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Seção de Crônicas da Casa da Cultura

Inocentes, Crianças e Loucos


Cissa de Oliveira


"Deus protege os inocentes, as crianças e os loucos, e, tomara, os poetas, para que esses possam sempre perceber e comentar tal fato"

Com exceção dos inocentes, das crianças e dos loucos, subentenda-se aqui os "bons loucos", é difícil encontrar alguém assim como ela, a Débora. Só não sei exatamente em qual dessas categorias ela seria inserida com mais acerto. Seria na categoria dos inocentes? Talvez, apesar de ter mais de vinte e cinco, como toda mulher madura, mãe de dois filhos. Dona dessa inocência que faz a pessoa cantar para os filhos dormirem, para os filhos acordarem "ligados", e na impossibilidade de poder cantar para os filhos dos outros dormirem e acordarem, lá se vai ela, uma vez por semana, contar histórias para as crianças, filhos dos outros, internadas num hospital, em São Paulo. Sabe aquele tipo de paz, de quando a gente fecha a cortina e não importa se o que bate na vidraça é o vento, a chuva ou o sol? É desse tipo, a inocência da qual me refiro. Tudo está bem de qualquer jeito, porque o mundo do inocente transborda mesmo é no coração.

Falando em bater no vidro, lembrei-me de que justamente com a Débora aconteceu o seguinte: num trânsito de cidade grande -- pra não dizer infernal -- lá estava ela, dirigindo, com as crianças devidamente no banco de trás, enquanto no banco do passageiro, viajava a sua bolsa. Obviamente, tratando-se de Débora, eles cantarolavam alguma música junto com o rádio.

Eis que no farol, dois motoqueiros, um de cada lado do carro, param. O do lado do motorista, bate no vidro e a Débora olha, achando um pouco estranho aquele homem, naquele calor, com aquela roupa toda e mais o capacete fechado. Não consegue entender o que ele diz. Também, com aquele capacete e o volume da música no rádio! Ele parece agitado e ela abre um pouco mais o vidro, sugerindo com um gesto para ele abrir o capacete. Ele levanta a viseira, e assim ela o percebe realmente irritado mas não entende o que diz. Então ela comenta: - Ta um calor, né? Ele insiste, apontando para o outro lado. Ela olha e nota que o outro vidro está meio abaixado e responde sorrindo: - O vidro está aberto! Obrigada moço! E começa a fechar os vidros, percebendo nesse momento que existe mais um motoqueiro, do outro lado do carro. O sinal abre e então os dois motoqueiros saem lado a lado, conversando. O filho de apenas sete anos lhe diz: - Mãe, você não percebeu que ele queria te assaltar! - Imagina filho, não era nada disso, ele estava avisando que o vidro estava aberto!

Dias depois ela sabe pelo jornal: existem duplas de motoqueiros atacando naquele farol. Roubando os motoristas, principalmente as mulheres, das quais eles "pedem" as bolsas.

Mas será que ela se encaixaria mais na categoria criança? Talvez, já que brinca e conta histórias para crianças como se fosse uma delas!

Por fim, seria louca essa minha amiga? Talvez... porque manter a inocência nos dias atuais, só louco!

Oh! Céus! Não sei mais o que pensar,

dessa minha amiga tão desarmada,

que atravessa toda a São Paulo,

como se ali fosse um prado.


O que ainda me acalma é perceber,

que Deus protege com muita presteza,

inocentes, crianças e bons loucos,

__ Preciosas farinhas do mesmo ouro!

 

Outras obras:
[Livro de Bolso X Privacidade, Crônica de Cissa de Oliveira]
[A Sogra estava Certa, Crônica de Cissa de Oliveira]


A autora, Maria Sileuda Moreira de Oliveira é conhecida no meio literário como Cissa de Oliveira. Ela é bióloga, mestre em genética e biologia molecular pela Unicamp, atualmente desenvolvendo tese para Doutorado na mesma área. Apenas recentemente (2000) passou a colocar no papel suas poesias e prosas. Dedica-se também à poesia voltada para outras obras de arte como pinturas e músicas. Participou de diversas publicações coletivas, como "Seleção de Poetas Notívagos 2001", "Com licença da Palavra" e outras.

Contatos: sileuda@unicamp.br

Página Publicada em 05/out/2004