tragadas em um desvão do sonho onde jamais saberei onde estive e o que fiz..."

Em certos trechos o livro transforma-se em pura poesia, como no capítulo 6, que começa com as palavras "Tânia Mergulhava", e depois é o texto que “mergulha” em palavras e simbologias e insinuações aquáticas e sensuais.

"... ampla casa térrea com um pátio de redes estendidas, úmido poço de vegetação onde ficava em seus dias marítimos. Tânia viajava na difusa paisagem entrevista pelo vidro de sua máscara de mergulho, a distinguir formas distorcidas por trás das cores reduzidas a tonalidades de sombra, enquanto experimentava a substituição de todas as sensações corpóreas por gradações do frio." (...)"uma nova espécie de organismo, ..." (...)"... uma viscosidade de animais disformes das profundezas." (...) "Travesseiro náufragos a flutuarem nos lençóis amassados,..." (...) "Éramos amantes embebidos em uma névoa familiar, submersos na aura de cheiros do corpo... "(...)"... nas pausas entre seus mergulhos (...), por manhãs de lençóis náufragos, perpétua madrugada de persiana baixa, sobra dourada ao sol da manhã. "

Por fim, li um trecho que me deu a sensação de ter sido escrito diretamente para minha pessoa, e que expressa, em três linhas, aquilo que livros inteiros de semiologia tentam explicar:

"... são simultâneos meu gesto de digitar essas palavras e seu olhar, leitor, voltado para o escrito, voltado para mim. Entre meu gesto e seu olhar está o que o símbolo contém e nos restitui, simultaneidade de imagens que se sobrepõem no mesmo espelho bifronte, luzes vencendo sua opacidade, ...”

Obviamente Willer se dirige ao leitor, e eu naquela situação era o leitor... bem, mas aquelas palavras me surpreenderam tanto como se alguém tivesse subitamente surgido em meu estúdio vazio, onde antes estávamos apenas eu e o livro...

A terceira experiência foi com a pessoa do Willer. Iríamos participar de uma mesa redonda sobre tradução de poesia. Eu, mesmo não passando de um desconhecido e auto-proclamado poeta e tradutor, tenho minha visão sobre poética (acredito que a “liberdade do verso” não é realmente uma liberdade, e que o “jugo” da métrica produz resultados que falam mais facilmente à alma humana que a poesia livre, propiciando realização ao autor e prazer ao leitor). É uma opinião sincera, que eu tinha vontade de expressar naquela ocasião, inclusive porque só traduzo poesias metrificadas, quase todas do século 19. Já Willer, poeta de métrica livre, narrador de pontuação livre, tradutor de Ginsberg, de Lautréamont, de Artaud, obviamente tem uma opinião bastante distinta. Sendo ele um reconhecido artista e pensador, e sendo eu apenas quem sou, temi um pouco a reação que ele poderia ter à minha expressão (qual é meu lugar? eu mesmo não sei!). Mas, para minha grande alegria, ele respeitou minha expressão. Com maestria, direcionou suavemente o debate para os temas mais relevantes, sem precisar de nenhum pedestal (que suas realizações lhe propiciariam facilmente caso quisesse), e deixando quaisquer credenciais ou poderes inteiramente de lado.

Eu havia ressaltado a importância da métrica na poesia, comparando-a com o ritmo universalmente presente no mundo biológico, e apresentei meu projeto (ainda hoje inacabado) de tradução de “O Corvo”. Willer respondeu à minha apresentação com uma agudeza e habilidade admiráveis. Ele simplesmente recordou que “O Corvo” é o extremo dos extremos (provavelmente a poesia mais rica em elementos rítmicos jamais escrita, e indiscutivelmente dependente da métrica). Com isso ele evitou que incorrêssemos na (então inapropriada) discussão sobre poesia metrificada x livre, e colocou cada coisa em seu lugar. Ele preservou meu espaço e minha manifestação de amor à métrica, sem precisar restringir qualquer manifestação ou discussão sobre a poesia livre. Com isso o evento permaneceu vivo, e as idéias de todos os presente floresceram. Eu vivi ali algo maior que minhas idéias sobre poética, vivi uma experiência de liberdade, de horizontes ampliados, de relação humana possível e frutífera, transcendendo idéias conflitantes.

Para uma pessoa como eu, de precaríssimas habilidades sociais, essa capacidade do Willer de respeitar a idéia contrária (até mesmo uma idéia radical), mas sem deixar que essa idéia prejudique o andamento de um encontro, abrindo espaço para que várias idéias permaneçam vivas, é em si admirável. Mas esse é um dom que outros palestrantes experientes também tem. O que é raríssimo é encontrar alguém que consegue deixar de lado os poderes e credenciais que tem, e valer-se apenas de sua habilidade e argumentos sinceros (sem retórica ou artifícios) para lidar com uma situação, e faz tudo isso abrindo horizontes.

Willer agiu nesse evento, como alguém que está “na estrada” age, ou supostamente deveria agir, em relação a seus semelhantes. De ser humano para ser humano. Willer não apenas fala de liberdade, ele mostra a liberdade na forma como age com os outros. Foi assim que ele agiu comigo.

Considerando todos as experiências acima, é com grande prazer e alegria que convido a todos nossos assinantes para o lançamento e sessão de autógrafos do novo livro de Cláudio Willer: Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna, publicado pela editora Civilização Brasileira:

Convite

Lançamento e sessão de autógrafos do novo livro de Cláudio Willer

Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna. Ed. Civilização Brasileira

LOCAL: Livraria Cultura (Loja Record) Conjunto Nacional, Av. Paulista 2073, São Paulo.

DATA: Dia 11 de agosto, quarta-feira, a partir das 19 h.

 

Recomendo a todos o conhecimento, direto ou indireto, desse instigante escritor e ensaísta, que é sincero com seu trabalho e sua filosofia, não apenas com sua razão, mas com seus atos: Claudio Willer.

Um forte abraço a todos, e até a próxima publicação,

André Masini


Links relacionados a "Um obscuro encanto" e Claudio Willer:

Conversa sobre o Livro, entre Willer e o Poeta Edson Bueno de Camargo

Agulha - Revista de Cultura, editada por Floriano Martins e Claudio Willer

 


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