A CARNIFICINA
DO INFINITIVO
– Aonde foram as meninas?
Perguntei eu.
– Ora, foram pescar!
Respondeu a boa e velha senhora sorrindo da porta do casebre,
em português irretocável.
Era analfabeta, mas teve
o privilégio de não freqüentar nenhuma escola
moderna. Tinha a segurança de quem fala com naturalidade.
– Coitadas, continuou
ela, estão sendo acusadas de matar um homem. E os
pais delas, por falta de dinheiro, foram levados a deixar a
terra.
Sintaxe irrepreensível,
nada de foram pescarem, ou acusados de matarem, ou
levados a deixarem.
Infelizmente, hoje é
difícil encontrar um português tão correto,
seja em escolas básicas, seja em cursos de doutorado...
Como é possível
tal paradoxo? Será que o estudo anda desensinando?
Sim, lamentavelmente, sim,
graças ao mito ou modismo que contrapõe a "língua
viva" ao estudo da gramática. Modismo absurdo, pois o objetivo
do estudo da gramática é justamente compreender
os mecanismos da língua viva. Ele parte da sintaxe intuitiva,
como a daquela boa senhora, e busca dominar sua lógica
subjacente.
O estudo da gramática
é imprescindível. Se aquela senhora vive bem sem
ter estudado gramática, é porque para ela, em sua
vida simples, a lógica intuitiva basta. Mas esse conhecimento
espontâneo só consegue levar as pessoas até
um certo ponto. Qualquer um que precise refletir e trabalhar sobre
aquilo que pretenda exprimir; que precise tecer uma argumentação,
defender uma idéia, elaborar um texto literário...
enfim, qualquer um que precise manejar a língua
– precisará de mais ferramentas do que a mera sintaxe intuitiva.
Portanto a substituição
nas escolas do estudo da gramática (com a análise
sintática e tudo mais) por interpretações
de textos de sociologia, filosofia ou história, não
passa de uma farsa. O aluno acaba saindo da aula de português
com muitas ilusões, mas sem qualquer evolução
em sua capacidade de manejar a língua.
Muitos professores de português
crêem que a falta de ênfase na gramática é
uma catástrofe. Ano após ano, em silêncio,
impotentes, eles vêem seus alunos sair do primeiro e segundo
graus mal e mal alfabetizados. Mas temem se opor à corrente
da moda anti-gramática, pois poderiam ser rotulados de
antiquados ou coisa pior.
Para o aluno, ou aluna,
talvez seja cômodo ser tratado como criatura onisciente,
que não precisa se dedicar à dura tarefa de desbravar
os mecanismos da língua. Mas as conseqüências
disso ele sentirá ao sair da escola, quando tiver que trabalhar
com textos. Pois não possuirá nenhuma ferramenta
para manejar a língua além da velha intuição,
que agora já não será suficiente. Passará
então a ser vítima de permanente insegurança
e se agarrará desesperadamente às poucas e vagas
noções de gramática de que se lembra. Transformará
tais noções em regras rígidas, que utilizará
indiscriminadamente, perdendo inclusive a naturalidade da língua
intuitiva.
Um claro exemplo disso
é o uso impróprio da "regra" de que o verbo deve
concordar com o sujeito. Alunos formados que não estudaram
suficiente gramática passam a flexionar a esmo todo e qualquer
infeliz verbo que cair em suas mãos – inclusive nos casos
onde a flexão é não apenas desnecessária,
mas inteiramente bizarra e ilógica, contrária à
intuição e ofensiva ao ouvido – criando construções
extraterrestres que nenhum analfabeto jamais criaria.
Tais "concordâncias"
podem ser encontradas até nos telejornais da mais importante
emissora de TV do país:
"... policiais acusados
de integrarem..." (Rede Globo, Jornal Hoje, 15/09/03).
"... a justiça investiga
dez homens suspeitos de comandarem..." (Rede Globo, Jornal
Hoje, 28/08/03).
"... os governos foram
levados a declararem estado de emergência" (esqueci
de anotar emissora e data).
Um estágio na roça,
com nossa boa senhora analfabeta, seria muito útil a esses
"redatores". Já que não estudaram gramática,
pelo menos reaprenderiam a espontaneidade da língua intuitiva.
Recordo minha saudosa avó,
D. Eucharis, que, com sua modesta e sólida formação
de normalista, entendia nossa língua melhor do que eu jamais
entenderei. Comparo-a comigo, que fiz faculdade e sigo apanhando
da língua, mas que, apesar de minha dislexia, creio jamais
ter escrito algo como acusados de integrarem. Comparo nós
dois com os doutores de hoje... e pareceme óbvio que algo
está muito errado com o ensino.
Na semana que vem teremos
a conclusão dessa série: "A
Gramática e o Futebol".
André
C S Masini
O autor é
Auditor Fiscal da Receita Federal e Escritor
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