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No dia em que AF subiu ao telhado

 

Maria A. S. Coquemala

Na cidade, tudo se sabia, e o que se comentava é que AF tinha subido ao telhado para desobstruir a calha, mas, atingido na cabeça por uma bala, caíra sobre o pátio ladrilhado, todos pensando que tivesse morrido. Porém, sobrevivera, apesar das muitas quebraduras e da bala na cabeça. Impossível extraí-la. Assemelhava-se a uma estranha mancha que as precárias radiografias do velho aparelho de Raios X da Santa Casa mal sinalizavam.
Está em casa em recuperação, tem todo o tempo pra pensar, o que as atividades de menino pobre, desde cedo trabalhando muito, depois casado e pai de quatro filhos, nunca lhe tinham permitido. Não mais agora, afastado por tempo indeterminado do trabalho de gerente de agência bancária local. Gerente tem que ter lucidez explícita, bala na cabeça remete à perturbação mental, assim se justificara o diretor do banco, gerando recriminações dos amigos de AF. Banco que tinha sido uma potência, imagem a preservar, mas que ultimamente vinha apresentando prejuízos. AF tem então tempo pra pensar. Pensar e pensar... Horas e horas pensando... A bala no cérebro a motriz dos pensamentos? Pensar é fascinante. Como não descobrira isso antes? Pensar, concluir, planejar e executar.
No domingo em que a família de AF encontrou morto no jardim um dos seus quatro gatos, atribuiu-se a morte a algum veneno, efeito talvez de ingestão de rato envenenado. O gato não apresentava ferimentos. A menina caçula chorou, e chorou muito mais à medida que iam morrendo os demais em seqüência, sempre aos domingos, sempre do mesmo modo, um mórbido enigma a decifrar. Pensou-se no vizinho, inimigo declarado dos felinos, mas amigo de cães, tendo ele e a mulher dois minúsculos e inseparáveis cachorrinhos, um casal, carreando para eles os cuidados dos filhos que não tinham. Também um dia aparecendo mortos no quintal, os dois juntinhos, logo depois do último gato. Nem a morte os separou, comentava a entristecida vizinha, e agora se interessando também pelo acontecido com os gatos.
Era velhinho, quase oitenta, mas saudável, na medida em que se pode ser saudável nesta idade, sogro de AF, com ele e família morando, entretido sempre na observação do jardim, onde calmamente passava horas entre as flores, passarinhos e insetos, tomando sol, lendo jornais, até se indignando ou alegrando com as notícias. E disfarçadamente observando a funcionária da casa ao lado, moça bonita e extrovertida. Surpreendentemente, encontrado morto no banco do jardim, morte ocorrida havia horas, assim se supôs, dado que formigas e outros insetos percorriam o corpo gelado. Em decorrência, todos se culpavam pela inobservância da ausência por tantas horas, mas AF lembrava a idade avançada do sogro e as fragilidades decorrentes, daí que sequer se pediu uma autópsia, sendo o atestado de óbito assinado por médico de serviço público de plantão, mediante informações da família.
A súbita morte da empregada dos vizinhos donos dos cães, depois de violenta intoxicação alimentar, assim se supôs, gerou especulações na cidade, muitas, talvez algum veneno houvesse em alimento acessível a animais e humanos, matando os gatos, os cães e o velhinho e se estendendo até a jovem funcionária... Mas nenhum indício de veneno foi encontrado, por mais que policiais vasculhassem as duas casas, quintais e jardins. Nada suspeito, vestígio nenhum.
AF, a mulher, os dois filhos adultos e a filha caçula de dez anos, reunidos, discutem agora, inquietos, os acontecimentos, tudo tendo começado com a queda do telhado, seguindo-se a morte dos animais, do vovô e da funcionária. Alguém fala em desenterrar o sapo, mas ninguém ri, o momento é de apreensão. AF pede ponderação, vem pensando sobre os fatos, não se precipitassem. Filho mais velho, assíduo em filmes policiais, farejando crime, tem hipótese para os acontecimentos,
1- Vizinho que adorava os cães, sempre incomodados pelos gatos, atira em AF no telhado apenas para assustar, mas o atinge na cabeça e o derruba. Arrependido e ansioso, temendo ser descoberto, conta à mulher. Que revoltada, envenena os gatos de AF, geradores da discórdia, gatos que ela sempre detestou. Mata um a cada domingo, em requintada vingança. Mas o último gato vomita o alimento envenenado no seu quintal, comido depois pelos cachorrinhos, que morrem. Velhinho morre de ansiedade pelas seguidas mortes dos felinos e dos cães. Funcionária desavisada aproveita resto de carne envenenada, escondida na geladeira, leva para casa, prepara, come e morre também. The End.
O segundo filho de AF, dotado de grande poder de raciocínio, expõe seu ponto de vista,
2- O pai não caíra do telhado, quem caiu foi um ladrão que tentava entrar na casa pelo telhado. Na queda, atingiu AF que estava subindo pela escada pra esclarecer o barulho lá em cima. Barulho estranho, que também ele ouvira. Ladrão se salvou e fugiu. Vizinho, que enxerga mal de longe, supôs fosse AF no telhado limpando calhas, depois caindo. Levado ao hospital, desacordado, AF nada podia declarar, valendo a informação do vizinho. Mas os médicos nada de bala viam na cabeça. Frustrado pelo malogro do roubo, o ladrão, um sádico, envenenou os gatos, um em cada domingo, já que nos outros dias estava ocupado roubando, o que não podia fazer nos domingos, quando as famílias permanecem em suas casas. A funcionária do vizinho certamente o tinha visto no telhado, uma testemunha perigosa, daí ter mandado a ela bombons envenenados. Bombons que ela dividiu com o velhinho e com os cachorros, com a melhor das intenções, mas morrendo todos.
Então a menina mais nova, de fértil imaginação, leitora assídua de contos de bruxas e fadas, mas de historinhas românticas também, quis participar e dá sua versão dos fatos, com a família ouvindo condescendente,
3- A causa da inexistência de filhotes do adorado casal de cachorrinhos dos vizinhos se devia às brigas com os gatos, pois perturbavam os namoros. Então a mulher vizinha pede ao marido que elimine o dono dos gatos de um modo terrível. Ele atende, atira em AF no telhado, que lá estava não para limpar as calhas, e sim para ver a chegada da primavera com suas flores e muito verde. Erra o tiro, mas pássaro enorme derruba papai, ele sobrevive, não era ainda sua vez, tudo está escrito nas estrelas. Então a mulher encomenda uma mandinga, mas a mandingueira erra e acerta os gatos, que morrem um a um sempre no domingo, que é o dia certo de gatos bonitos morrerem. Cachorrinhos morrem por excesso de banho perfumado, detestavam banhos e cheiros. O avozinho, sofrendo com a morte dos gatos, saudade demais, e suspeitando dos vizinhos maldosos, gente envolvida com feitiços de encruzilhadas em noites de lua cheia, sobe no muro para se consolar com a funcionária, mas cai, morre, ela fica com medo das acusações, pula o muro, arrasta vovozinho para o banco, chora muito e morre de susto à noite.
Riem todos da fantasiosa versão.
Mulher de AF, sempre insegura e desconfiada do marido, expõe sua interpretação dos fatos,
4- Não existe bala na cabeça de AF, o que existe é um ferimento em forma de bala que o tempo vai fazer desaparecer e novas radiografias vão confirmar. AF, um notório rabo-de-saia, estava no telhado observando as moças na piscina da casa em frente. Assanhou-se, acabou se desequilibrando e caindo, bem feito para o sem-vergonha. Gatos saíam à noite pra namorar, alguém os envenenou, incomodado com a miadeira, um a um, num requinte de vingança. Taras, provavelmente. O domingo foi o dia escolhido, dia de folga do assassino, que podia então dedicar-se melhor à mórbida atividade. Cachorrinhos morreram pela falta dos gatos com que brigavam, mas que lhes enchiam a vida de emoção. O velhinho, seu pai, adorava a funcionária, morrera de tristeza pela traição dela com outro namorado. Ouvira algo a respeito. A funcionária morrera envenenada pelo namorado, crime passional, só podia ser isso.
Consideradas ainda insuficientes as explicações, convidaram os vizinhos para expor seus pontos de vista sobre os acontecimentos. A vizinha, funcionária frustrada, na mesma referida agência bancária da cidade, disse o que pensava,
5- O banqueiro em crise psicótica (todos eles têm, ele não é exceção), estava insatisfeito com o desempenho gerencial de AF, culpando-o pelos recentes prejuízos da agência. Encomendou a morte dele a um assassino profissional, que atira nele no telhado e foge. Tinha visto naquele dia um estranho homem rondando a casa. Daí que AF tem, sim, uma bala na cabeça. O velhinho se abala com a desgraça do genro, faz coisas estranhas. Gatos tinham uma doença genética, morreriam atrofiados, todos. O velhinho, percebendo a doença incurável, matou-os um a um com veneno, no domingo, para dar às mortes um tom de mistério, já que gostava de ler romances policiais. Tinha comentado a doença felina com a funcionária que, por sua vez, a comentara com ela. Morrera ao ouvir o boato de que todo seu dinheiro na mesma agência bancária tinha ido para o beleléu. A morte dos cachorrinhos ocorrera por envenenamento pela funcionária, após recebimento de aviso prévio de dispensa do emprego, por má conduta em namoros com o velhinho. A funcionária morrera por ingestão de algo envenenado, mandado pelo banqueiro, com quem, conforme se cochichava na cidade, tinha um caso.
A seguir, ouviram a versão do homem, vizinho de AF,
6- AF estava no telhado, ia começar a limpar a calha, quando viu na rua um bandido roubando a bolsa de uma desconhecida, certamente o mesmo que ele tinha visto também. Ao ver AF lá em cima testemunhando, atirou e sumiu, também a mulher, sem deixarem pistas. Mas AF não tem lembrança deste fato, sua memória se perturbou com a bala encravada na cabeça e a queda do telhado. Confunde os fatos recentes. O velhinho nada deixava transparecer, mas queria vingar-se de AF e dele, vizinho. No íntimo, tinha mórbido ciúme de ambos em relação à funcionária por quem estava apaixonado. Ela confidenciara a ele. Para vingar-se, foi aos poucos envenenando os gatos, depois os cachorros, para atingi-los através do amor que dedicavam a esses animais. Talvez depois os envenenasse também. Morreu de morte natural, uma coincidência. A funcionária morrera de intoxicação alimentar, conforme exames posteriores ainda poderiam comprovar.
Ainda não se tinha chegado a uma explicação plausível. Foi então a vez do próprio AF, leitor assíduo de Freud. Todos esperando que a mente talvez perturbada pela queda do telhado pudesse produzir uma estranha versão,
7- Até onde se lembra, não caíra do telhado, aonde nunca subira, e jamais tivera uma bala na cabeça. Considera fantasiosa esta versão, nada fiel aos fatos. Encostara a escada à parede, mas não tinha chegado ao telhado. Da escada, estava observando a funcionária e seu sogro velhinho tentando transar no jardim... De repente, caiu lá de cima. Os gatos não tinham morrido, apenas tinham sido anestesiados por ele e abandonados no parque, aonde ia passear aos domingos. Um a um, pra não chamar a atenção. Ao contrário do que pensavam, detestava os bichos e só os aturava por causa do amor que a mulher dedicava a eles. O cachorrinho se entalara sexualmente na cachorrinha, a empregada interveio, querendo ajudar, mas, desastrada, acabou matando os dois animaizinhos. Presenciara a cena. Funcionária morreu porque tinha um problema vaginal, conhecia sua história, daí uma hemorragia em noitada de excessos, nada a ver com o resto dos acontecimentos. O sogro morrera por dose exagerada de viagra, tinha visto as embalagens esvaziadas. O coração não resistira.

...

8-Finalmente, um dia, a polícia apresentou sua versão, inocentando a todos. A verdade aparecera, assim tinham concluído. Todos de alguma maneira tinham chegado a ela, mas por partes e nunca pelo todo, o que mostrava que a Verdade tem mesmo muitos aspectos, nunca a vemos inteiramente, fragmenta-se. AF caíra do telhado atingido por uma bala de atirador desconhecido. Os gatinhos tinham morrido envenenados por alguém que escolhera o domingo por dispor de tempo para matá-los um a um, tirando das mortes um grande prazer. Um sádico. Os cãezinhos tinham sido envenenados pela funcionária como revanche ao aviso prévio de dispensa de emprego. Vovô morrera de causas naturais. Funcionária morrera de doença sexualmente transmitida, com vômitos e diarréia, o que levara a um diagnóstico, a princípio errado.
Tudo esclarecido, voltaram ao comum de suas vidas, exceto AF que voltara a pensar e pensar... Horas e horas pensando... Uma bala no cérebro a motriz dos pensamentos? Pensar é fascinante. Como não descobrira isso antes? Pensar, concluir, planejar, executar...

 

Leia outros contos da autora:
[O Prefeito]
[Identidade]
[A Menina e o Gato Gordo]


Maria A. S. Coquemala é professora de Língua e Literatura Portuguesa, especializada em Lingüística. É autora de Naná e o Beija-flor, (literatura infanto-juvenil, primeira edição já esgotada, mas a segunda em preparo). E Círculo Vicioso (contos, para adultos) lançado na última Bienal do Livro em S.Paulo. Escreve respondendo a um impulso de criação artística.

Contatos: maria@fis.com.br

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