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Seção de Crônicas da Casa da Cultura |
Privacidade é coisa sagrada e, dessa forma, lugares públicos
às vezes são impróprios para os "discretos".
Nestes locais, fica-se exposto e sujeito a tudo: desde um simples panfleto
no semáforo, para entulhar o carro -- isso ou o calor da janela fechada,
se nesse carro, a exemplo do meu, não tiver ar-condicionado -- até
o maior de todos os inconvenientes: o de se deparar com pessoas inconvenientes.
Não sei se é porque moro em São Paulo, mas aqui parece
ter mais lugares públicos do que no resto do mundo!!! Portanto, já
faz certo tempo, adotei um contra-ataque: ando sempre com um livro de bolso,
tenho coleções. Leio-os por gostar e também para não
ser incomodada, seja nas filas, na praia ou simplesmente no metrô.
Ler no metrô: coisa que adoro. Principalmente nos dias atuais, quando utilizar esse meio de transporte é quase tão sufocante quanto pegar um ônibus em horário de pico. O metrô é mais rápido, além de ser possível fazer baldeações entre as linhas. Mas sabe como é, a gente junta uma coisa boa aqui, uma mais ou menos ali, faz um balanço e, no final... bom o final é sempre o final. Final??? Sim, estação final da linha norte-sul do metrô. Era lá onde me encontrava, quando na realidade já deveria ter descido a algumas estações.
O livro de bolso bem que valia essa contrariedade, mas contrariedade é sempre isso: contrariedade.
Como sempre, a porta nem ao menos se abre e o povo avança, saindo em direção à plataforma já lotada pelos que aguardam para a próxima viagem. Preciso voltar e permaneço onde estou, em um dos bancos laterais, o que me faz viajar de lado.
Senta-se no banco perpendicular ao meu uma antiga conhecida de colégio; reconheço-a de pronto, no entanto ela não parece ter me reconhecido. E olhe que naquele tempo eu nem conhecia os tais livros de bolso. Fico na minha. Ao meu lado, senta-se um homem, aparentando beirar aos quarenta, assim como nós... quarenta. Já repararam como certas coisas são apenas detalhes?
Detalhes à parte, repentinamente ele fala com um jeito que de detalhe não tem nada, além de ser mais do que arrastado:
-- Há quanto tempo!!!
Percebo que conversa com minha ex-colega. Ela o cumprimenta de maneira polida, mas e ele... parecia um tanto aloprado, com aquele jeito de falar, e pior: falava alto. Com certeza, apenas sua primeira frase já fora suficiente para que naquele vagão a maioria dos presentes o notassem.
-- Mas me conte o que tem feito Dulce! -- realmente, o nome dela era Dulce... lembrei-me com exatidão. -- Fiquei sabendo que está trabalhando com designers. -- ela fez menção de responder, mas ele continuou: -- Como vai a vida? Ainda mora perto da tia? -- e fez mais duas ou três perguntas até que a "colega" conseguiu encaixar-se em alguma brecha daquele monólogo e responder:
-- Sim, continuo morando perto e agora trabalho com decoração de interiores. Atualmente trabalho também com...
Ao que ele completou no mesmo tom de voz anterior:
-- O atelier? Lembro-me que gostava de pintura; eu mesmo não tinha paciência quando você me abandonava por causa disso -- e inesperadamente completou: -- Eu te amava muito.
Aí está um homem que, ou é descomplicado ou totalmente desorientado, pensei. A "colega" já aparentava desconforto com aquela superexposição; mexia no cabelo muito liso, como se fizesse cachinhos. Vai ver ela queria mesmo era retorcer a garganta do fulano. Então, ela perguntou:
-- Você continua visitando sua tia?
-- Deixei de ir lá faz tempo! Eu te amava muito, minha mulher morria de ciúmes de você!
Deduzi que a "colega" deveria ser vizinha da tia dele e a essa altura deveria estar contrariada, pois a grosseria parecia gostar de morar ali naquele homem.
-- Mas éramos tão jovens... e solteiros -- pelo jeito a "colega" apressou-se logo em evitar qualquer mal-entendido. -- É tudo passado, né? -- ela completou.
Ele, totalmente sem cerimônias, respondeu:
-- É, mas mesmo depois de tanto tempo ela tinha ciúmes.
O povo ao redor já prestava atenção no desenrolar da história quando a "colega" conseguiu perguntar o que ele estava fazendo da vida:
-- Sou psiquiatra, tenho um consultório e faço trabalho de acompanhamento de grupos de drogados.
Com muito custo segurei o riso enquanto pensava que ele é quem parecia estar drogado! Então, foi nesse momento que o homem liberou geral:
-- Mas você continua bonitona!!!! -- dizendo isso, passou uma vista geral na "colega-vítima", que mais parecia querer encolher-se, ali, no banco até desaparecer de vez.
Na primeira estação, entraram mais pessoas que, pela ausência de lugares disponíveis, distribuíram-se bem à frente dos bancos. Mas isso não intimidou o psiquiatra. Saquei meu livro de bolso, já certa de que não conseguiria me concentrar; mas pelo menos me libertaria um pouco da cena ao lado. Fingi-me distante, enquanto ele continuou poluindo os ouvidos da "colega" e de quem mais estava por perto, recordando-se "daquele tempo". Próximo à estação seguinte, onde eu desceria, a "colega" levanta-se e diz que "é ali que ela desce". Imediatamente, ele diz:
-- Eu também, vou fazer baldeação.
Desvencilhadas as pessoas pelo meio do vagão, logo estou fora. Já na escada rolante percebo que estão poucos degraus adiante... Ouço ainda quando ele diz para ela:
-- Continua bonitona meeeeesmo! Peituda! Bunduda! -- Não pude deixar de rir, mas isso não foi tudo. Parecendo desconexo, ele ainda acrescentou: -- Sabe minha irmã, a Sandra? Pois é, Dulce, ela continua bebendo!!!!
Taí... qualquer divã adoraria esse psiquiatra...
No topo da escada o louco de pedra despede-se da "colega" com a maior naturalidade e parte em outra direção. Imagino a "colega", sentindo-se livre e solta, enquanto passo por ela.
É... Privacidade é mesmo coisa sagrada, baldeações também; prosas para livros de bolso, idem.
Outras obras:
[Inocentes, Crianças e
Loucos, Crônica de Cissa de Oliveira]
[A Sogra estava Certa, Crônica de Cissa
de Oliveira]
A autora, Maria Sileuda Moreira de Oliveira é conhecida
no meio literário como Cissa de Oliveira. Ela é bióloga,
mestre em genética e biologia molecular pela Unicamp, atualmente desenvolvendo
tese para Doutorado na mesma área. Apenas recentemente (2000) passou
a colocar no papel suas poesias e prosas. Dedica-se também à poesia
voltada para outras obras de arte como pinturas e músicas. Participou
de diversas publicações coletivas, como "Seleção
de Poetas Notívagos 2001", "Com licença da Palavra"
e outras.
Contatos: sileuda@unicamp.br
Página Publicada em 05/out/2004
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