Uma página em branco e do avesso
Jorge Amaral
Uma página em branco, do avesso, de baixo para cima, de
trás para frente, indiferente. Começo do início
e fim terminal. O esboço em carvão de um corpo de
mulher, deitada em meio a lençóis alvos, escondida
na brancura do papel, fugindo em linhas negras, esfumaçadas
e perigosas, esboçada. Vestígios de um sonho dobrado
que a corta ao meio sem piedade. Rindo à toa, o sonho afiado
se perde nos descaminhos da imagem refletida pela indubitável
transparência. O sonho é uma navalha a decapitar o
real. Uma vez de um lado não se pode escolher o outro, quando
no outro, o outro, será apenas (des)memória. A cor
amarela é a cor do passado, registra o que já não
é. A mulher, outra em outra, e o papel, suporte desleal,
ainda estão ali, tão unidos e tão (des)iguais.
O papel contém duas verdades em duas mentiras, ou vice-versa.
O destino é sempre um jogo de sorte, talvez, de azar. A brancura
do papel novo encerra em si o desespero futuro: a amarelidão
do papel velho, guardado, esquecido. O novo é que está
no velho e a recíproca é verdadeira. O desenhista
já nem desenha, sequer existe. Só, a mulher não
envelheceu. Dorian Gray a reclamar a juventude em espasmos de vida
imitando a arte. A mulher é a obra de arte; o papel, o suporte;
o artista, o criador. Óbvio, assim parece; erudição,
se refletido.Pense no espasmo, no criador.Mistério a penetrar
todas as vidas, todas. Dos três, apenas o artista não
morreu, perpetuado em sua mulher no papel amarelado, abandonada
no fundo de um jacarandá a desdenhar, inconscientemente,
do interesse alheio. Eu, jamais envelhecerei! Será que ela
pensa? Um depósito empoeirado e um tesouro assinado por mãos
artífices, criadoras da mais bela das obras. À noite,
quem sabe, ela ou dance ou se debruce na janela a espiar o mundo
lá fora. Romance! O papel e sua ‘double face’:
vida e morte. A mulher no verso, ou no anverso?, gerada em fluxos
de pensamentos delicados, espontâneos, sábios, filosóficos
e criativos, guiando mãos ultra-sensíveis. Uma valsa
vienense e um sonho partido ao meio como o centro dos corpos pelos
dois gumes da vida. O fio da navalha e a dor do dedo cortado na
borda do papel. De um lado, a marca, do outro, nada. Transparência
afetiva que a todos revela: lembrança. À meia-noite,
desfaz-se o encanto e à fantasia a realidade.
Escrito entre 11.06.05 e 16.06.05
O Autor é professor de Inglês,
formado em Letras pela PUC-Campinas, e escreve desde a adolescência.
Seus textos tem forma de prosa, mas essência poética,
podendo ser lidos como pequenos contos e crônicas ou como
prosa poética.
Contatos:
amaraljorge@bol.com.br
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Publicada em 30/06/2005 |