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Identidade
Maria A. S. Coquemala
E como o rapaz fosse simplesinho e tímido, queria casar com ela, mas ficava com vergonha de lhe falar sobre isso, às vezes ela lhe parecendo estranha e fugidia, então houve por bem lhe escrever pedindo que se explicasse e se queria casar com ele.
Que respondeu começando pela infância, quando sabia muito bem quem era, tinha sólidos referenciais, um lar, pai e mãe, irmãos com quem brincava e brigava, periquito, gatos que ameaçavam o periquito, avô rabugento, cafezal, escola, parentes longínquos... E mais que tudo, havia um céu, pra onde sempre olhava, e tinha mil perguntas, mas perguntas a que ninguém respondia, até que numa noite plena de revelações, alguém lhe falou sobre o tamanho, implosão, morte e renascimento das estrelas, num círculo vicioso. E que desde então, está sempre estudando o firmamento, vendo-o em belas imagens televisivas, lê, lê e lê sobre ele, fita-o nas noites de lua, ou brilhantes de estrelas, até de nuvens escuras e ameaçadoras...
Adulta, sabe-se unidade simultânea e indivisível de mente, soma e psique, todos com funções específicas, assim parece, vez em quando até brigam entre si. Nasceu em sopa gelatinosa, estranho lugar, cheio de amônia, vapores e faíscas elétricas, quem sabe algum estranho Dr Frankenstein agindo, depois mutações darwinianas. Sabe-se também alga evoluída, mamífera, um dia macaca pulando nas árvores, depois descendo, se cobrindo, vergonhosa, não mais agora, os tempos são outros.
Difícil dizer como se configurava antes da sopa primordial, mas certamente existiu fora do planeta, na natureza nada se cria, nada se perde etc... Talvez energia no tempo em que tudo era mesmo só energia, depois poeira estelar, pra onde voltará, a acreditar-se na Ciência. É sincera, daí que precisa lhe dizer que sequer tem certeza se existe mesmo, pois a Física afirma ser ela apenas possibilidade num determinado espaço-tempo, tendo em vista a incerteza que reina no mundo quântico da sua intimidade somática, o reino das subpartículas... Também em dúvida se é constituída de partículas ou ondas, depende do buraquinho por onde a passam no laboratório, mas, por favor, não pusesse malícia na informação. E por mais que queira ser exata, não vai conseguir, de momento, dizer onde se encontra, já que não sabe em que velocidade se move numa determinada posição. Torna-se difusa e fugidia quando a examinam nas entranhas. Das subpartículas, claro... Orgulha-se de ser matéria inteligente, sempre encontrando o melhor caminho quando posta à prova. Daí que aceita casar-se com ele. Mas, não deve esquecer ter ela sua contraparte de matéria escura, só não sabe em que universo, mas não é racista. Branca, preta ou amarela, tanto faz, importante é estar viva e consciente de que está, embora nem saiba exatamente onde, já que a Terra se move em torno de si mesma e do Sol, que se move em torno de si mesmo, e com todo o sistema solar vai em direção a uma longínqua estrela, que também se move, sempre havendo a possibilidade de ser sugada por algum buraco negro e cair em outro universo, ou não cair, ser regurgitada, esses cientistas mudam mais de idéia do que de camisa...
E como já se determinou que tudo é relativo, (exceto a afirmação), inclusive o espaço-tempo, convém que ele se lembre que a aceitação do casamento está no presente para ela, futuro do presente para ele ao receber a confirmação, e que o futuro a Deus pertence e não a eles. Futuro em que o presente atual será passado para ela, e mais passado ainda para ele ao pedi-la em casamento, tempo que os gramáticos chamam de pretérito mais-que-perfeito, sabendo o nome da ação verbal, mas não a infinita complexidade que por trás da nomenclatura se esconde, já que passado nenhum é perfeito, muito menos mais-que-perfeito, pois não podemos voltar pra conferir e corrigir. Mas que não se preocupasse muito, dado que o espaço-tempo é curvo e o universo cíclico, e, assim sendo, talvez já se conhecessem de outros carnavais há milhões de anos, um passado remotíssimo...Quem sabe, como queria aquele Nietszche esclarecido, (ou seria louco de pedra?), tudo se repete, num círculo vicioso. Todo mundo nascendo nos cemitérios e morrendo no ventre das mães?
E ponto. Com estas informações, pensou ter deixado claro ao humilde e tímido candidato a marido quem era ela, ou melhor, a possibilidade de ser ela. O resto era detalhe irrelevante...
Se você pensa que, mediante tais informações, o pobre moço tirou o time do campo, engana-se. Como dizia Pascal, o coração tem razões que a Razão desconhece. Casaram-se e passaram a lua de mel num lugarzinho tranqüilo à beira de um lago onde se banhavam em águas que eram só águas mesmo, à noite viam São Jorge na Lua matando o dragão e se diziam as mesmas tranqueirinhas que os apaixonados se dizem desde sempre. Viver é assim mesmo, sem mistério nenhum...Exceto se você começa a fitar estrelas e fazer perguntas...Aí complica.
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[A Menina e o Gato Gordo]
[No dia em que AF subiu ao telhado]
Maria A. S. Coquemala é professora de Língua e Literatura Portuguesa, especializada em Lingüística. É autora de Naná e o Beija-flor, (literatura infanto-juvenil, primeira edição já esgotada, mas a segunda em preparo). E Círculo Vicioso (contos, para adultos) lançado na última Bienal do Livro em S.Paulo. Escreve respondendo a um impulso de criação artística.
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