O Acaso e a Ciência
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André C S Masini
Na semana passada vimos
o que é determinismo: a idéia de que o mundo,
incluindo nós próprios, não passa de um gigantesco
mecanismo de relógio, onde todas as ações
e eventos estão pré-programados, e onde qualquer
escolha não passa de uma ilusão. Hoje – neste quarto
artigo de nossa série sobre o acaso – veremos por que a
física clássica sustentava essa idéia.
Ao olharmos o mundo à
nossa volta temos a impressão de que muitas coisas acontecem
por acaso, ou – usando um termo mais adequado para tratar
de ciência – de forma aleatória. Um bom exemplo
disso é um lance de dados, onde – para todos efeitos práticos
– podemos considerar que cada um dos seis resultados possíveis
(1, 2, 3, 4, 5 ou 6) tem idêntica probabilidade de ocorrer.
Mas para a física
essa aleatoriedade não passa de uma ilusão! Para
a física, um lance de dados é algo absolutamente
determinado. O resultado depende apenas de um imenso conjunto
de variáveis; entre elas: o peso do dado, o seu momento
(velocidade) inicial, o seu momento angular (rotação)
inicial, o atrito entre o dado e a superfície de lançamento,
a movimentação do ar, e muitas outras... Se fosse
possível conhecer e medir todas essas variáveis,
seria também possível predizer o resultado do lançamento.
Para a física, o dado é apenas mais uma engrenagem
pré-programada nesse imenso relógio que é
o universo.
Historicamente, essa visão
determinística foi sendo estabelecida conforme mais e mais
fenômenos do mundo físico foram sendo compreendidos
através de relações de causa e efeito. Em
1687 foi publicado o célebre livro de Newton: Principia
– que explicou o funcionamento do sistema solar através
da lei da gravitação universal e das três
leis do movimento. A partir daí os cientistas e filósofos
passaram a acreditar de tal forma no determinismo das leis
físicas, que o universo passou a ser visto como o tal
gigantesco mecanismo de relógio, expresso nas palavras
do matemático francês Pierre-Simon Laplace: Podemos
considerar o atual estado do universo como efeito de seu passado
e causa de seu futuro.
Por mais de duzentos anos
os físicos tiveram absoluta certeza disso, até que
no início do século XX surgiu a mecânica quântica,
e então ninguém mais teve certeza de nada. Vejamos:
Se projetarmos um raio
de luz em uma tela, passando por duas fendas estreitas, observaremos
na tela um típico padrão de interferência.
Surpreendentemente, se repetirmos a mesma experiência usando
elétrons ao invés de luz, obteremos um resultado
idêntico! mesmo se apenas um elétron passar pelas
fendas de cada vez!
Mas como é possível
que um feixe de partículas produza uma figura de interferência?
Tentou-se descobrir por
qual fenda passava cada elétron colocando-se um detector
em cada uma delas. Descobriu-se que, efetivamente, cada elétron
passava por apenas uma das fendas, mas que com a presença
dos detectores o padrão de interferência desaparecia!
Essa experiência
foi tão surpreendente que não apenas deitou por
terra a idéia de determinismo e ressuscitou o acaso (pois
não existe nenhum fator prévio que determine por
qual das fendas o elétron irá passar; existe apenas
uma expectativa estatística); mas pôs em xeque a
própria noção de uma realidade independente
do observador (pois é impossível observar o comportamento
dos elétrons sem modificar o resultado da experiência).
Alguns cientistas, porém,
discordaram dessas conclusões. Einstein e outros resistiram
violentamente ao fim do determinismo e propuseram a existência
de hipotéticas variáveis ocultas que pré-determinariam
todos os eventos que a experiência indica serem aleatórios.
Foi nesse contexto que ele disse a famosa frase: Deus não
joga dados com o Universo. A polêmica persiste até
hoje.
Isso, enfim, resume a forma
como a física vê o acaso: Há o mundo macroscópico
que funciona deterministicamente, regido por leis de causa e efeito;
há o mundo subatômico, onde (a maioria dos físicos
hoje acredita que) eventos aleatórios existem.
Mas, para nosso assunto,
ainda resta a pergunta fundamental: até que ponto essas
conclusões da física afetam a nós, seres
vivos, nossos destinos e nossa capacidade de fazer escolhas?
Será que essa nossa capacidade é mesmo excluída
pelo determinismo? Será que ela pode ser sustentada ou
justificada pela existência de eventos aleatórios?
Isso veremos na semana que vem, na conclusão desta série
de artigos.
Continuação
(artigo final)
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