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O Prefeito
Maria A. S. Coquemala
Eleito, quis de imediato ouvir o povo em suas mais profundas aspirações, conforme prometido em campanha. Solicitou ao secretário, Prof. Poincaré, amigo e emérito pesquisador de matemática, estreante em cargo político, que convocasse todos os munícipes, sem qualquer restrição. Democracia é participação, daí que todos deveriam participar, ensinava ele.
Aquele “todos”, levado ao pé da letra pelo professor Poincaré, profundo conhecedor das ciências exatas, mas desconhecedor da natureza humana em suas complexas manifestações, levou-o a organizar o atendimento começando pelas criancinhas, pois “todos” são todos mesmo, de qualquer idade, inclusive elas. Que encheram a Prefeitura, chilreando seus cândidos pedidos, bolas, sorvetes em milhares de sabores, bicicletas, pipoca, pirulitos, bichinhos, bexigas coloridas, flechas, apitos, peixinhos, gatos e cachorros, patinetes, ruas só com descidas... Sua Excelência coçou a cabeça, difícil descobrir a mágica de ruas só com descidas, subidas nunca, mas haveria de conversar com Poincaré... Quanto ao resto, sempre se poderia dar um jeito...
Mas Poincaré, sempre sério e atencioso, já convocava os adolescentes, fizessem seus pedidos, também faziam parte do “todos”. E a vetusta Prefeitura se encheu de rabos de cavalo e bonés com abas para trás, o que levou o distraído secretário a se perguntar se meninos tinham agora algum problema visual, ou quem sabe? Um novo olho na nuca, havia que protegê-lo... Como quer que fosse, o recinto se encheu de vozes e cores, tênis luminosos, jeans apertadíssimos e camisetas enormes, chicletes e “piersing” nos umbigos e narizes, celulares, radinhos, colares e tatuagens, todos pedindo clubinhos exclusivos, imensas mesadas, liberdade total, com pais e na escola, substituição dos velhos e ranzinzas professores de mais de 25 anos, queima da velharia guardada nas bibliotecas, o mundo exigia idéias novas... Sua Excelência aproveitou a data, dia de S João, fez enorme fogueira com a livraiada, aposentou todos os idosos professores conforme o solicitado, proclamou as liberdades pedidas, uniformes foram também queimados, despertadores agora inúteis foram quebrados em praça pública como símbolo da liberdade conquistada. E pra mostrar modernidade, ele mesmo colocou um “piercing” no nariz. Verdade que ouviu alguns comentários maliciosos, xiiiiiiii, o prefeito pirou... Entre outros de que preferia nem falar... Ser prefeito é ser paciente, filosofava...
Então Poincaré convocou os velhinhos, afinal precisavam ser ouvidos antes que morressem. Atendidos, morreriam felizes. Estavam pedindo dentaduras de ouro, pílulas achocolatadas, elixir da juventude, bibliotecas lotadas com antigos e famosos clássicos da Literatura e sábios de todos os tempos, quando foram interrompidos por Sua Excelência que desconhecia a mágica de fazer os livros voltarem das cinzas já espalhadas pelo vento no dia de S. João. No resto, talvez pudesse também dar um jeito. E em sinal de compreensão, passou a usar uma elegante bengala, o que levou alguns cínicos a verem nela um símbolo fálico... Mas Sua Excelência preferiu ignorar as risadinhas à socapa, ser prefeito é engolir sapos sorrindo, continuava ele filosofando...
Mas Poincaré, incansável, já pedia a Sua Excelência que atendesse aos profissionais liberais que entre tantas outras coisas, queriam espaço e liberdade para o exercício da profissão, nada de alvarás e outras exigências burocráticas, emperradoras do progresso. Todos os espaços públicos da cidade foram, pois, liberados, médicos passaram a atender sob os ipês floridos, cachorros farejando sangue rodeavam cirurgiões, exames médicos atraíam platéia de todas a idades, deixando perplexo o sábio Poincaré. Advogados empertigados em ternos e gravatas ouviam clientes nas ruas; dentistas trabalhavam sob as árvores, amálgamas se enriquecendo com o cocô dos passarinhos; arquitetos, paradoxalmente, projetavam mansões de sonho no pó do chão, crianças se deliciavam com os belos desenhos, mas que o vento teimava em desmanchar...
E vieram as mães, Poincaré era incansável, mas desesperadas pediam a retirada das criancinhas da rua, estavam se matando em guerras de flechas e pirulitos, fizesse voltarem os adolescentes à escola, ouvir músicas em altíssimo som em casa era desesperador... E era tanta a gritaria que Sua Excelência em sinal de solidariedade colocou uma pleonástica faixa em frente à Prefeitura, “Amo todas as mamães”, alterada à noite por algum engraçadinho, de modo tal que nem se pode contar aqui. O que gerou um clima de risadas gerais na cidade. Então Sua Excelência, cansado de mudanças, incapaz de construir ruas sem subida, só descida, de extrair livros das cinzas; cansado de suspeitas risadinhas e filosofia consolativa, arrancou o “piercing”, jogou para longe a bengala, exonerou Poincaré e contratou um secretário surdo-mudo.
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Maria A. S. Coquemala é professora de Língua e Literatura Portuguesa, especializada em Lingüística. É autora de Naná e o Beija-flor, (literatura infanto-juvenil, primeira edição já esgotada, mas a segunda em preparo). E Círculo Vicioso (contos, para adultos) lançado na última Bienal do Livro em S.Paulo. Escreve respondendo a um impulso de criação artística.
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